Sobre poder e abuso, por Monica Stival

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Sobre poder e abuso, por Monica Stival

Há uma tese em diversas análises do poder que Lebrun resume do seguinte modo: “o poder que possuo é a contrapartida do fato de que alguém não o possui”. Como essa posse é idêntica à posse de certos meios para fins escolhidos, parece à primeira vista que a “soma zero” opera na divisão prática da desigualdade social. Entretanto, vamos tomar a sério o exemplo que Lebrun oferece na sequência de seu texto “O que é poder”. Diz ele: “Tomemos um exemplo anódino: um professor pode ser amigo de seus alunos, deixá-los chamarem-no de ‘você’, etc. Ainda assim, detém um poder (de dar-lhes notas) que os alunos não têm sobre ele. Isto é o essencial. E é por isso que só se pode compreender uma relação intersubjetiva (em qualquer plano que seja: profissional, comercial, sentimental…) se for possível responder à questão: quem está em posição inferior? Quem em posição superior? – quem é o soldado? quem é o oficial?”.

Essa maneira de congelar as relações de poder para identificar certa hierarquia fez com que discutisse a opressão muitas vezes com base em uma posição já determinada, uma função que alguém pode ou não assumir. Assim, partimos da estrutura – relação professor e aluno, homem e mulher, rico e pobre – para identificar os sujeitos nessas categorias e, a partir daí, lutar contra a opressão que estudantes, mulheres, pobres etc. sofrem. E sofrem, efetivamente. E esse sofrimento é a regra, não a exceção. Então, a reflexão sobre novas formas de abuso de poder não pode deixar a menor dúvida quanto à realidade dessas formas de violência tradicionais. Mas, por outro lado, novas formas de poder podem mostrar como o raciocínio que parte exclusivamente das funções sociais previamente determinadas é uma fonte de injustiças. E por mais que elas possam ser exceções do ponto de vista geral (certamente ainda são), não se pode negligenciar um abuso de poder. Seria uma maneira bastante liberal e moralmente suspeita de contabilizar “efeitos colaterais” como eventos aceitáveis.

A luta contra a opressão em suas figuras já bem conhecidas, combinada com as novidades da técnica virtual dessa era que iniciou nos anos 80, abriu espaços de voz e defesa para tantos sofrimentos. Sofrimentos que antes permaneciam na surdina ou no cinismo da sociedade, que certamente não ignorava nada do que se passava nas relações de poder e força. Estudantes, mulheres, pobres, muitos puderam usar a sociedade virtual para denúncias e para a reflexão. Felizmente, aos poucos muitos entenderam que a simples manifestação de dúvida daquele que ouve um relato de abuso sexual de uma mulher pode ser já outra violência. Enfim, novos espaços serviram para a luta necessária contra essas formas de violência e abuso de poder tradicionais arraigadas em nossa sociedade.

Mas assim como nenhum sujeito se define por um aspecto apenas de sua vida, as relações de poder também são muito mais complexas. A teoria da soma zero parte de um simplismo estridente. E o grande exemplo de hoje vem justamente desse espaço aberto que permitiu a defesa contra muito abuso de poder e que pode ajudar na construção de um imaginário social mais igualitário (ou mais reacionário… enfim, um espaço relativamente aberto). E fez isso porque deu poder às pessoas. Todos têm certo poder de voz, denúncia e testemunho nesse espaço aberto das redes sociais, blogs etc. Isso é poder. Felizmente. Mas por que imaginar que onde há poder não há abuso de poder? Por que imaginar que o poder de indicar suspeitos e culpados não envolve a sedução pelo abuso desse novo poder, acessível agora a tantos homens e mulheres? Um exemplo concreto é o dedo em riste de uma pessoa que, a parir das redes sociais, acusou e julgou alguém que seria então massacrado em um linchamento público, sem direitos, sem direito de defesa ou voz. Há linchamentos atrozes e reais, como esse há não muito tempo, e outros simbólicos. Hoje são feitas muitas ameaças gratuitas e chantagens que se valem de um uso abusivo e irresponsável da fala e da acusação.

A pergunta que podemos fazer ao considerar essa ambiguidade do poder aberto e compartilhado talvez seja pela maturidade dos sujeitos no uso do seu poder de intervenção. Discutir, debater, refletir sobre o uso da palavra e dos espaços “públicos”, ainda que virtuais (e certamente não tão igualitários quanto se prega), enfim, discutir os novos sentidos do poder e do abuso que ele pode sempre acarretar parece-me estar na ordem do dia. Talvez possamos encontrar os limites do poder de todos e de cada um na própria reflexão coletiva e na luta contra toda forma de opressão – seja a opressão nas figuras horrendas das relações de poder tradicionais, seja nas novas formas de abuso de poder. Isso depende de um olhar capaz de distinguir o caso, ao invés de dissolver todas as disputas nas categorias tradicionais que dão ao juízo o conforto de dispensar a análise crítica. 

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

1 Comentário

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  1. pintou uma ideia que pode

    pintou uma ideia que pode encaixar nisso aí…

    com a assunção ao poder do partido progresista,

    ficou evidente de que lado o poder real funciona….

    a justiça pune só um dos lados,

    ou principalmente um dos lados.

    a casa grande quer derrocar o governo desde que este assumiu em 2003.

    mas como este governo  conseguiu estabilizar de certa forma a sociedade,

    a casa grande tem medo de derrocá-lo porque,

    ao perceberem que não há outra saída além desta – negociada -,

    os perdedores apelem para a violencia, revolução social, etc e tal….

     

     

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