Vítima da Presidência usurpada à protagonista da Presidência conquistada, por Jânia Saldanha

São dois fatos políticos que nos impõem a importante tarefa de olhar para o tempo presente representado por esse intervalo de 7 anos.

Vítima da Presidência usurpada à protagonista da Presidência conquistada: o intervalo entre 16 de março de 2016 e 24 de março de 2023

por Jânia Saldanha

O dia é 16 de março de 2016 quando o então juiz do processo Lava Jato, Sérgio Moro, praticou claramente atos processuais inconstitucionais em violação de devido processo legal, não apenas por ter desrespeitado o sigilo das comunicações telefônicas da ex-Presidenta e do atual Presidente da República, quanto por ter manipulado de forma seletiva as informações obtidas ilicitamente de modo a impor “a sua versão” do conteúdo gravado com a evidente intenção de manipular a opinião pública e, assim, encontrar apoio para impedir a nomeação do então ex-Presidente Lula da Silva para ministro e construir o caminho para decretar sua prisão em 2018. Sabemos, essa é uma versão extremamente simplificada de uma história macabra e complexa.

O dia é 24 de março de 2023 quando a imprensa nacional e internacional noticiou a eleição unânime de Dilma Rousseff para a Presidência do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB), o banco dos países que formam o bloco dos BRICS.

É interessante observar como a perda da presidência do Brasil e o ganho da presidência do Banco BRICS, por Dilma Rousseff, são dois fatos políticos que nos impõem a importante tarefa de olhar para o tempo presente representado por esse intervalo de 7 anos.

Se o “grampo ilegal” praticado por Sérgio Moro foi decisivo para que Lula da Silva não tomasse posse como ministro, mais fundamentalmente, ele foi derradeiro para a prática do golpe parlamentar que, na forma procedimental de um impeachment, retirou a Presidência da República de Dilma Rousseff, quanto, também, para a ascensão de Jair Bolsonaro e seu rastro fascista ao poder. Do ponto de vista da teoria do tempo presente, é essencial entender, uma vez mais, que esses episódios espúrios se apresentaram, inapelavelmente, como a expressão bem acabada da tirania do “presente onipresente” urdida em salas publicamente conhecidas do sistema de justiça. O que o País viveu até 31 de dezembro de 2022 evidenciou muito bem, como nos diz François Hartog[1], que as democracias se veem atropeladas pela “tirania do momento”. De fato, a urgência em instituir a exceção faz com que as democracias ou o que resta delas, percam “os modos e os ritmos” de tomada de decisão alinhada com o Estado de Direito e sucumbam a um futuro curto pré-determinado ou a um passado traumático ou criminoso. Não escapamos disso. O quanto conhecemos da força desse presentismo! Ele foi escandalosamente usado na forma de inúmeros instrumentos presentistas como o twitter (usado sem parcimônia pelo juiz do processo) e as fake news (usadas escandalosamente por Jair Bolsonaro). Assim como o capitalismo, a democracia tornou-se vítima da plasticidade, cujo maior exemplo foi o uso deturpado da figura jurídica do impeachment.

Por outro lado, a eleição de Dilma Rousseff para a presidência do NDB rompe com esse presentismo que facilita seja a democracia destruída por ela mesma e restitui o lugar e a presença da memória. Essa, ao contrário da história que vê o passado mirando o futuro, olha para o passado à luz do presente[2]. Por quê? Justamente porque o papel da memória é trazer para o presente a reparação, em face da injustiça sofrida.

A escolha feita na última sexta-feira por nove Estados – Brasil, Rússia, India, China, África do Sul, Bangladesh, Emirados Árabes, Egito e Uruguai – é essa reparação, se não completa, mas que ao menos nasce internamente e esforça-se para acertar as contas com o passado recente ilegal e injusto ao indicar a ex-Presidenta, não apenas para um posição de Estado quanto, por apostar em sua capacidade de presidir uma instituição internacional criada para tentar equilibrar a balança econômica histórica e crucialmente pendente em favor do “Império Mundo”[3].

Sobretudo, no plano internacional, a eleição significa o reconhecimento de representantes de aproximadamente três bilhões e quinhentos milhões de pessoas[4], as quais compõem quase a metade da população do planeta[5], acerca das credenciais intelectuais e políticas da ex-Presidenta para estar à frente de um projeto econômico que confronta o modelo econômico hegemônico global. Claro, seria no mínimo muito ingênuo pensar que durante o tempo do mandato de Dilma Rousseff à frente do NDB, ou seja, até o ano de 2025, a história acumulada de produção de desigualdades pelo “sistema-mundo”, para lembrar da célebre expressão de Immanuel Wallerstein, poderá ser reduzida significativamente em decorrência da atuação dessa Instituição. Não. Mas durante o período em que estiver com a batuta em suas mãos, ela poderá, como expressão do governo do Presidente Lula da Silva e juntamente com seus pares, dar uma resposta clara sobre a posição do País no âmbito do BRICS, sobre a possibilidade de alargamento para o BRICS +, medida que é não apenas urgente quanto necessária e também, acerca do compromisso do País em construir uma comunidade humana de destino em que a justiça social global seja o fim a ser perseguido.

Na hora em que vivemos uma crise global, climática, financeira e bélica, no qual a desigualdade aparece como uma construção social, histórica e política, a prática de uma justa memória que reconstrói o presente à luz do passado, faz bem em reparar as máculas que o golpe de 2016 produziu à imagem pública da ex-Presidenta. Nada melhor do que desafiá-la ao posto onde poderá dar continuidade aos valores democráticos que defendeu enquanto na chefia do Poder Executivo do Brasil, como o multilateralismo, a solidariedade e a cooperação, três características essenciais para uma instituição internacional que, como o NDB, promete construir um futuro sustentável[6] tendo à frente as “economias emergentes” do planeta” e que se propõe a fazer a diferença nas áreas de energia limpa, infraestrutura de digital, social e de transporte e, proteção ambiental. Finalmente, há que se dizer que o desafio maior será o de confrontar o sistema legal internacional, fundado sobre a circulação descontrolada de capitais e que muito longe está de cumprir verdadeiramente compromissos sociais e climáticos, nada mais do que um neocolonialismo que mantém os impérios econômicos e sustenta os ricos do planeta. Essa é a condição para rompermos, passo-a-passo, com a lógica perversa que divide o mundo em centro-periferia[7].


[1] HARTOG, François. Os impasses do presentismo. In: MULLER, Angelica. IEGELSKI, Francine (Org.). História do tempo presente. Mutações e reflexões. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2022. Ebook, posição 2639 a 2719.

[2] HARTOG, François, op. cit.

[3] DELMAS-MARTY, Mireille. Sortir du pot au noir. L’humanisme juridique comme boussole. Paris: Buchet Chastel, p. 70.

[4] Em números: 3.483.075.374 pessoas. Disponível em: https://www.populationdata.net/palmares/population/. Acesso em 25/03/2023.

[5] Em 2022 a ONU estimou que a população mundial atingiu a cifra de 8.000.000.000 de pessoas. Disponível em: https://www.un.org/fr/global-issues/population#:~:text=La%20population%20mondiale%20devrait%20atteindre,statistiques%20d%C3%A9mographiques%20des%20Nations%20Unies. Acesso em 25/03/2023.

[6] NDB. DISPONÍVEL EM: https://www.ndb.int/about-ndb/focus-areas/. Acesso em 25/03/2023

[7] Veja-se: PIKETTY, Thomas. Une brève histoire de l’égalité. Paris : Seuil, 2021.

Jânia Saldanha – Pós-Doutora em Direito do Institut des hautes Études sur la Justice, Paris. Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito e do Curso de Direito da UNISINOS. Advogada.

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