O costume constitucional e a eleição para Procurador Geral

Do Constitituição e Democracia

A INDICAÇÃO DE MEMBROS DO MPF PARA O CARGO DE PROCURADOR GERAL DA REPÚBLICA COMO EXEMPLO DE COSTUME CONSTITUCIONAL

Por Emanuel de Melo Ferreira

Procuradores-Gerais da República após 1988. Fotos disponíveis no sítio da PGR. Montagem: Sara Raquel de Melo

Procuradores-Gerais da República após 1988. Fotos disponíveis no sítio da PGR. Montagem: Sara Raquel de Melo

Como já amplamente noticiado, o Ministério Público da União (MPU), composto pelo Ministério Público Federal (MPF), Ministério Público do Trabalho (MPT), Ministério Público Militar (MPM) e Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) está prestes a ter novo chefe, com o final do mandato do atual Procurador Geral da República (PGR), Dr. Roberto Gurgel. A Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), visando à concretização da democracia interna no MPF, está organizando a respectiva eleição para formação de lista tríplice a ser enviada à Presidenta Dilma Rousseff, a fim de que ela possa efetivar a indicação. Tal eleição conta com candidatos e eleitores unicamente do MPF.

Ocorre que, também como já noticiado, as demais associações dos outros ramos do MPU, ao argumento de que o PGR é chefe de todo o MPU e não somente do MPF, também iniciam um procedimento de escolha de seus membros. No entendimento deles, alguém fora do MPF poderia ser PGR.

O presente post tem por objetivo demonstrar, sem qualquer falácia corporativista, como a indicação de membros do MPF para o cargo de PGR originou um costume constitucional, suprimindo uma lacuna na Constituição Federal. Para desenvolver um debate com argumentos honestos, afastando-se do vício argumentativo antes mencionado, somente fundamentos de ordem legal e, principalmente, constitucional, serão lançados.

O que é um costume constitucional?

O costume, como se sabe, é uma das fontes do direito, consistindo naquela prática reiterada de um determinado uso, com a consciência de que tal conduta é obrigatória. Assim, o costume apresenta um aspecto objetivo (condutas reiteradas) e subjetivo (consciência de obrigatoriedade).

Um costume pode ser caracterizado como constitucional quando ele complementa uma lacuna da Constituição. Tal complementação pode ser levada a cabo por quaisquer dos poderes constituídos, como, por exemplo, o Poder Executivo. Se tal complementação, a saber, se tal conduta é efetivada de modo reiterado, com a consciência de sua obrigatoriedade e sem a violação de quaisquer outros dispositivos constitucionais, tem-se um costume constitucional, fonte, portanto, do Direito Constitucional.

Para a caracterização da lacuna a ser preenchida pelo costume, faz-se necessária a análise dos dispositivos constitucionais pertinentes ao tema em análise.[1] Nesse sentido, tem-se que o art. 128, §1º da Constituição estipula que:

§ 1º – O Ministério Público da União tem por chefe o Procurador-Geral da República, nomeado pelo Presidente da República dentre integrantes da carreira, maiores de trinta e cinco anos, após a aprovação de seu nome pela maioria absoluta dos membros do Senado Federal, para mandato de dois anos, permitida a recondução.

Poder-se-ia, num primeiro momento, imaginar que a Constituição tratou o MPU como uma única carreira, sendo clara a interpretação no sentido de que o PGR poderia advir de quaisquer dos ramos do MPU. Ocorre que, ao tratar da composição do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), no art. 130-A, a Constituição expressamente se referiu não à carreira do MPU, mas sim às diversas carreiras que o compõem, nesse sentido:

Art. 130-A. O Conselho Nacional do Ministério Público compõe-se de quatorze membros nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal, para um mandato de dois anos, admitida uma recondução, sendo

II quatro membros do Ministério Público da Uniãoassegurada a representação de cada uma de suas carreiras.

Divisão semelhante entre as carreiras pode ser encontra também no art. 29 do ADCT. Nesse sentido, a própria Constituição reconhece que não há uma carreira do MPU, mas sim as carreiras do MPF, MPT, MPM e MPDFT. Sendo assim, qual a carreira a que se refere o art. 128, §1º? A Constituição é silente. Eis a lacuna a ser preenchida pelo costume constitucional.

Tal lacuna, diga-se, subsiste na Lei Complementar nº 75/93, a qual, em momento algum, declara que o PGR deve ser do MPF. Ela se limita, unicamente a: 1) reproduzir a norma constante do art. 128, §1º da Constituição em seu art. 25; 2) declarar que o PGR é órgão do MPF no art. 43; 3) declarar que o PGR é chefe do MPF no art. 45.

Evidentemente que seria um contrassenso admitir a chefia do MPF por parte de alguém estranho à carreira, postura de violaria, até mesmo, o princípio da igualdade, já que os demais ramos do MPU são chefiados por membros de seus próprios quadros, como expressamente previsto pela referida Lei Complementar. Aliás, em relação ao MPF, há mesmo diversas omissões constitucionais e legais sobre o tema, pois nem mesmo a salutar e democrática lista tríplice organizada pela ANPR, antes mencionada, apresenta previsão legal.

Diante desse quadro, repita-se, há mesmo lacuna constitucional e legal sobre qual a carreira do MPU deve recair a escolha do PGR. Foi um costume constitucional, como dito, que suprimiu tal lacuna.

Como e quando surgiu esse costume? A partir da segunda indicação do Dr. Aristides Junqueira para o cargo de PGR, em 28/06/1991. Para se chegar a tal conclusão, será necessário o aprofundamento dos aspectos objetivo e subjetivo do costume constitucional.[2]

A indicação de membros do MPF para o cargo de PGR atende a esses dois requisitos para geração do costume constitucional. A lacuna constitucional, repita-se, existe. Além disso, ela foi suprimida por um ato do Presidente da República, o qual, reiteradas vezes, adotou postura semelhante, num prazo razoável de tempo e consciente de sua obrigatoriedade.

Nesse sentido, pode-se sustentar que o costume surgiu a partir do momento em que, pela segunda vez, o Poder Executivo adotou a postura de indicar para o cargo um membro do MPF. Tomando como base unicamente a Ordem Constitucional inaugurada com a atual Constituição, a qual deu as feições atuais ao MPU[3], sabe-se que o primeiro PGR pós-88 foi o Dr. Aristides Junqueira, indicado em 20 de junho de 1989 pelo então Presidente José Sarney.[4]

Após o término do primeiro mandato de PGR, o Presidente Fernando Collor o indicou novamente para o cargo, em 28/06/1991, tendo exercido tal função até 28/06/1995. Ora, o chefe do Poder Executivo tinha toda a liberdade de não efetivar a recondução ou de não nomear qualquer membro do MPF diante de tal vacância, ainda mais porque sequer a Lei Complementar nº 75/93 estava vigorando.

No entanto, resolveu indicar, novamente, um membro do MPF. É difícil apontar com precisão quando o costume surgiu. Pode-se sustentar que, com aquela segunda indicação, o Poder Executivo acabou por gerá-lo, vinculando-se a essa prática. O costume teria surgido nesse momento porque, com a primeira repetição do ato, ficou claro que o Poder Executivo entendia ser obrigatória tal conduta. Não fosse assim, o chefe de tal Poder haveria indicado um membro de outro ramo do MPU.

De todo modo, a fixação do momento adequado em que o costume surgiu não é relevante. Basta o reconhecimento de que o mesmo, de fato, existe. Para os que pensam que a mera repetição da já multicitada conduta por uma vez não é suficiente para gerar o costume, basta lembrar que, por quase 25 anos, todos os PGR foram membros do MPF.

Nesse sentido, por onze vezes o Poder Executivo teve a oportunidade de não repetir a indicação de um membro do MPF para o cargo de PGR. Foram elas: 1) na segunda e terceira indicações do Dr. Aristides Junqueira (28/06/1991 e 30/06/1993); 2) nas quatro indicações do Dr. Geraldo Brindeiro (28/06/1995, 27/06/1997, 30/06/1999 e 28/06/2001); 3) na indicação do Dr. Cláudio Fonteles (30/06/2003); 4) nas duas indicações do Dr. Antônio Fernando (30/06/2005 e 22/06/2009); 5) nas duas indicações do Dr. Roberto Gurgel (29/06/2009 e 07/07/2011).[5]

Houve, assim, repetição da conduta pelo Poder Executivo em todas as indicações apontadas. Em quaisquer desses momentos, o Presidente da República não cogitou da indicação de membros dos demais ramos do MPU, fazendo surgir ou consolidando esse costume constitucional. Veja-se bem: nesse período, seis Presidentes da República, de variados partidos e orientações políticas diversas, passaram pelo cargo, sendo que nenhum deles cogitou de não indicar um membro do MPF. Essa postura só pode ser fruto de uma consciência de obrigatoriedade em torno de um uso reiterado.

O efeito prático do reconhecimento desse costume constitucional é: caso a Presidenta Dilma Rousseff indique um membro de outro ramo do MPU para o cargo de PGR, tal indicação afigurar-se-ia inconstitucional, sendo atacável perante o Supremo Tribunal Federal.

É forçoso reconhecer, no entanto, que os demais ramos do MPU têm interesse na eleição do PGR, já que, como dito, este exercerá parcela da chefia administrativa deles. Nesse sentido, na atual quadra constitucional, não há nada que impeça o exercício da capacidade eleitoral ativa de tais membros. Em outras palavras: é um imperativo democrático que eles também possam votar em membros do MPF nas eleições para o cargo de PGR. Eles, por outro lado, não teriam capacidade eleitoral passiva, em face do costume constitucional ora sustentado. Para adquirirem, haveria a necessidade de mudança formal da Constituição e da Lei Complementar nº 75. Outro caminho seria o surgimento de outro costume constitucional, com a reiteração de indicações de um membro de outro ramo do MPU. Essa hipótese é impossível de se efetivar na prática, pois, quando isso ocorresse pela primeira vez, haveria certa e correta impugnação pela ANPR, impedindo a consolidação da reiteração de condutas necessárias para a caracterização do costume.

A interpretação veiculada no parágrafo anterior, evidentemente, não é a mais atraente sobre um viés exclusivamente corporativo, mas não há nada na Constituição e na Lei Complementar nº 75/93 que vede tal sustentação. Na verdade, ela se impõe como uma concretização do regime democrático, o qual cabe a todo o Ministério Público zelar.

[1] Um apontamento semelhante foi feito pelo meu colega Bruno Barros, no seu blog, e pode ser lido aqui.

[2] Nesse sentido, Uadi Lamêgo Bulos aponta que: “Os costumes são, assim, a observância geral, constante e uniforme de uma conduta pelos membros do grupo social, sendo integrados por dois elementos: um objetivo e outro subjetivo. O elemento objetivo, material, fático ou externo, revela-se pela repetição de um procedimento – seria o usus. Já o elemento subjetivo, psicológico ou interno, resulta da convicção generalizada de sua exigibilidade, da crença de que a obrigatoriedade da norma é indispensável – trata-se da opinio juris et necessitatis, que consiste na certeza de que a observância da norma consuetudinária equivale a uma aquiescência jurídica, disto resultando a sua obrigatoriedade. Esta última caracteriza-se, pois, como um elemento interno da norma jurídica consuetudinária, permitindo distingui-la de outras normas de conduta, também costumeiras, como as de natureza religiosa, social, moral, ou dos simples hábitos, de que podem, sem dúvida, resultar consequências jurídicas, embora não constituam normas de direito.

O uso consiste, pois, no elemento objetivo do costume, devendo ser uniforme, constante, público e geral. Uniforme e constante, porque revela a atitude de se agir sempre do mesmo modo, sem qualquer interrupção. A uniformidade e a constância do uso não seriam possíveis sem o exercício, por período razoalvelmente longo, capaz de autorizar a convicção da existência de uma norma estável (diuturnitas temporis); público, haja vista que deve obrigar a todos; e geral, porquanto colima alcançar todos os atos, pessoas e relações que realizam os pressupostos de sua incidência na norma consuetudinária”. BULOS, Uadi Lamêgo. Costume constitucional. Brasília. Revista de informação legislativa. 33 n. 131 jul./set. 1996. p, 97. Disponível em: http://www2.senado.gov.br/bdsf/item/id/176479. Acessado em 05/04/2012.

[3] A Constituição de 1967, com a redação dada pela EC nº 1 de 1969, previa, em seu art. 95, que a indicação poderia recair sobre qualquer cidadão maior de 35 anos, com notável saber jurídico e reputação ilibada, podendo se indicar, portanto, alguém estranho ao MPU.

[5] Todas as datas foram obtidas no sítio da PGR ou em notícias veiculadas na internet.


Luis Nassif

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