Ódio na web: a felicidade dos imbecis, por Muniz Sodré

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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do Observatório da Imprensa

Ódio na Web

A felicidade dos imbecis

Muniz Sodré

Ao lado dos amantes, dos ambiciosos e dos observadores, Taine classificava os imbecis como um tipo básico da vida social. E ainda: para ele, estes últimos eram os mais felizes. Não é uma opinião desprezível, considerando-se o peso que teve o historiador e crítico Hyppolite Adolphe Taine (1828-1893) na vida intelectual europeia da segunda metade do século 19, apesar de suas teses (hoje, desmoralizadas) quanto ao determinismo do clima, do meio natural e do momento sobre o fenômeno humano. Ele morou algum tempo no Rio de Janeiro e teve uma influência considerável sobre o pensamento racista brasileiro em ascensão.

No que diz respeito à diversidade humana, o próprio Taine tinha o seu lado imbecil, mas não era evidentemente um idiota, já que se pode estabelecer alguma diferença entre idiotia e imbecilidade, reservando-se à última o beneplácito etimológico (imbecillis, em latim) do significado de “ingênuo” além dos demais, onde se inclui também “louco”. Tanto assim que se pode levar em consideração a sua opinião sobre a felicidade dos imbecis.

Um exemplo contemporâneo pode ser buscado na internet com suas redes “sociais”, onde há de tudo, mas de tudo mesmo, sobre a radical estranheza do animal humano – do gratificante ao horripilante. Este último adjetivo contempla principalmente o idiota, que a psiquiatria inseria na “tríade oligofrênica” – bem antes da prudência “politicamente correta” – como aquele indivíduo com idade mental inferior a dois anos. O adjetivo deixa a porta aberta para a inclusão do imbecil, que escapa da idiotia por escassa diferença do padrão mental.

Afora a sua evidente utilidade como correio e como arquivo universal, o que a internet e as suas redes vêm revelando é uma concepção de espaço público como “espelho” tecnologicamente ampliado da vida social. Foi-se embora o velho requisito liberal de natureza ético-política, que inscrevia no “reflexo” da imprensa o horizonte autoeducativo da sociedade, para além da mera repetição técnica do existente.

Daí a crítica filosófica à metáfora do espelho: “Quando alguém se olha no espelho não vê o outro de si mesmo, nem mesmo o outro do outro, mas apenas a si mesmo” (Emmanuel Carneiro Leão). A mera reduplicação de si mesmo é uma circularidade vazia, porque prescinde das mediações necessárias a todo ato de conhecer. É a visão que se tem do puro espetáculo – a lógica do funcionamento midiático até agora – capaz de emocionar sem produzir sentimento ou lucidez sensível.

Desprezo à diversidade

Cada vez mais, existir confunde-se com existir no espelho armado por mercado e tecnologia eletrônica. Embora as cabeças possam estar antenadas com a geografia virtual construída pelas tecnologias, os corpos concretos da maioria desigual ainda se espalham em paisagens urbanas degradadas e carentes de espaço público mediador, com rendimentos cada vez mais reduzidos em função das regressões das condições de trabalho. O corpo humano com suas circunstâncias biológicas e históricas (classe social, etnia etc.) não é sincrônico ao desenvolvimento da máquina onde o sujeito contemporâneo tende a habitar virtualmente.

A tecnologia – a última das utopias do capital – deixa de desenvolver-se como conjunto das técnicas de domínio e uso das inovações para se oferecer às maiorias politicamente apáticas como fonte inesgotável dos gadgets de consumo. Evanescem os valores do sociuscomum, que tradicionalmente fomentavam os sentimentos de solidariedade e compaixão.

Numa paisagem que se reivindique como radicalmente humana, torna-se esterilizante o pressuposto de uma forma social única sistemicamente regulada por mercado e tecnologia. Uma sociabilidade limitada a esse escopo exclusivo (aquela que norteia as pesquisas sobre consumo cultural, recepção de mídia, opiniões, gosto e atitudes do público, as variadas práticas e efeitos da rede eletrônica etc.) presta-se à reprodução burocrática ou circular da existência, mas deixa de lado o problema central da coesão social, que se situa na esfera consciente e inconsciente do comum.

É viável a hipótese de que essa paisagem seja o pano de fundo para a emersão da imbecilidade larvar na rede eletrônica. Vem calando fundo em setores ainda lúcidos a disseminação de ódio e preconceito acobertados pelo anonimato das manifestações nas redes sociais.

Foram chocantes, por exemplo, as agressões dirigidas à jornalista Miriam Leitão após ter revelado de modo comedido, mas pungente, detalhes de sua tortura durante a ditadura militar. O que deveria ter provocado reações de espanto e indignação deu lugar à sordidez de insultos desapiedados.

Chocante foi igualmente o episódio da jovem negra que publicou no Facebook uma foto ao lado do namorado branco. A enxurrada de ofensas racistas levou o casal a procurar a Delegacia de Crimes Cibernéticos de Belo Horizonte, para tentar pôr cobro à violência moral.

Fora da rede, mas sem dúvida no interior desse mesmo espírito de desprezo para com a diversidade humana, situam-se as agressões racistas a jogadores de futebol, como acaba de acontecer em Porto Alegre.

Tempo integral

Os exemplos se multiplicam, seria inútil enumerá-los aqui. Interessa, sim, confrontar o chamado “discurso de rede” com a pesquisa recente do MTD/CNT, segundo a qual 73,8% dos usuários entrevistados não acreditam na veracidade do que circula nas redes sociais. Nessa esfera de mídia – pois é realmente de mídia nova que se trata – deixa de existir a credibilidade que sustenta o pacto histórico da imprensa tradicional com seus leitores. Mas faz existir uma pergunta inquietante: se tantos não acreditam, por que tantos aderem ou mesmo se viciam no conteúdo das redes?

Não se pode realmente enunciar uma única resposta para o fenômeno, mas é possível começar a pensar a partir da ausência de mediações institucionalizadas na circulação quase incontrolável de notícias, informações gerais, autorretratos, factoides e conversas. Mediar é o que sempre buscou fazer o jornalismo, com acertos e desacertos. Sem isso, cada um convertido em “mídia pessoal”, mas sem compromisso com uma historiografia veraz, converte-se também ao culto narcísico de si mesmo, fonte conhecida de ódio e de agressão ao Outro. Do narcisismo individual, de classe social e de etnia emerge aos poucos um conservadorismo regressivo sem pudor e sem piedade que destila de um “esqueleto” espectral (a rede, movida apenas por valores de acessibilidade e conexão) afetos sem sentimentos, em que não se consegue enxergar “corpo” social.

É o que nos parece estar acontecendo. Esse sujeito complacente com a própria imagem no espelho tecnológico, mas provavelmente de escasso amor próprio, é o paradigma do imbecil de que falava Taine. E agora com uma variável ultramoderna, que é a imersão na rede. Conectado por 24 horas, babando o seu ressentimento sem maiores riscos, o imbecil é feliz em tempo integral.

***

Muniz Sodré é jornalista e escritor, professor titular (aposentado) da Universidade Federal do Rio de Janeiro

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

11 Comentários

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  1. Propostas de Marina são mais neoliberais que as do PSDB

    Marcio Pochmann: “Propostas de Marina são mais neoliberais que as do PSDB”

    http://www.blogdacidadania.com.br/2014/09/marcio-pochmann-propostas-de-marina-sao-mais-neoliberais-que-as-do-psdb/

       

     

    Após a má repercussão de várias propostas de Marina Silva, ela recuou da maioria. Recuou do recuo sobre os homossexuais, recuou sobre abandonar o pré-sal, mas, até o momento, não recuou da “autonomia do Banco Central”, que a grande maioria dos brasileiros não sabe o que é e, por isso, não sabe o desastre que significaria.

    Trocando em miúdos, um Banco Central independente significa aumentos dos juros muito maiores do que os que ocorrem hoje e, o que é pior, significa o virtual abandono de instrumentos menos perniciosos de combate à inflação.

    Um Banco Central independente significaria que instrumentos de combate à inflação como desoneração de impostos ou importações de produtos que estejam em falta – e que, por estarem em falta, sobem de preço – dariam lugar à pura e simples elevação dos juros ao consumidor, política econômica que, usada sem parcimônia, gera desemprego e recessão.

    Diante disso, o Blog pediu ao economista e ex-presidente do Ipea Marcio Pochmann que analisasse alguns pontos do plano de governo de Marina Silva que dizem respeito à economia.

    Sobre Pochmann, ele se formou em Economia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, concluiu pós-graduação em Ciências Políticas e foi supervisor do Escritório Regional do Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese) no Distrito Federal, além de docente na Universidade Católica de Brasília.

    Também tem doutorado em Ciência Econômica pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), foi pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit), foi pesquisador visitante em universidades de França, Itália e Inglaterra, atuou como consultor no Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e no Dieese.

    No plano internacional, foi consultor em diferentes organismos multilaterais das Nações Unidas, como a Organização Internacional do Trabalho (OIT), o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal).

    Pochmann dirigiu a Secretaria Municipal do Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade do governo da prefeita Marta Suplicy em São Paulo e, a partir de 2007, passou a exercer a presidência do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

    Nas eleições 2012, Pochmann foi o candidato do PT à Prefeitura de Campinas, mas não se elegeu.

    Confira, abaixo, trechos da entrevista.

    *

    Blog da Cidadania – Recentemente, a candidata a presidente Marina Silva propôs independência total para o Banco Central. Como você vê essa proposta?

    Marcio Pochmann – Bem, essa proposição existe há muito tempo no Brasil e, de maneira geral, ainda não havia sido levada para debate em uma campanha eleitoral. Entendo que a independência do Banco Central pode representar um retrocesso na democracia brasileira porque o órgão passaria a ser um aparelho do Estado não mais submetido à aprovação ou à votação popular, significando que os setores que são diretamente subordinados à atuação do Banco Central sejam eles os próprios a exercer o poder de forma independente naquilo que é quase central na política monetária, na política macroeconômica, que é o papel do Banco Central.

    Blog da Cidadania – Você acredita que com um Banco Central independente o país passaria a combater a inflação usando aumento dos juros preferencialmente, antes de qualquer outro instrumento, como importações, desoneração fiscal da cadeia produtiva etc.?

    Marcio Pochmann – De fato, essa independência significaria o estabelecimento de um poder paralelo na política macroeconômica. Nos Estados Unidos, por exemplo, o banco central tem um papel mais amplo do que apenas perseguir a estabilidade monetária. Nos Estados Unidos, o Banco Central tem um papel de perseguir tanto a estabilidade monetária quanto um melhor nível de atividade econômica e do nível de emprego. Nas circunstâncias brasileiras, você retiraria da administração pública ou do Poder Executivo a capacidade de gerir tanto a política monetária [taxa de juros] quanto a política cambial [a relação do real com outras moedas, sobretudo o dólar] e a política fiscal [aumento ou diminuição de impostos]. Portanto, você reduziria o poder do presidente, que é submetido à validação popular, dando esse poder a um setor que não tem nenhum compromisso com a democracia [o mercado financeiro].

    Blog da Cidadania – Você acha que a política econômica que seria adotada por Marina Silva, caso fosse eleita, está clara no programa de governo que ela apresentou?

    Marcio Pochmann – O programa de governo de Marina tem mais de 40 páginas e sobre vários pontos. Na parte econômica, o que fica claro é um neoliberalismo, uma terceirização de parte das atribuições do Poder Executivo. E não só na questão do Banco Central. No caso da política fiscal, o que diz esse programa de governo é grave porque se cria um “conselho de representantes” que retira do secretário do Tesouro Nacional e, portanto, do ministro da Fazenda a capacidade de fazer política fiscal e política cambial, deixando a taxa de câmbio submetida à vontade do mercado financeiro. É, indiscutivelmente, terceirização da gestão da economia.

    Blog da Cidadania – Como você vê a posição manifestada por Marina Silva em relação ao pré-sal, que retira importância da exploração dessa riqueza?

    Marcio Pochmann – Ela faz uma confusão entre a busca permanente e necessária da sustentabilidade ambiental e a capacidade do país de utilizar um recurso limitado que é o petróleo, esquecendo que a humanidade ainda não tem alternativa plena a essa fonte de energia, ainda que existam promessas nessa área. Abandonar a exploração do pré-sal significaria um grave retrocesso e uma brutal redução da atividade econômica no país.

    Blog da Cidadania – Você concorda com a premissa de que Marina Silva é de esquerda?

    Marcio Pochmann – Ela é uma mulher de trajetória progressista. Sempre foi vista como uma batalhadora, uma mulher corajosa, mas, obviamente, não se pode avaliar o governo que faria, com os aliados que tem e com os acordos que fez, a partir da sua trajetória pessoal.

    Blog da Cidadania – Como você vê a frase “Marina tem uma trajetória de esquerda, mas seu programa de governo é de direita”?

    Marcio Pochmann – No que diz respeito às propostas do programa de governo de Marina para a economia, elas são de um radicalismo mais neoliberal do que as do PSDB.

    […]

     

  2. Na mosca!

    E só vai piorar, pois uma nova geração sendo criada nesse ambiente e com celulares de último tipo nas mãos desde os cinco anos de idade.

  3. Seria eu mais um imbecil?

    “Numa paisagem que se reivindique como radicalmente humana, torna-se esterilizante o pressuposto de uma forma social única sistemicamente regulada por mercado e tecnologia”. 

     

    Entendi tudo! Legal esse jeito “errático” e “sonhático” de se expressar!

  4. #somostodosjornalistas

                         Foi-se o tempo onde todo poder de manipulação estava, apenas , na mão de grupos midiaticos de tv e rádio. Hoje em dia, em tempos de redes sociais, basta um texto bem elaborado ou nem isto algumas vezes para virar uma “verdade absoluta” algo que é compartilhado como se fosse pensamento da própria pessoa. Desta forma numa semana temos mlhares de revoltosos com que acontece  na Palestina e na semana seguinte não mais. Vivemos em tempos onde amor e odio tem duração de um tweet ou até o próximo compartilhamento.

  5. #somostodosjornalistas

                         Foi-se o tempo onde todo poder de manipulação estava, apenas , na mão de grupos midiaticos de tv e rádio. Hoje em dia, em tempos de redes sociais, basta um texto bem elaborado ou nem isto algumas vezes para virar uma “verdade absoluta” algo que é compartilhado como se fosse pensamento da própria pessoa. Desta forma numa semana temos mlhares de revoltosos com que acontece  na Palestina e na semana seguinte não mais. Vivemos em tempos onde amor e odio tem duração de um tweet ou até o próximo compartilhamento.

  6. A política que enxergo
    Sempre

    A política que enxergo

    Sempre fui um apaixonado por política, aos 17 anos nem sabia o que era ideologia política, votava no candidato que eu gostava, aprendi a ler muito sobre o assunto, a discutir sobre política, a defender interesses, e com isso a ter uma ideologia, e disso, me orgulho muito, uma vez que na vida sempre tive um lado, nunca fiquei em cima do muro, e desde cedo identifiquei-me com o pensamento de esquerda.
    O momento que vivemos ganha quem é mais atrevido, mais mal educado, quem tem coragem de xingar de corrupto ou até coisa pior, num país que ainda tem tantos analfabetos, é lamentável que os analfabetos políticos não sejam exatamente esses.

    A discussão política está difícil nos dias atuais, na verdade, quase perigosa. Não há a tolerância de se ouvir, um sempre tem de estar errado. Os candidatos estão divididos entre os corruptos ou não corruptos, pior, os políticos são apontados todos ou sua grande maioria como corruptos, mas sinceramente, serão mesmo?

    Discutir política não é xingar, não é falar mais alto para espantar alguém que pense diametralmente oposto a você, não é tentar convencer, discutir política é argumentar o porquê do voto, o porquê acredita naquele programa de governo, o porquê você segue aquela linha de pensamento.

    Votar em um candidato não significa necessariamente concordar com todas as suas decisões, mas sim acreditar que ele representa a melhor opção política àquele momento do país, da nação, e isso pode estar muito vinculado as suas origens, o meu caso, ou, a sua experiência de vida.

    Ter uma visão progressista de esquerda hoje, é quase um crime entre a elite econômica, o pensamento de grupo não permite que você exponha suas ideias, sob o risco de ser taxado de ignorante, analfabeto político, ou até mesmo, corrupto como “eles”. 
    É, assim não dá para conversar!

    Então a política, que é algo social, que deveria ser discutido entre todos, não importando a vertente do pensamento, vai ficando cada vez mais restrita aos iguais, a ideia do pensamento único cresce e vai em direção a perfeita eugenia. Isso não formará cidadãos melhores, politicamente falando, mas um bando de idiotas políticos, que apenas procuram os seus semelhantes para poderem se auto-afirmar como seres politicamente pensantes.

    Como é gostoso e saudável discutir diferenças de forma harmoniosa, ao fim, todos saem ganhando e sabendo um pouco mais sobre o outro.

    1. Os tucanos estavam acabando com a classe média, votem neles

           A classe média tava na pindaíba com os tucanos, tudo virando pobre e ainda se deixam convencer pela direita de que os tucanos são os salvadores dos coxinhas, é ou não é pra ter raiva ?

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