Três anos sem Marielle Franco: o legado de uma nova forma de lutar e de fazer política

Marielle trouxe a favela para dentro de uma instituição retrógrada, engessada, articulada a partir do racismo institucional, onde os corpos negros são vistos em lugares de subalternidade (Mônica Francisco)

do CEE Fiocruz

Três anos sem Marielle Franco: o legado de uma nova forma de lutar e de fazer política

por Eliane Bardanachvili

O assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ) e do motorista Anderson Gomes, em 14 de março de 2018, no bairro do Estácio, no Rio de Janeiro, se buscou aniquilar um processo de transformação no modo de se olhar para as favelas e periferias do país, acabou desencadeando e fortalecendo uma nova forma de lutar por direitos e de fazer política, a partir de uma relação de mão dupla entre esses espaços e os espaços institucionais. Essa conquista em curso, bem como a importância de Marielle e de sua luta interrompida, foi tema do encontro promovido pelo Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz e pelo Dicionário de Favelas Marielle Franco (Icict/Fiocruz), em 22/3/2021, que reuniu a deputada estadual Mônica Francisco (PSOL-RJ) com a pesquisadora do CEE-Fiocruz Sonia Fleury, coordenadora do Dicionário, e os pesquisadores e ativistas Cleonice Dias, militante há quarenta anos na Cidade de Deus, também da equipe de coordenação, e Itamar Silva, do grupo ECO-Santa Marta, integrante do conselho editorial.

O brado Não seremos interrompidas! ecoou e ganhou força logo após a morte de Marielle e mobilizou de imediato homens e mulheres, brancos e pretos, na busca por um país mais justo e democrático, como assinala Mônica. “Marielle trouxe a favela para dentro de uma instituição retrógrada, engessada, articulada a partir do racismo institucional, onde os corpos negros são vistos em lugares de subalternidade”, analisa ela, que traz em seu histórico o ativismo no morro do Borel, Zona Norte do Rio de Janeiro, onde nasceu, e a atuação junto a Marielle Franco, marcados pela necessidade de enfrentamento a uma “lógica de violação”, que barra “o corpo negro” na entrada da Câmara de Vereadores, como exemplifica. “As violências estão colocadas. Deixam de ser só simbólicas para serem concretas e efetivas”.https://www.youtube.com/embed/5U2_O3PytDA

A deputada integra a Comissão de Trabalho, Legislação Social e Seguridade Social na Assembleia Legislativa, pela primeira vez presidida por uma mulher negra, “que foi empregada doméstica, auxiliar de serviços gerais, além de outros trabalhos precariados, e que recebeu cheque cidadão”, como define. “A comissão tem outra cara depois da gente e com quem veio com a gente para construir outra proposta”, observa. “Estamos na produção do Dossiê do Trabalho Doméstico. Um milhão e meio de trabalhadoras domésticas estão desempregadas nesse um ano de pandemia, foi a segunda categoria que mais pediu auxílio emergencial”, aponta.

Mônica observa o quanto a execução de Marielle está atrelada a uma tentativa de ruptura das conquistas que vinham sendo alcançadas, em um contexto de “estremecimento da democracia”, como define. “Isso vinha num crescendo, desde 2013. E, em 2016, o golpe institucional que retira os direitos da presidenta Dilma marca ainda mais essa fratura na democracia brasileira. Isso vai se aprofundando, vem a execução de Marielle e, depois, a prisão do presidente Lula. Há um aviso, uma sinalização forte em relação à fragilidade da nossa democracia”.

Marielle trouxe a favela para dentro de uma instituição retrógrada, engessada, articulada a partir do racismo institucional, onde os corpos negros são vistos em lugares de subalternidade (Mônica Francisco)

Defender institucionalmente os direitos humanos, a diversidade e a cidadania plena, o direito à agua, à moradia, à terra, à vida, ao corpo passa a ser “uma afronta a determinados setores, religiosos, milicianos e políticos”, aponta a deputada. Nesse processo de ruptura, ela destaca a importância da “disputa” pelo uso do termo mandata, em vez da palavra no masculino, em referência ao exercício de um cargo político. “Feminilizar a palavra, para ressaltar a ocupação de mulheres nesse espaço. E que mulheres? As que trazem no seu corpo as marcas da insurgência, daquelas que saem das margens e vão para o centro da ação, mas também das violências, das segregações e das barreiras sociais. Marielle trazia no seu corpo a marca do lesbianismo, era uma mulher lésbica assumidamente, e trouxe para a sua mandata a pauta lésbica como pauta política, para garantir ações que dessem visibilidade às violências perpetradas contra essas mulheres; ela vai colocar na ordem do dia a pauta do estupro coletivo, do lesbocídio, da violência materna”.

Feminilizar a palavra [mandata], para ressaltar a ocupação de mulheres nesse espaço. E que mulheres? As que trazem no seu corpo as marcas da insurgência, daquelas que saem das margens e vão para o centro da ação, mas também das violências, das segregações e das barreiras sociais (Mônica Francisco)

Mônica explica que a mandata de Marielle tinha como premissa a discussão dos eixos negritude, favelas e periferias, gênero, raça e classe, pautando-se pela interseccionalidade – mais do que pelas lutas identitárias. “Não se trata de política identitária, mas da classe trabalhadora com seus vários recortes, que tem que ser vista à luz da interseccionalidade. A classe trabalhadora é preta e parda, pobre, nordestina, é feminina majoritariamente. O que a gente está dizendo é que a violação tem cor, tem gênero”, explica.

A deputada destaca que a execução de Marielle se deu pouco tempo depois de a vereadora ser eleita relatora da Comissão de Acompanhamento da Intervenção Militar na Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro. “O ativismo de Marielle, sua relação histórica com a pauta dos direitos humanos, sobretudo nas violações atreladas à segurança pública, buscava responder ao clamor das favelas e das periferias, em relação ao medo, à insegurança, à falta de transparência desse processo violador”, considera Mônica Francisco, destacando a própria figura de Marielle Franco como mais um elemento de confronto na luta por essas causas. “Marielle era uma mulher alta, que se impunha”, define, apontando a pertinência em se tratar a morte de Marielle como “assassinato político”.

Para ela, “uma série de interveniências na investigação [do assassinato] colocam em xeque a lisura do processo, desde o manejo do corpo, até o escâner pelo qual o corpo deveria passar para a necropsia, que não funcionava, mais os depoimentos, as controvérsias, as trocas na Polícia Civil”, enumera. “A atuação política no Brasil, sobretudo de mulheres negras, a partir da execução de Marielle, passa a ser uma atuação de alto risco”, diz. “Nossos corpos vão vivenciar violências impetradas contra nós, não importa onde estejamos ou quem nós sejamos. Vai ser mais um corpo de mulher preta, matável e violável, seja na universidade do Texas, seja em Japeri”.

Em nossa luta por denunciar um Estado genocida, que matava e continua matando sem piedade nas favelas, lidamos com uma tentativa de reorganização do movimento e com uma explosão de novas formas de representar as favelas, em que os grupos de mulheres foram muito eficientes (Itamar Silva)

Itamar Silva faz um retrospecto para observar que, até a chegada de Marielle à Câmara de Vereadores, com propostas para inovar a forma de fazer política, voltada ao coletivo, a trajetória do movimento de favelas e a busca por se elegerem representantes desses locais haviam se mostrado pequenas. “Podemos citar Benedita da Silva, em 1982, e alguns outros nomes entrando na política. Mas não propuseram uma mudança real, o que Marielle trouxe de maneira muito forte e eficiente”, avalia. “A mandata da Marielle foi um exercício de cidadania e uma busca por demonstrar que era possível fazer política com a inclusão dos favelados e das faveladas de forma explícita”.

Itamar observa “um momento muito particular” no movimento de favelas, no período que vai do final dos anos 1990 até 2013, em que, ao lado de “algumas conquistas institucionais”, a
“violência sobre os corpos negros” predominou. “Em nossa luta por denunciar um Estado genocida, que matava e continua matando sem piedade nas favelas, lidamos com uma tentativa de reorganização do movimento e com uma explosão de novas formas de representar as favelas, em que os grupos de mulheres foram muito eficientes”, destaca, lembrando da atuação de Mônica Francisco na implementação da proposta de economia solidária – que tem como princípio a centralidade do ser humano, na geração de trabalho e renda – no Rio de Janeiro. “Você foi uma das vozes que veio da favela e deu forma a isso, levando o tema para dentro das favelas. É uma mudança”.

Temos que fazer um exercício pedagógico de trazer essa população para um posicionamento cidadão, crítico (Itamar Silva)

Para Itamar, os 40.630 votos obtidos por Mônica Francisco na eleição de 2018, em sua primeira experiência no Legislativo, representaram “uma resposta ao que estava sendo gestado na mandata de Marielle Franco” e uma responsabilidade. “Nós, homens negros favelados, mulheres negras faveladas, mulheres brancas comprometidas com a transformação social, homens brancos comprometidos com a transformação social e com a inclusão de todos no processo civilizatório, temos o compromisso de garantir que esse processo se aprofunde e avance sobre os territórios populares. É fundamental disputar cada coração, cada mente dentro da favela. Temos que fazer um exercício pedagógico de trazer essa população para um posicionamento cidadão, crítico”, analisa.

Essa nova forma de fazer política traz para dentro da institucionalidade o modo de atuação na favela: construções coletivas, em diálogo com quem é agente nesse território (…) Imprimimos na política nossa forma de atuar. É o que a gente sabe fazer (Mônica Francisco)

Mônica Francisco realça a importância de não se confundir a mudança desencadeada por Marielle com uma nova política. Trata-se, sim, reafirma, de uma nova forma de fazer política. “A política é a mesma, a estrutura de poder é a mesma, historicamente. A política é o lugar estabelecido dos poderosos, das elites econômicas e políticas, de perpetuação de poder, e extremamente violenta. É a barganha, a troca. Não existe nova política. Existe a política”, observa.

E, para a deputada, essa nova forma de fazer política tem suas raízes na favela e é, assim, na verdade, um caminho conhecido por quem vive lá. “Essa nova forma traz para dentro da institucionalidade o modo de atuação na favela: construções coletivas, em diálogo com quem é agente nesse território. Marielle intensifica isso, em sua capacidade de mediação. Imprimimos na política nossa forma de atuar. É o que a gente sabe fazer”.

Mônica fala de uma “essência favelada, que se resume no papo reto e no proceder” e que a política institucional não consegue decodificar. “Isso explode em 2018, com a nossa eleição. O corpo tão invisível, tão invisibilizado, subalternizado de Marielle dá uma pane nesse sistema que não consegue compreender, dentro de sua lógica de política, o que é isso. Que invencionice é essa? Que mandata é essa?”.

Esse caminho inclui também o afastamento do modelo das associações de moradores como representação dos habitantes das favelas, para um outro paradigma, sustentado no lema Nós por Nós e na ideia de formação de redes, construção de pontes, como explicam Mônica e Itamar. “A associação de moradores é um espaço muito importante, de memória, legítimo na sua articulação como personalidade jurídica das favelas, mas é preciso compreender que novas formas de relação vão se consolidando, uma outra dinâmica, diferente da que permeou a relação com as associações de moradores historicamente”, observa a deputada.

O ‘Não seremos interrompidas!’, o ‘Eu sou porque nós somos’ são a marca da Marielle, em cada novo coletivo que surge para dar um sentido à luta das favelas, das periferias. Isso ultrapassa a morte. É o princípio de uma nova forma de lutar, onde coletivos, redes, teias propõem uma cidade em movimento, que não é consenso, que é contradição (Cleonice Dias)

Cleonice Dias, que milita há quarenta anos na Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, e, na equipe coordenadora do Dicionário de Favelas, representa o campus da Fiocruz Mata Atlântica, traçou uma linha do tempo da atuação de Marielle, desde 2006, quando a vereadora, então integrante do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (Ceasm), fora indicada pelo coletivo para fazer a campanha de Marcelo Freixo [candidato a deputado estadual pelo PSOL-RJ], tendo, então, sua inserção na Comissão de Direitos Humanos, na equipe do deputado depois de eleito. Em 2008, acompanha a criação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) e a CPI das milícias, presidida por Freixo. Em 2016, ainda integrando o mandato de Freixo, prossegue Cleonice, Marielle apresenta ao coletivo sua intenção de se candidatar a vereadora. “Ela foi a quinta mais votada e passou a presidir a Comissão da Mulher”.

Cleonice destaca, ainda, a organização por Marielle de seminários para discutir direitos, em especial, o direito à favela, e “colocar a favela na centralidade do espaço da política e do poder”. Foi ao sair de um desses debates, em 14 de março de 2018, que a vereadora foi assassinada. “Ela estava na Casa das Pretas, em um seminário de jovens, negras”, recorda, também destacando a força da figura de Marielle. “Ela traz para a política aquela simpatia, aquele riso amplo, a beleza e a garra da mulher que enfrenta as contradições em sua raiz. E a gente traz essa força dela”, analisa Cleonice. “Marielle tinha o protagonismo para o passo adiante, um alinhamento com todas as pessoas de favela, que veem nela uma referência. Ocupou e ampliou esse espaço e foi para o improvável, para o lugar da disputa de poder. Acabou tendo um alinhamento identitário também com mulheres brancas, com homens brancos, por uma questão de empatia, porque era uma referência inspiradora”, define.

Para Cleonice, Marielle foi “assassinada em seu futuro”, pelo que representava, com a expectativa de que aquela morte imobilizasse e calasse. “O Não seremos interrompidas!, o Eu sou porque nós somos são a marca da Marielle, em cada novo coletivo que surge para dar um sentido à luta das favelas, das periferias. Isso ultrapassa a morte. É o princípio de uma nova forma de lutar, onde coletivos, redes, teias propõem uma cidade em movimento, que não é consenso, que é contradição”.

“O governo sinaliza que é preciso se armar para se defender, que existe um perigo que vem dos pobres (Cleonice Dias)

A ativista e professora alerta para um processo em curso, no qual o poder central, em Brasília, vem buscando centralizar toda a política de proteção social para transformá-la em assistencialismo. “Vamos perdendo os direitos que conquistamos durante muitos anos”, observa, destacando a PEC 816, pela qual “o governo, para dar [de auxílio emergencial] R$ 250 em quatro meses, o que corresponde a 25% da cesta básica, negocia outras PECs que também retiram direitos”. A isso, ela acrescenta a iniciativa governamental de armamento da população: “O governo sinaliza que é preciso se armar para se defender, que existe um perigo que vem dos pobres”.

Mônica Francisco destaca a “avalanche” de mandatos coletivos de mulheres, ou “mandatas”, que vem se observando nos últimos anos, como os grupos Juntas [que reúne cinco mulheres dividindo uma cadeira na Assembleia Legislativa de Pernambuco], e Muitas [com sete na Assembleia de Minas e cinco, na Câmara dos Deputados]. “O que é essa gente chegando, com capacidade de insurgência, resistência e resiliência? Acabamos tendo que enfrentar, como no nosso caso, um deputado, homem branco, classe média, bem barbeado, com terno bem talhado, ter a tranquilidade de dizer que eu havia sido eleita porque tinha relação com o tráfico. Falaram isso da Mari, vão falar isso de todas nós. Não conseguem entender essas articulações moleculares que a gente vai fazendo”.

A herança de Marielle do “protagonismo para o passo adiante”, mencionada por Cleonice, também orienta o entendimento de que ”não podemos parar para ficar chorando nossas dores por muito tempo”, como destaca Mônica. Ela lembra de episódios como o do incêndio no Centro de Treinamento do Flamengo, que matou dez adolescentes, em 2019, e a morte das meninas Rebecca e Emily, por bala perdida, durante o que seria uma operação policial, em dezembro de 2020, entre outros. “A gente não tem muito tempo para chorar as mortes. Tem que correr atrás para sanitizar o Santa Marta, para atender a mulherada com menino no braço, batendo na porta. É o protagonismo do passo adiante, mesmo”.

A luta de vocês por ocupar esses espaços nos quais não deveriam estar, por princípio, é a luta da democracia brasileira, a luta de civilizar este país e torna-lo um país democrático. (Sonia Fleury)

A propósito de discriminação e preconceito, a pesquisadora do CEE-Fiocruz Sonia Fleury compartilhou sua experiência como integrante do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, criado em 2003, no primeiro mandato do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, reunindo representantes da sociedade civil. “A primeira coisa que fizemos foi identificar quem era de esquerda e criar o Conselhinho, que se reunia antes do Conselhão e acordava como iríamos lidar naquele ambiente de homens, empresários, banqueiros etc.”, conta Sonia.

Entre os participantes, conforme relata, encontrava-se a médica Jurema Werneck, diretora-executiva da Anistia Internacional, e, na época, coordenadora da ONG Criola. “Claro que eu não esperava que as pautas que defendíamos fossem aceitas pelo presidente do Itaú ou da Fiesp, mas o que mais me chocou foi que, quando eu falava, porque eu era branca, professora universitária, eles ouviam. Mas quando a Jurema Werneck falava eles levantavam e diziam: ‘Isso já é demais!’. E saíam acintosamente! Não é que meu discurso fosse mais organizado, porque eu tinha a mesma titulação que a Jurema tem – nós duas éramos doutoras. Foi um choque. A questão racial é uma moeda que leva a desvalorizar a pessoa antes de ela falar. Ela é preta, se veste como preta, tem cabelo dread, e é impossível se lidar com isso nessa sociedade”, observa. “A luta de vocês por ocupar esses espaços nos quais não deveriam estar, por princípio, é a luta da democracia brasileira, a luta de civilizar este país e torná-lo um país democrático”.

Falou-se em isolamento, em lavar as mãos, usar álcool gel, como se as pessoas não tivessem que sair das favelas e se meter no navio negreiro do transporte público para poder sobreviver (Sonia Fleury)

Sonia lembra que o Dicionário de Favelas, concebido antes da morte de Marielle (contando, inclusive, com um texto dela), ganhou o nome da vereadora como forma de se assumir um compromisso público de que “a voz que tentaram calar não seria calada”. Sonia relata que, ao começar a frequentar as favelas, no advento das UPPs, deu-se conta de como, por mais que tivesse participado da luta para construir o SUS, desde o início, essa luta institucional estava muito distante do cotidiano das favelas. “Eu ouvi vocês falando e me maravilhei: como intelectuais que refletem sobre suas práticas, a partir do cotidiano, representavam a verdadeira transformação, molecular, que vem de baixo e cria novas formas de desenrolar. Havia ali uma cidadania insurgente”.

A produção do Dicionário de Favelas Marielle Franco agregou novos aprendizados, em especial, mais recentemente, com a pandemia de Covid-19. “A equipe do dicionário vinha sempre solicitando às favelas que participassem do dicionário, que escrevessem, mas, durante a pandemia, muito nos impressionou que nós é que fomos ocupados pela favela! As pessoas viram no Dicionário Marielle Franco uma forma de levar sua voz para outros locais, não só para pedidos de ajuda, mas para mostrar sua forma de ver a pandemia, muito distinta daquela como a mídia ou outros intelectuais tratavam”.

Sonia refere-se ao fato de as vozes das favelas terem, desde o início, desmontando a ideia de que a pandemia era democrática, por atingir pobres e ricos igualmente. “Textos de vários intelectuais da favela, no Dicionário, mostraram que nada havia de democrático nisso. Ao contrário, acentuaram-se as diferenças, as desigualdades, a dominação de classe, o não acesso às políticas públicas, políticas que não foram formuladas pensando na especificidade daquelas comunidades. Falou-se em isolamento, em lavar as mãos, usar álcool gel, como se as pessoas não tivessem que sair dali e se meter no navio negreiro do transporte público para poder sobreviver”.

Como construir, desde a base, uma unidade das massas, em torno de um projeto de classe, de raça, de transformação do Brasil? Como chegar na população destinada ao genocídio e conseguir construir uma transformação não só da pandemia, mas também do pandemônio? (Sonia Fleury)

Para Sonia, foi “impressionante” a resposta da favela à pandemia: “A ideia do nós por nós, de construir coletivos, redes, de avançar nas tecnologias de sanitização, na forma de comunicação, na construção de conhecimento, na vigilância epidemiológica, que passou a ser feita pela própria favela, para levantar quantos óbitos, quantos casos. Uma coisa fantástica”, analisa, destacando, no entanto, que também o “pandemônio” está nas favelas.

“O pandemônio do autoritarismo, do negacionismo, da ignorância. Na favela, em grande parte dominada pelos apoiadores do governo federal, que tem uma base grande entre os reacionários neopentecostais, dissemina-se a ideia de que não se deve tomar vacina, que a vacina tem um chip e coisas assim”. E indaga: “Como, desde a base, construir uma unidade das massas, em torno de um projeto de classe, de raça, de transformação do Brasil? Como vamos chegar na população dominada por alguma ideia que a recoloca em um lugar de corpos negros que podem ser mortos? Se as insurgências ficam restritas a grupos mais intelectualizados, nós não conseguiremos fazer uma resistência. Como chegar na população destinada ao genocídio e conseguir construir uma transformação não só da pandemia, mas também do pandemônio? Não é que espero que alguém saiba responder, mas algo que agonia todos nós”.

Para Cleonice, duas forças emergiram “na pandemia e no pandemônio”, com grande potência: os jovens, com a comunicação digital, e novas organizações de mulheres para fazer proteção social. “Estamos retrocedendo à década de 70, na luta que temos que fazer. Mas temos forças com as quais não contávamos, como a juventude. E temos que voltar às comunidades eclesiais de base, a perguntar às pessoas como vamos seguir a partir daí”, considera, destacando lutas a serem levadas à frente, pelo direito à terra na favela, pelo direito à água, contra a privatização do saneamento e pela centralidade da casa. “Não dá para saber que nove, onze pessoas vivem em uma casa de poucos metros quadrados”.

Cleonice destaca, ainda, a importância de Marielle Franco para a sua vida. “Todas as vezes que acho que vamos ratear, vejo a imagem daquela mulher. Que força, que garra, que poder ela tinha! E como conseguia chamar a atenção para o que defendia!”.

Para Itamar Silva, o movimento de mulheres trouxe para luta um ensinamento. “Elas no ensinam cotidianamente que uma dá a mão para a outra. E esse encadeamento ganha concretude no movimento de favelas, de uma forma muito contundente”, observa. “A expansão de uma cidadania negra, feminina é uma insurgência que o movimento de favelas está apresentando; esse fazer do nosso jeito, um estilo que não conseguem aprisionar porque não dominam. Mônica, como deputada, carrega um pouco essa responsabilidade. Temos uma estrada muito longa”.

Mônica Francisco lembra que Marielle passou a ser “um marco teórico e político”, uma vez que “tem muita gente estudando, elaborando, pensando sobre o que foi essa passagem” e promoveu também mudanças no “vocabulário político”, referindo-se ao termo feminicídio político para nomear a violência sofrida pela vereadora. “Marielle se torna símbolo da luta pelos direitos humanos no mundo. Ela é nossa, mas é do mundo também”.

Redação

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