Uma breve história do carro em São Paulo

Sugerido por Marcos Costa

de Benedito Lima de Toledo

Uma cidade, milhões de carros: a influência do carro na evolução urbana de São Paulo

A cidade de São Paulo é um palimpsesto – um imenso pergaminho cuja escrita é raspada de tempos em tempos, para receber outra nova, de qualidade literária inferior, no geral. Uma cidade reconstruída duas vezes sobre si mesma, ao longo de um século.

Uma cidade capaz de criar um parque como o Anhangabaú, um dos mais belos centros de cidade das Américas, para destruí-lo em poucas décadas, e sem necessidade, apenas por imediatismo e imprevidência. Capaz de criar uma Avenida como a Paulista, única por sua posição na cidade e insubstituível em sua elegância, para aos poucos destruí-la minuciosa e repassadamente. E, sem remorso.i

Benedito Lima de Toledo

A crise de 29 quebrou o mercado internacional do café. Isto enfraqueceu a oligarquia paulista, o que se tornou ainda mais evidente após a revolução de 30, quando um novo grupo social urbano acabou com a política do café com leite. No plano da política externa duas Grandes Guerras Mundiais traçam um novo desenho da geopolítica, de onde emergem dois protagonistas: a União Soviética e os Estados Unidos da América. Os últimos rapidamente ocupam o espaço das potências europeias como novo modelo político, econômico e cultural a ser seguido. Gradativamente São Paulo irá substituir sua estrutura urbana, de forte caráter europeu, por uma visão que privilegia a concepção de um sistema viário em que o automóvel se transforma no elemento fundamental para a coesão da cidade, tal qual nas cidades norte-americanas. Os parques centrais, e as áreas verdes passam a ser vistos como áreas a serem destinadas para a construção de avenidas. Os rios também sofrem com as dezenas das chamadas “avenidas de fundo de vale” que destroem suas margens. Muitos deles, desaparecem de fato, submersos em toneladas de concreto utilizadas para criar lajes sobre as quais os automóveis podem circular com conforto. O desenvolvimento da cidade promove uma segregação urbana muito clara: no eixo sudoeste temos as classes mais ricas enquanto no sentido leste as mais pobresii. A maior parte dos bens da cidade está na zona sudoeste, já na zona leste há uma carência enorme de bens e serviços públicos. Surgem as primeiras vilas operárias da cidade. A periferia se transforma na principal opção de moradia para os operários. No final dos anos 20 a mancha urbana de São Paulo se expande para muito além dos limites da acrópole históricaiii. É a cidade que se transforma em metrópole.

Para os mais ricos, novos padrões urbanísticos são introduzidos na cidade. Em 1898 Ebenezer Howard publica sua proposta para uma cidade que unia as vantagens do campo e da cidade, permitindo um contato mais direto com a natureza, a Garden-City (Cidade-Jardim)iv. Este modelo urbano chega a São Paulo trazido diretamente pelos urbanistas contratados por Howard para projetar, em 1904, a primeira cidade-jardim, Letchworth: Raymond Unwin e Barry Parker. Em 1915 eles projetam o bairro do Jardim América, incorporado pela The City of São Paulo Improvements & Freehold Land Co. Ltd vulga Companhia Cityv. A Companhia City também foi responsável também pela construção dos Bairros do Jardim Europa, e do Pacaembu, este último projetado por George S. Dodd. Estes bairros tinham como característica a sinuosidade de seu traçado o que, no caso do Pacaembu, permitiu uma espetacular implantação em terreno de grande declividade, onde as ruas se acomodam tranquilamente à encosta do Vale do Pacaembu. Além disso, havia uma grande quantidade de áreas verdes, que ocupavam os vastos terrenos cujo centro, em geral, era ocupado pela edificação. Além destes a City incorporou e construiu vários outros bairros na cidade.

A várzea do Rio Tietê passa a ser objeto de estudos urbanísticos e de saneamento. O primeiro deles data de 1894 e ficou à cargo do engenheiro João Pereira Ferraz e consistia, basicamente, em um projeto de retificação do leito do rio. Em 1913 o Eng. Pacheco e Silva é o primeiro a projetar um parque linear às margens do Tietê. Ele também previa uma linha de bonde, eclusas e um cais junto ao Tamanduateí. Em 1922 o Eng. José Antônio de Fonseca Rodrigues, faz uma proposta que pretendia controlar as grandes cheias do rio através de um sistema de diques e canais reguladores. Sobre eles seria aberta uma avenida . No ano seguinte o Eng. João Florence de Ulhôa Cintra critica a proposta de Rodrigues, através de um novo projeto que mantinha a sinuosidade do rio mas previa o alargamento de seu leito. Margeando-o estaria uma parkway(avenida parque)vi. Em 1923 é criada a Comissão de Melhoramentos do Tietê cujo objetivo era eliminar as inundações, ao mesmo tempo em que permitia a navegação e previa o lançamento dos esgotos para jusante. À frente da Comissão foi nomeado Francisco Saturnino de Brito cujo projeto previa a eliminação dos meandros do Tietê, o que reduziria sua extensão de 46,3km para 26km. Ele alargava a calha do rio e através de um grande aterro criava dois lagos que funcionariam como reguladores da vazão, além de servirem como área de lazer pública. Brito mantém as avenidas marginais previstas por Ulhôa Cintra e, sabiamente, preserva as várzeas do rio criando um grande parque urbano.

Mas seria Francisco Prestes Maia o executor das ações que substituiriam as diretrizes urbanísticas de cunho estético e sanitarista, claramente influenciadas pelos modelos europeus, pelas variáveis de caráter rodoviaristavii. Assim ele publica entre 1924 e 1926, em parceria com João Florence de Ulhôa Cintra uma série de artigos com o título Um problema atual. Os grandes melhoramentos de São Paulo. Neste trabalho eles buscam estabelecer diretrizes para o veloz crescimento da cidade. Ao centro da cidade é dada grande relevância e a alternativa apresentada é a criação de um anel ao seu redor, por eles definidos como perímetro de radiação, responsável por distribuir os fluxos circulatórios que convergem para a região. A partir deste anel partiriam várias vias radiais que conectariam o centro às periferias, permitindo ainda a criação de grandes eixos perspectivos que ordenariam a paisagem da cidadeviii. Este programa ganha força quando Prestes Maia assume a Prefeitura em 1938. Ao longo das próximas décadas ele comandaria a prefeitura em três oportunidades de 1938 a 1941, de 1941 a 1945 e de 1961 a 1965. Neste período ele impôs uma avassaladora agenda de obras para a cidade: construiu as avenidas do primeiro anel perimetral (avenidas São Luis, Ipiranga, Mercúrio, Senador Queiroz, Viaduto Da. Paulina e Rua Da. Maria Paula); Av. Duque de Caxias; remodelação do parque do Anhangabaú para a abertura da Av. Prestes Maia; Av. Gal. Olímpio da Silveira; Ponte das Bandeiras, Cidade-Jardim e Rebouças; alargamento das Ruas Xavier de Toledo, Viera de Carvalho, da Liberdade; conclusão da Av. 9 de julho e de seu túnel sob a Av. Paulista; retificação e canalização do rio Tietê; construção das avenidas radiais Leste e Sul (23 de maio); conclusão do Estádio do Pacaembu; Biblioteca Mário de Andradeix. Prestes Maia ajudou definiu a fisionomia da metrópole paulista que ao final de seu último mandato já se conectava com outras cidades vizinhas. A área entre a Praça da República, por ele reformada, e o Anhangabaú, ganhou importância e passou a ser conhecida como Centro Novo. O automóvel era o elemento que garantia a coesão urbana, tendo sido protelados os planos para a construção de uma rede de Metrô. Em 1950, quando o Prefeito era Lineu Prestes, foi encomendado um estudo ao International Basic Economic Corporation, IBEC, uma empresa dirigida por Nelson Rockfeler. Robert Moses foi o responsável pela elaboração do estudo. Este preconizava um zoneamento baseado no de Nova York, e um sistema de transporte público calcado no uso de ônibus que deveriam ser importados. O modelo metropolitano adotado incentivava a criação de subúrbios verdes, afastados do centro e conectados através de vias de trânsito rápidox. Este modelo possuía grande coerência com as propostas e as obras de Prestes Maia.

São Paulo se transformou no principal polo industrial do Brasil, mantendo sua liderança econômica nacional alcançada com o café. A metrópole paulistana se transforma em um imã poderoso, que atrai brasileiros de todas as partes, em especial do nordeste. Este fluxo migratório intenso permitiu a expansão de seu parque industrial, ao fornecer a mão de obra e os consumidores de seus produtos. Assim estavam dadas as condições para o espraiamento da mancha metropolitana. Curiosamente São Paulo atrai para as suas periferias tanto as classes ricas quanto as pobres. As primeiras, sempre ocupando o setor sudoeste, vão utilizar-se da infraestrutura viária para ocupar condomínios fechados que prometem uma vida de saúde, lazer e harmonia. Com seus carros percorrem dezenas de quilômetros diariamente desde suas casas até a capital. Já os mais pobres também vão para as periferias pois ali encontram imóveis de baixo custo, inexistentes nas áreas mais centrais. Pouco a pouco o centro de São Paulo, que já havia visto o enfraquecimento de seu papel de depositário da memória urbana, perde também a sua atratibilidade comercial, entrando em processo de decadência. A ocupação desordenada não leva em consideração os aspectos ambientais, sociais e culturais, servindo exclusivamente à exploração imobiliária. Dada a atrofia de seu sistema de transporte público (a primeira linha de Metrô foi inaugurada apenas na metade dos anos 70) a população é levada a utilizar o automóvel. O aumento da população vem acompanhado de um aumento ainda maior da frota de veículos. A região metropolitana de São Paulo vive desde a última década do século XX, um progressivo esgotamento de seu modelo urbano implementado a partir dos anos 30. As alternativas apresentadas ao longo do início do século XXI, como a ampliação da Marginal Tietê ou os túneis sob a Av. Faria Lima, agudizam este processo.

Em junho de 2013 este esgotamento transbordou em manifestações que levaram milhares de pessoas às ruas de São Paulo. O gatilho deste processo foi o aumento da passagem de ônibus para R$ 3,20, mas não era apenas isto. O preço da passagem foi o catalizador de um descontentamento generalizado com as cidades e com o poder institucionalizado (os partidos políticos e seus políticos e a imprensa), incapaz de formular e executar as ansiadas mudanças urbanas e sociais. A metrópole precisa mudar mas ainda não definiu um consenso político sobre como fazê-lo.

Notas:

iTOLEDO, Benedito Lima de. São Paulo: três cidades em um século. 2ª ed. Aum. São Paulo: Duas Cidades, 1983.

iiREIS FILHO, Nestor Goulart. São Paulo, Vila, Cidade, Metrópole. São Paulo: Takano Editora Gráfica, 2004.

iiiSAIA, Luís. Morada Paulista. 2ª edição. São Paulo: Perspectiva, 1978.

ivCHOAY, Françoise. O Urbanismo: utopias e realidades uma antologia. 5ª edição. São Paulo: Perspectiva, 1998.

vTOLEDO, Benedito Lima de. Prestes Maia e as origens do urbanismo moderno em São Paulo. São Paulo: Empresa das Artes, 1996.

viLEME, Maria Cristina da Silva (coord.). Urbanismo no Brasil: 1895-1965. São Paulo: Studio Nobel; FAUUSP; FUPAM, 1999.

viiSILVA, Luis Octavio da. Verticalização, expansionismo e grandes obras viárias: a modernização limitada. In CAMPOS, Candido Malta; GAMA, Lúcia Helena; SACCHETTA, Vladimir (org.). São Paulo metrópole em trânsito: percursos urbanos e culturais. São Paulo: Senac São Paulo, 2004

viiiVer TOLEDO. Op. Cit. pg. 123.

ixMAIA, Francisco Prestes. Os melhoramentos de São Paulo. 2ª edição. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2010.

xVer LEME, Maria Cristina da Silva (coord.). Op. Cit.

Marcos Costa é Arquiteto Urbanista formado pela FAU Mackenzie com mestrado em estruturas ambientais urbanas pela FAUUSP. Associado à Borelli & Merigo, onde desenvolve projetos nas áreas de edificações e urbanismo. É professor da FAAP e da Escola São Paulo.

Redação

5 Comentários

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  1. Enfim!

    Enfim um post de quem entende de São Paulo e não fica dizendo abobrinhas. Benedito explica claramente porque estamos onde estamos e quais foram as concepções vencedoras, todas desastrosas. Alguém me disse que São Paulo é a melhor cidade do mundo, Essa pessoa morou alguns anos em Londres e comentou que é muito comum paralisações no metrô londrino por motivos de ordem técnica. Mas mesmo assim, o metrô londrino é centenário, alguns problemas, como aquelas escadas rolantes de madeira, que provocaram um imenso incêndio anos atrás, são resultado da idade. Nosso metrô, por ter sido inaugurado já no quarto final do século XX, é muito mais moderno e não deveria suportar os mesmos problemas. Houve uma aposta errada do PSDB. Durante 8 anos o Brasil ficou praticamente estagnado, não houve criação de empregos e o metrô se prestava para o que tinha sido construído. Mas, como dizia o herói dos pobres, Chapolim Colorado, “não contavam com a minha astúcia”. Lula assume no meio de grave crise, inflação trotando, dólar nos quatro reais, desemprego medido pelo DIEESE em 22%. Para a concepção de Lula, moderno era “criar empregos”. E tantos criou, que as pessoas da periferia de São Paulo voltaram a trabalhar. Começaram a entulhar os trens do metrô e da CPTM. Enquanto Alckmin dormia, o emprego crescia. Quando acordou, viu o caos no transporte público. Até hoje não me conformo, a estação Oscar Freire do metrô, da Linha 4 Amarela, estava a pleno vapor em 2002 e até hoje, 2013, não terminou. Os antigos egípcios que não conheciam a roda, o sistema decimal de numeração nem o zero, não tinham computadores nem retroescavadeiras, construíram as pirâmides em 20 anos.O PSDB de São Paulo não conseguiu inaugurar a Estação Oscar Freire do Metrô em 13 anos. Haja!

    1. E a Linha Lilas?

      Anunciada em 20 de junho de 1990!

      Aguardamos sua real integração às linhas verde e azul, desta vez prometida para 2014 (ano eleitoral!), será que sai?

      Isso por usam shield, mas a velocidade parece de obra feita com pás e picaretas! 

  2. A pressão sob controle, caminhando de volta ao passado

    O que um dia foi vilão, foi de maneira interssante a válvula que manteve sob controle a pressão sobre o urbansimo paulistano: o petróleo.

    Graças à crise do petróleo nos anos 1970 a pressão de demanda sobre o equipamento urbano foi amenizada e postergada por três décadas. Hoje com o aperfeiçoamento dos meios de financiamentos  para o  auto e a estabilização do preço do combustível, houve na verdade uma democratização no uso dessa modalidade de transporte. Quem ficou parado no tempo foi o poder público, pois negligenciou o transporte urbano público, chegando ao limite de repassar totalmente à iniciativa privada o gerenciamento desta modalidade efetuada sobre pneus (SPTrans), onde havia um importante player que possuia um caráter regulatório impar (CMTC). Abdicou de tornar-se protagonista, ficou à reboque do imediatismo da iniciativa privada. Nem o papael de regulador, que ainda teria na visão liberal  vigente há mais de 5 décadas, exerceu; rarase pontuais excessões.

    A hipertrofiada metrópole paulistana vive hoje um dilema: como negar aos que finalmente foram incluidos no sistema de consumo (ainda estagnado em padrões de 1970) o uso de seus recém adquiridos bens?

    Tenta-se de tudo, inclusive uma volta no tempo, tentando transformar São Paulo em uma Beijing dos anos 1970, com recem criado incentivo ao uso dos veículos de tração humana. Enquanto isso na China ,  a integração faz-se de forma diversa,   dando à população de forma nunca vista a possibilidade de juntar-se ao século XXI.

    Fala-se de Francisco Prestes Maia e de Faria Lima, mas estes tinham um norte, um rumo a seguir. Hoje estamos sujeitos aos ventos da moda, na apatia e nas ações de conviniencia  capitaneadas pelo legislattivo municipal. Quase à deriva!

    Caminhamos celeres de volta ao passado,

     

     

  3. O autor deste texto é Marcos Costa

    Nassif,

     

    Peço a correção da autoria deste texto. Creio que a confusão surgiu pois o primeiro parágrafo, em itálico, é sim do Professor Benedito Lima de Toledo, conforme referenciado nas notas do texto. Contudo o restante do texto é de minha autoria.

     

    Um abraço,

    Marcos Costa

    PS: Fiquei lisonjeado com a confusão.

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