Para entender a lógica do plano Haddad, por Luís Nassif

Apenas no final do processo se saberá se o plano Haddad foi uma estratégia digna de um Alekhine ou Capablanca, ou apenas uma abertura de dois lances

Aos poucos, catando indícios daqui e dali, vai ficando mais clara a estratégia de Fernando Haddad com o tal arcabouço fiscal.

Parte de dois pressupostos:

  1. A impossibilidade de reverter a independência do Banco Central.
  2. Os condicionantes criados pelo mercado.

A idéia dos condicionantes é que, mesmo podendo ser questionados tecnicamente, a ideia dos limites de gastos e da estabilidade do resultado primário é essencial para acalmar o mercado e retomar os investimentos.

A partir daí, montou-se a seguinte estratégia:

Passo 1 – dá-se o que o mercado quer.

Ou seja, uma regra fiscal mais inteligente que a Lei do Teto. A lógica é que não adianta peitar princípios consolidados, ainda que não se veja rigor científico neles. Tem que fazer o jogo e ir mudando aos poucos.

Passo 2 – atua com normalidade com o presidente do Banco Central Roberto Campos Neto.

Finge que Campos Neto é um ser razoável e retira-se dele o último argumento para manter os juros elevados: a falta de meta fiscal.

Passo 3 – Deixa Campos Neto por conta do mercado.

O mercado recebeu o que queria. Esse fato explicita mais ainda o absurdo da política monetária de Campos Neto. A política monetária está paralisando o mercado de crédito e desorganizando totalmente o mercado. 

Neste momento, ele começa a ser alvo de críticas cada vez mais intensas dos grandes bancos comerciais e do mercado. Foram essas críticas – não a capacidade de discernimento – que levaram Campos Neto a elogiar o novo arcabouço, durante reunião no Bradesco.

Passo 4 – ter o apoio do mercado para combater os grandes vazamentos tributários.

O segundo tempo do jogo consiste em eliminar vazamentos fiscais de grandes grupos, um banco de jabutis que invadiu projetos de lei e portarias do governo.

Sua tática, no caso, é confrontar o mercado com esses abusos.

Tipo: se você quiser que eu mantenha a integridade do arcabouço fiscal, tem que ajudar a acabar com privilégios indevidos de grandes grupos. E bote grandes grupos nisso. Por suas declarações, são privilégios que beneficiam as 500 maiores empresas do país.

Por exemplo, a Zona Franca de Manaus dá isenção de IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados). O produto é comprado pelas fábricas de fora da ZF. E, depois, o IPI (que não foi pago) é descontado não apenas do IPI devido, mas dos demais impostos estaduais e federais.

A Receita questiona, mas os casos são empurramos com a barriga pela engenharia tributária abusiva. Apenas a Ambev tem um contingente tributário de R$ 80 bi.

A idéia de Haddad é conseguir o apoio do mercado contra esses abusos. Tipo: se vocês não ajudarem a eliminar essas distorções, o arcabouço fiscal ficará inviável.

As dúvidas

Que Haddad vai dobrar Campos Neto, não se tenha dúvidas. A diferença de QIs é abismante. Campos Neto é um boneco do ventríloquo, que se desgarrou do criador. Repetiu o mito do homem comum que vê-se, de repente, com um poder imprevisto e não tem a menor ideia de como administrá-lo.

Não soube dosar suas manifestações em favor da Selic de 13,75% e agora ficou prisioneiro desse discurso sendo deserdado gradativamente por seus padrinhos.

As dúvidas que ficam:

  1. Não se tem a menor ideia sobre como será a recomposição do investimento público, peça essencial para um projeto consistente de crescimento econômico.
  2. Consolida-se a ideia do controle de gastos como peça central do arcabouço fiscal. Fica a dúvida sobre se a manutenção do modelo faz parte das convicções de Haddad, ou se é apenas algo contingencial devido ao fator Campos Neto.
  3. Os planos alternativos para a recuperação da economia. Há apenas princípios, mas nada concreto, como a reedição do Plano Safras para a indústria.
  4. O timing econômico e o político. O tempo político de Lula não são mais 8 anos, como no primeiro mandato, mas só esse mandato, pela idade e pela energia. Para os dois primeiros anos, há a certeza de uma economia se arrastando. Para os dois anos restantes, nenhuma garantia de uma economia pujante.
  5. Acredita demasiadamente que existe uma disputa real entre capital financeiro e o grande capital industrial.
  6. De qualquer modo, há um conjunto de vantagens competitivas do país, como o potencial de energia verde, a disputa pela atenção das grandes potências e a atração de investimentos globais para o meio ambiente. Tudo isto poderá virar o jogo.

Apenas no final do processo se saberá se o plano Haddad foi uma estratégia digna de um Alekhine ou Capablanca, ou apenas uma abertura de dois lances, em que não se pensou no desenvolvimento das peças e, especialmente, do final.

Luis Nassif

7 Comentários

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  1. Na política não existe jogo jogado.
    Os lances vão sucedendo-se em função do jogo. O ministro,com certeza,traçou os mais diversos cenários e o primeiro deles,a apresentação do arcabouço fiscal, parece ter sido um sucesso.

  2. Salvo melhor juízo, Lula deveria aproveitar para tentar acabar com o instituto da reeleição, que, no meu modesto modo de ver, fez muito mal ao país e poderia ter feito muito mais mal.

  3. Nassif já apresentou uma visão crítica documentada do plano do ministério da economia, tanto para entender alguns riscos técnicos e políticos, como para entender suas possíveis razões, baseadas na contingência das relações de classe e poder.
    Também não deveria ser um mistério o fato de que Lula tenha recebido o apoio contra Bolsonaro, considerado populista e incontrolável, de uma parcela política elitista bastante reacionária e antidemocratica.
    Entretanto, poderia ser útil introduzir uma reflexão sobre a invenção do arcabouco fiscal tropical a partir de um ponto de vista complementar.
    Como a política monetária foi subtraída do governo, para ser entregue a um banco central independente, da mesma forma a política fiscal, com a invenção do arcabouco, será parcialmente entregue a uma agencia ou mecanismo aritmético independente.
    É claro que o primeiro e principal objetivo político é a criação de um superávit primario, a fim de estabilizar a dinâmica da dívida. O que infelizmente contém um viés deflacionista.
    Os defensores e otimistas afirmam que estabilizar a dinâmica da dívida e o ambiente macroeconômico, e aumentar racionalmente as receitas públicas (incluindo o possível objetivo de reduzir o maior coeficiente de gini), garantirá o crescimento econômico.Isso pode ser possível, entretanto, a acumulação capitalista não acompanha essa simples e linear causalidade.
    Um problema, por exemplo, entre outros, pode ser causado pelo diferencial entre a taxa de juros e a taxa de crescimento. Se a taxa de juros for significativamente maior, a dinâmica da dívida se torna instável e requer maiores superavits, o que vira bastante deflacionário.
    Em conclusão, a variável mais importante a ser observada é a taxa de acumulação e sua evolução, pois ela definirá o sucesso ou o fracasso da política do arcabouço fiscal tropical.

  4. O fato de haver de um lado uma referência para dar algum controle ao gasto público e do outro a tentativa de acabar com todos esses privilégios que se tornam fator de desequilíbrio e também motivo de ineficiência na maioria das grandes empresas, já seria boa razão. O arcabouço fiscal tende a dar maior qualidade aos gastos públicos e impedir aquelas ações puramente eleitoreiras que são por vezes feitas a toque de caixa e não trazem nenhum objetivo maior. Os privilégios acumulados pelas empresas causam mal para a economia do País, pois além de as próprias empresas ficarem presas a isso e não buscarem soluções que proporcionem ter capacidades melhores, provocam desequilíbrio em relação às empresas de porte menor que não recebem as mesmas benesses. A dinâmica da economia brasileira poderia ser muito maior, gerando muito mais oportunidades de criação de riqueza e renda sem esses agregados que só incentivam a ineficiência e ineficácia. Pode melhorar muito a competitividade do País ao menos a redução desses jabutis. É uma aposta no crescimento, de buscar o interesse no crescimento econômico do Brasil.

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