Armando Coelho Neto
Armando Rodrigues Coelho Neto é jornalista, delegado aposentado da Polícia Federal e ex-representante da Interpol em São Paulo.
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25 de Abril, Zeca Afonso, Chico Buarque, Lula e o cravo vermelho, por Armando Coelho Neto

Com a euforia inicial da revolução portuguesa, Chico compôs a primeira versão de Tanto Mar (1974) e foi de pronto censurada pelo ditador Médici

25 de Abril, Zeca Afonso, Chico Buarque, Lula e o cravo vermelho

por Armando Coelho Neto

A Revolução dos Cravos, em Portugal, começou com um pneu furado, conta Vasco Lourenço, um militar português do Movimento das Forças Armadas, contrário à ditadura de Antônio de Oliveira Salazar, que durou 41 anos. Eram quase duas horas da manhã, quando voltava de uma reunião clandestina, e um pneu do carro furou. Parado, um amigo disse: “não vamos mudar nada com papeis e requerimentos”.

Naquele momento o amigo usou a palavra golpe. “Tu também pensas assim? Esse é o meu sonho”, disse Lourenço. Afinal, na década de 70, havia 30% de analfabetos em Portugal, e até 1973 fervilhava uma guerra colonial que parecia sem fim. Com o governo indiferente às manifestações contra, militares descontentes não queriam ir para os combates na África, e muitos já debatiam isso na clandestinamente.

Das reuniões, sementes se transformaram em cravos vermelhos no país. A senha para virar o jogo foi uma música, cujos primeiros versos foram tocados na Rádio Renascença, às 00h25 do dia 25 de abril de 1975: Grândola Vila Morena, de Zeca Afonso. ” Grândola, Vila Morena, terra da fraternidade. O povo é quem mais ordena. Dentro de ti, ó cidade…. Em cada esquina um amigo, em cada rosto igualdade…”

Zeca Afonso, na verdade, nunca usou esse nome como pseudônimo artístico. Contrário ao regime, era professor de História, mas foi expulso do ensino oficial, e chegou a ficar 20 dias preso pela ditadura fascista de Salazar. Gravou discos clandestinos e de tão perseguido e censurado, passou a compor e assinar o seu nome ao contrário “Esoj Osnofa”. Mas, “Grândola Morena virou história”.

Exatamente um ano antes, ocorreu o I Encontro da Música Portuguesa, um festival fartamente vigiado, precedido de nove meses de análise de canções, grande parte censurada. O aparato policial da ditadura até tentou, mas não conseguiu dispersar as mais de sete mil pessoas presentes. As músicas vencedoras foram proibidas, “Grandola Morena” não, mas foi uma das mais aplaudidas, ovacionadas.

Por não ter sido censurada, não chamaria atenção, o que foi determinante para ser escolhida como senha, tornando-se hino da revolução de 25 de Abril de 1974. Pacífica e sem sangue, para muitos, poderia influenciar e ou inspirar outras revoluções em países como Espanha, Brasil, Venezuela. Grande parte do sonho da revolução não passou de sonho, mas a liberdade que lá se vive, deve-se a ela.

Os ventos de 74 em Portugal inspiraram Chico Buarque no Brasil, que já havia composto Fado Tropical, cuja letra dizia “ah essa terra ainda vai cumprir seu ideal, um dia vai tornar-se um imenso Portugal”. Isso seria uma ofensa a Portugal e ao Brasil. Desse modo, a música que já estava proibida, tornou-se mais proibida ainda, virou ofensa, algo subversivo tanto lá quanto cá.

Com a euforia inicial da revolução portuguesa, Chico compôs a primeira versão de Tanto Mar (1974) e foi de pronto censurada pelo ditador Médici. A letra dizia, “Sei que estás em festa pá, fico contente. Enquanto estou ausente guarde um cravo para mim. Eu queria estar na festa, pá, com tua gente, e colher pessoalmente uma flor de teu jardim”. Mas, a mudança dos rumos em Portugal fez Chico mudar a letra.

Consolidada a mudança, entrou o agitado período do Processo Revolucionário em Curso (PREC). A esquerda não tem força suficiente para levar à frente propostas socialistas. A revolução sobrevive ao embate, muito embora desfigurada. É quando Chico muda a letra para “Foi bonita a festa pá, fiquei contente. Ainda guardo renitente um velho cravo para mim. Já murcharam tua festa, pá…”

Em janeiro de 2023, houve uma manifestação em frente à sede do Partido Socialista contra o Governo atual. Mas, entre cânticos e críticas contundentes, diz o jornal “Público” (Portugal), havia um cartaz que com a seguinte mensagem: “O 25 de Abril foi a maior desgraça de Portugal”. Mas, o jovem, diz o veículo, só estava conseguindo fazer aquele protesto, graças à Revolução dos Cravos.

Os partidos de direita portugueses não queriam dar voz a Lula nas cerimônias, e prometem para hoje uma resposta dura, para o que chamam de ofensa à parte do povo portugues. Entre elogios, criticas e coberturas neutras, Lula tem ocupado generosos espaços na midia, retrato de sua importância.

Mas ontem foi dia de Chico Buarque! Mas, “O Everest não precisa de títulos para ser a maior montanha do mundo” disse Marcelo Rebelo de Sousa, presidente de Portugal, durante a entrega do “Prêmio Camões 2019” ao compositor, uma honraria a mais importante honraria da língua portuguesa, que o ex-presidente do Brasil se recusou a assinar, “por não estar em suas prioridades”.

Com Lula e Chico em Portugal reacendem a polêmica sobre os cravos vermelhos, hoje vítimas de fake news sobre sua origem singular. Para extrema esquerda foi um navio da Otan que os trouxe. A versão divulgada da “Fato ou Fake” local seria outra. Uma lanchonete seria inaugurada no dia que eclodiu a revolução. Suspenso o evento, os cravos da festa foram parar nas mãos de uma senhora, que colocou um deles no fuzil de um soldado, outro mais outros.

A festa perdeu parte do brilho, pá, mas Portugal mudou a ponto de atrair até coxinhas brasileiros alheios à história. Entre ameaças da extrema-direita lusitana e brasileira (inclusive turismo fascista), o fato é que os cravos vermelhos, símbolo oficial da revolução democrática, ficarão como fantasma eterno da direita.

Hoje tem festa em Portugal, vou estar presente pá. Lula, Chico e companhias serão cerejas nesse bolo, com duas trilhas sonoras irmanadas.

Armando Rodrigues Coelho Neto é jornalista, delegado aposentado da Polícia Federal e ex-representante da Interpol em São Paulo

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Armando Coelho Neto

Armando Rodrigues Coelho Neto é jornalista, delegado aposentado da Polícia Federal e ex-representante da Interpol em São Paulo.

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