Urariano Mota
Escritor, jornalista. Autor de "A mais longa duração da juventude", "O filho renegado de Deus" e "Soledad no Recife". Também publicou o "Dicionário Amoroso do Recife".
[email protected]

Gaza e Vinícius de Moraes, por Urariano Mota

Em 2003, escrevi “A Rosa da Palestina”, e naquela ocasião eu esperava que a poesia fosse uma defesa contra a barbárie.

Freepik

Gaza e Vinícius de Moraes

por Urariano Mota

O aniversário do poeta Vinícius de Moraes, que nasceu em 19 de outubro de 1913, relaciono agora ao genocídio do hospital em Gaza. Ainda que à revelia do nosso poeta lírico, associo a sua poesia aos corpos despedaçados de crianças, de civis, no horror entre mais um crime de guerra e a expressão da língua dos homens e mulheres mais dignos.

Sempre houve  um tempo em que a poesia pareceu um luxo, uma alienação, um traste inútil, uma ocupação desonrosa, de fazer vergonha ao poeta, que se via acovardado no meio do mundo. Mas em Gaza hoje, no genocídio, na guerra e no desprezo à pessoa humana, tudo mudou

Em 2003, escrevi “A Rosa da Palestina”, e naquela ocasião eu esperava que a poesia fosse uma defesa contra a barbárie. Aqui vai o texto, que relacionava a bomba atômica ao massacre em Gaza.

A ROSA DA PALESTINA

Um poema de Vinícius ordena, suplica que “Pensem nas crianças mudas telepáticas. Pensem nas meninas cegas inexatas. Pensem nas mulheres rotas alteradas. Pensem nas feridas como rosas cálidas…”. É esse poema, “A Rosa de Hiroshma”, é essa talha em versos que ordena, que resiste e insiste em nossa memória

Era bom, assim pede a paz que nosso peito deseja, era bom um lugar-comum que nos ajudasse, que nos socorresse. Dizer, por exemplo, que assim é a guerra, cruel como todas as outras, que nela não existem santos e demônios, que a guerra nos transforma a todos em anjos das trevas. Dito isso, seria melhor dizer que o terror feito pelo Estado de Israel apenas é uma resposta ao terror sofrido antes por sua gente. Dito isso, podemos afinal dizer que o mal e o mau têm que ser destruídos, para que só então a paz volte. Mas, ao chegarmos a este passo, perguntamos: mas de que mal e maus vocês falam, caras-pálidas? Pois será que ninguém ainda notou que a nossa cara tem a cara e o sangue da gente palestina? Que eles, os palestinos, são a nossa própria cara? Será que ninguém ainda percebeu que o desespero dos povos palestinos é o nosso próprio desespero em outras terras e em outras circunstâncias? Aquele mesmo desespero que acomete a gente em situações-limite? Os seus corpos se misturam à mesma rosa atômica que se fez cair em Hiroshima e Nagasaki.

Então voltemos, mais serenos. Mas, desgraça, descobrimos: serenos, não temos mais mãos. Temos somente uma grande letargia. Então quebremos o torpor, voltemos ao princípio. Aos versos de Vinícius de Moraes:

“A rosa hereditária, a rosa radioativa, estúpida e inválida. A rosa com cirrose, a anti-rosa atômica” sofreu uma tradução no hospital da faixa de Gaza. Ela se abre em outras rosas que se despedaçam em Gaza. Rosas que em vez de pétalas jogam carnes, fígado, coração e intestinos.

Mas, desta vez, com uma atualização, infâmia das infâmias. Biden e seu servidor, o primeiro-ministro de Israel Netanyahu,  informam que o ataque teria partido da Jihad Islâmica. O ponto a que chegamos. Não basta matar, tem que proferir mentiras e calúnias depois. Fazer de um crime de guerra o crime perfeito. Esse genocídio lembra as palavras de Jeremias:

“A língua deles é uma flecha mortífera. As palavras da sua boca são enganosas. Cada um profere palavras de paz com o seu próximo, mas no coração arma-lhe ciladas” (Jeremias 9:8)

E o belo poema de Vinícius de Moraes:

“A rosa de Hiroshima

Pensem nas crianças
Mudas telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas inexatas
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas
Mas oh não se esqueçam
Da rosa da rosa
Da rosa de Hiroshima
A rosa hereditária
A rosa radioativa
Estúpida e inválida
A rosa com cirrose
A antirrosa atômica
Sem cor sem perfume
Sem rosa sem nada”.  

Urariano Mota – Jornalista do Recife. Autor dos romances “Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus” e “A mais longa duração da juventude”

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

Urariano Mota

Escritor, jornalista. Autor de "A mais longa duração da juventude", "O filho renegado de Deus" e "Soledad no Recife". Também publicou o "Dicionário Amoroso do Recife".

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador