Primeiro de Abril, por Jorge Alberto Benitz

De uma coisa, no entanto, não podem me acusar: de nostálgico. Só se for nostálgico de um tempo não vivido.

Leo Guerreiro

Primeiro de Abril

por Jorge Alberto Benitz

    Documentarista bissexto. No momento estava empenhado em um projeto que, em linhas gerais, consistia de pegar uma câmara filmadora e percorrer a Rua da Praia de alto a baixo, captando o clima, as figuras singulares lá existentes, os dramas, enfim, a fauna humana e singular que lá existe se é que existe algo digno de registro naquele formigueiro de gente. Até já tinha mantido conversação com um documentarista mais experiente acerca deste projeto. Confesso que não sei o resultado de tal conversação. Para mim e para outros amigos dele, melhor seria um documentário sobre ele e suas histórias. O homem conhecia um mar de belas histórias. É que talento, que verve, para contá-las.

    Uma que ele contou uma história ocorre-me  agora. Passa-se na noite de primeiro de abril de 1964. Diz ele que conhecia um sujeito que fazia um programa, com boa audiência, em uma emissora de rádio do interior do Rio Grande do Sul na fatídica noite. Rádio Imembuí de Santa Maria, senão me engano. Lá pelas tantas, no intervalo da programação, o dito cujo recebeu, meio que atabalhoadamente, a notícia da revolução. Como já estava em tempo de voltar para a locução ele se poupou de mais detalhes e voltou à lida, isto é, ao microfone. Isso, no entanto, não o impediu de aproveitar a oportunidade para comentar tamanha notícia. Sem mais, tascou, em pleno ar, suas mais recônditas e jubilosas saudações ao acontecido:

    — Enfim, chegamos lá. Momento mais esperado por todos que desejam o bem deste povo. Viva o povo no poder! Abaixo a canalha burguesa! Os corvos reacionários! As vivandeiras de quartel! Que…  — nisso, foi interpelado, furiosamente, por um desesperado colega da rádio que entrou esbaforido no estúdio de locução e quase o derrubou, puxando- o pela camisa, para esclarecer melhor a situação, dando conta de que o ocorrido não foi bem uma revolução, mas um golpe militar contrarrevolucionário, chamado pelos golpistas e seus apoiadores de revolução contra o, no entendimento deles, governo pró- comunista do Jango.

    Nem deu tempo para ele assimilar de todo o acontecido. Tudo se resumiu em uma única interrogação “O quê?”. logo tomado pelo pânico seguido da necessidade de sair dessa. Não havia tempo para nada. O jeito foi largar o microfone e escapar pelos fundos da emissora de rádio enquanto era tempo. Provavelmente, os “revolucionários” já estavam vindo em seu encalço. Realmente, pelo que relatam, foi por pouco que não conseguiram prendê-lo. O coitado fugiu só com a roupa do corpo. Não teve tempo nem de passar em casa para avisar a sua mãe.  Estamos falando em uma era pré- tudo e, claro, pré- celular. Mesmo o arcaico telefone de linha era um artigo de luxo que poucos possuíam. Sua sorte foi conseguir entrar clandestinamente em um vagão de trem – Santa Maria, na época, era um entroncamento importante onde os viajantes de trem que vinham das cidades da fronteira e das missões,  faziam baldeação (trocavam de trem) para descer a serra e vir à capital –, depois de andar a esmo pelo campo por muito tempo. Hoje o tal sujeito é um médico reconhecido. No entanto, passou boa parte da sua vida na clandestinidade, com nome trocado e tudo.

         Para mim, fazer um documentário ouvindo-o contar histórias como essa, e ele as conta muitas, iguais ou melhores, mais me apraz do que assistir um documentário sobre o cinza medíocre hoje presente naquela triste realidade que representa a rua da praia com seus camelôs vendendo quinquilharias, seus lúmpens que não têm a metade do charme e elegância dos lúmpens de outrora.  Uma rua cheia de bancos, financeiras, grandes e feios magazines, pessoas, apressadas, vazias e tristes que nem de longe se aproximam do glamour de um tempo quando a rua era de fato o centro da vida portoalegrense com seus cinemas, restaurantes, com o Clube do Comércio no auge, com o ir e vir das pessoas e dos automóveis sem a pressa e o olhar que acusa o medo do assalto ou mesmo da chateação que representa a investida dos agentes das financeiras oferecendo dinheiro a juros nada módicos, trazendo à nossa memória o quanto estamos vivendo no limite do tolerável. Convenhamos isto não tem graça e interesse nenhum. Discurso amargo e passadiço, mas, infelizmente, real. De uma coisa, no entanto, não podem me acusar: de nostálgico. Só se for nostálgico de um tempo não vivido. Até porque quando cheguei a Porto Alegre esta era estava nos seus estertores e, para piorar, eu era um pobre-diabo, um estudante sem tostão para usufruir das migalhas que ainda restavam dos anos dourados que tornaram lendária a Rua da Praia.

Jorge Alberto Benitz é engenheiro e escritor.

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