Reflexões de um policial autista nas noites chuvosas, por Saulo Barbosa

A história desses indivíduos, dos moradores de rua às vítimas do vício, ressoa em minha mente a cada noite chuvosa.

Reflexões de um policial autista nas noites chuvosas: histórias de moradores de rua e usuários de drogas

por Saulo Barbosa Santiago dos Santos

Noites chuvosas exercem um impacto emocional profundo em mim. Depois de uma década como policial no centro da capital sergipana, desenvolvi laços estreitos com moradores de rua e usuários de drogas. Escuto atentamente as histórias de cada um deles, que abordam desde suas vidas antes do envolvimento com o crack até experiências amorosas vividas e não vividas, arrependimentos e sonhos desfeitos. A história desses indivíduos, dos moradores de rua às vítimas do vício, ressoa em minha mente a cada noite chuvosa. Seus rostos desgastados pela dor e adversidade estão gravados em minha memória. Enquanto observo as gotas de chuva escorrendo pelas janelas, ecoa em meu espectro autista um desejo em oferecer-lhes um raio de esperança, uma oportunidade de redenção, um voo livre dos pecados. No entanto, sou apenas um policial atormentado por transtornos e traumas, lutando com meus próprios demônios internos e limitações pessoais.

É crucial compreender que ninguém escolhe viver no exílio, à margem da sociedade e privado do mínimo de humanidade. Ninguém deseja enfrentar a fome e perder as esperanças. Dar voz a eles faz com que lembrem dos tempos em que tinham uma cama quente para descansar, um café para compartilhar enquanto assistiam televisão na cama ou no sofá de suas casas. Essas pessoas são lançadas à desgraça devido a uma complexa combinação de fatores, que uma mente solitária não suporta sozinha. A oferta de emprego, dinheiro ou moradia revela-se insuficiente para reparar os estragos que permeiam a estrutura cerebral de um usuário de drogas. Podemos fazer uma analogia com um copo de plástico descartável: se amassarmos a integridade desse objeto com nossas mãos e, posteriormente, tentarmos consertá-lo, por mais habilidosos que sejamos, o copo permanecerá amassado, lascado e cheio de dobras. De maneira análoga, o cérebro de um indivíduo viciado é profundamente afetado.

Recentemente, tive a oportunidade de reencontrar um ex-usuário de drogas, que atualmente está casado, trabalha e tem filhos – uma exceção extremamente rara. Ao questioná-lo sobre o que considerava mais importante em sua vida, fui surpreendido ao descobrir que não eram seus filhos ou sua família, mas sim manter-se afastado das drogas. Fiquei perplexo e, sem compreender plenamente, indaguei-lhe o motivo pelo qual a abstinência das drogas era considerada prioritária. Ele explicou que, ao permanecer longe das drogas, garantia a presença de sua esposa, filhos e um emprego estável. No entanto, ao recair no vício, perderia tudo o que havia conquistado. Nesse sentido, a distância em relação às drogas tornava-se o aspecto mais relevante de sua vida.

Por fim, reflito sobre o conforto e os privilégios que preenchem minha própria existência, uma melancolia se instala em mim. É uma tristeza silenciosa, uma consciência aflitiva de que, apesar de meu desejo sincero de ajudar, minhas limitações pessoais e a estrutura social me impedem de efetuar uma mudança significativa na vida deles. Percebo que, embora possa não ser capaz de transformar a realidade dessas almas sofridas, posso, ao menos, acolhê-las com empatia e compreensão. Posso até esquecer seus nomes, mas o rosto de cada um está cravado em meu coração para sempre, não como viciados, mas como seres humanos.


Saulo Barbosa Santiago dos Santos – Filósofo, guarda civil e autista.

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