“A Noite dos Desesperados” em um mundo sem coração

Em épocas de reality shows como “Big Brother Brasil” é oportuno assistir ao filme “A Noite dos Desesperados” (They Shoot Horses, Don’t they?, 1969) baseado em um livro que tornou-se um dos prediletos dos filósofos e escritores existencialistas franceses por aprofundar as motivações humanas diante da dor e sofrimento. A cena descrita pelo filme (o início da indústria de entretenimento na época da Grande Depressão americana dos anos ’30) possibilita uma rica comparação com o gênero reality show atual: se no passado o espetáculo sado-masoquista ainda tinha o componente trágico da ritualização de um destino comum a todos (dor e sofrimento em um mundo sem coração), agora é mais perverso: os espetáculos de “sacrifício de cavalos” são promovidos como lições morais em um mundo aparentemente livre e democrático que ofereceria chance a todos tornarem-se celebridades.

Por três refeições por dia, a promessa de um prêmio de 1.500,00 dólares e algumas moedas jogadas pela plateia, dezenas de casais desesperados em plena Grande Depressão dos anos 1930 nos EUA decidem participar de um concurso de danças em um velho salão em Chicago. Na verdade será uma desumana maratona de seis dias até que o último casal sobreviva após passar por dores físicas, desconforto, humilhações e indignidades, monitorados por médicos e enfermeiras cujo papel básico é o de manter os participantes de pé à todo custo para manter a adrenalina do show.

Seu mestre de cerimônias e empresário chamado Rocky (Gig Young, premiado com um Oscar de ator coadjuvante), filho de um charlatão que fazia shows de simulação de curas em parques de diversão, usará as lições aprendidas para manipular emocionalmente os participantes: “isso não é um concurso, é show. As pessoas não estão nem aí para o vencedor. Querem ver um pouco de sofrimento para que se sintam melhor!”, dispara cinicamente Rocky a certa altura do filme.

A narrativa é repleta de pequenos dramas pessoais amplificados pela depressão econômica e desemprego: uma mulher grávida e seu marido que veem no grande prêmio a esperança de dar uma vida digna ao futuro filho; uma fútil atriz que vive a esperança de que na plateia esteja um caçador de talentos de Hollywood; um orgulhoso marinheiro veterano da I Guerra Mundial que tenta provar que ainda é capaz; uma mulher sobrevivente das ruas chamada Gloria Beatty (Jane Fonda) vê seu parceiro desistir por motivos de saúde na última hora.

O filme foi baseado no romance de Horace McCoy de 1935, “They Shot Horses, Don’t They” (“Pessoas sacrificam cavalos, não sacrificam?”) numa analogia à submissão daquela fauna humana a um verdadeiro “derby”, onde os “cavalos” doentes serão sacrificados. O livro tornou-se um dos prediletos dos filósofos e escritores existencialistas franceses que viam na obra não só uma alusão ao pior que o capitalismo americano poderia produzir, mas também um mergulho nas motivações humanas para fazer frente a momentos de dor e desespero. Até Charles Chaplin, que havia comprado os direitos do livro, pensava fazer um filme sobre a obra.

Muitos críticos, entre eles este humilde blogueiro, concordam que o filme e o livro descrevem a pré-história de uma indústria de entretenimento onde os dramas humanos serão a principal matéria-prima para a diversão perversa do público, cujo gênero reality show atual seria o auge.

     Portanto, poderíamos considerar a maratona de danças retratada pelo filme a pré-história dos reality shows? O que há de comum, claro, é o espetáculo sadístico de “sacrifício de cavalos” para o prazer da audiência em descobrir que tem gente com a vida pior que a sua. Mas as semelhanças acabam aí.

A primeira diferença está na motivação: enquanto em “A Noite dos Desesperados” vemos participantes se matando por dinheiro e comida como a principal motivação para negociarem a própria dignidade, no reality show atual a porta de entrada para o mercado de celebridades em que se transformou o gênero é o principal fator.

Disso decorre a segunda e principal diferença: a origem do mal estar psíquico. No filme o mal estar origina-se de uma configuração do clássico estado de alienação e estranhamento tal qual descrito por Marx no campo filosófico e Freud na psicanálise. Enquanto no Reality Show atual o mal estar se origina no narcisismo e compulsão consumista.

Alienação e estranhamento

A virtude do filme “A Noite dos Desesperados” é o de mostrar através da narrativa uma fase do capitalismo onde ainda podia se aplicar a clássica teoria da alienação tal qual desenvolvida pelo marxismo a partir dos seguintes pressupostos:

 

(a) o homem torna-se mais pobre em meio à riqueza que produz;

(b) a valorização do mundo as coisas aumenta na proporção direta na desvalorização do mundo dos homens;

(c) logo, o homem vivencia uma experiência de alienação e estranhamento diante dos bens de produção e consumo que produz – partes humanizadas da natureza nas quais o homem não se reconhece.

(d) Esse é o resultado da exploração do capital (trabalho morto) sobre o trabalhador (trabalho vivo) por meio da extração da mais-valia (horas não remuneradas ao trabalhador) e da fragmentação do trabalho na linha de montagem onde o trabalhador perde a noção do todo.

Na década de 1930 a Grande Depressão americana pós-crash da Bolsa de Nova York expôs as contradições do Capitalismo tal qual previstas por Marx: anarquia da produção, taxa decrescente da mais-valia etc.

A incipiente indústria de entretenimento da época em busca de escritores de renome para a produção de roteiros e novos argumentos para produtos como filmes (o filme “Barton Fink – Delírios de Hollywood” de 1991 descreve isso muito bem) começou a perceber que possuía “in natura”, sem necessidade do filtro de escritores, uma grande matéria-prima: os dramas pessoais de luta pela sobrevivência em meio à crise econômica generalizada.

Em outras palavras, a dor e o sofrimento, a experiência da alienação e estranhamento poderiam se transformar numa atração sado-masoquista para um público ávido em se divertir vendo pessoas que, supostamente, teriam uma vida pior que a deles.

Maratonas de dança, quiz shows e games shows que ofereciam refeições e prêmios em dinheiro eram espetáculos muitas vezes brutais que mostravam pessoas desmoronando emocionalmente ao vivo, no rádio e, mais tarde, na TV.

Poderíamos considerar essa cena retratada pelo filme “A Noite dos Desesperados” como a pré-história dos reality show atuais. Porém, surge uma questão: esse modelo de diagnóstico da alienação como dor e estranhamento de pessoas exploradas pela indústria do entretenimento poderia ser aplicado na atualidade? 

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Luis Nassif

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