Ion de Andrade
Médico epidemiologista e professor universitário
[email protected]

Os modelos de revolução do século XX e seus limites II, por Ion de Andrade

Os modelos de revolução do século XX e seus limites II

por Ion de Andrade

Esse artigo é a segunda parte de um primeiro artigo intitulado “Os modelos de revolução do século XX e seus limites” que pode ser acessado clicando aqui.

O fim do século XIX e início do século XX foram extremamente complexos do ponto de vista da diversidade de fases em que se encontravam sociedades ainda relativamente estanques no plano da sua história e evolução, mas que compartilhavam uma mesma contemporaneidade. Essa peculiaridade histórica produziu um desencontro único entre conceitos e realidades, o que tornou extremamente problemática a possibilidade de que todos os atores estivessem compreendendo os conceitos sociopolíticos da mesma forma ou falando das mesmas coisas.

Por que afinal os revolucionários russos deveriam se preocupar com essas teorias de Estado restrito e ampliado, de Sociedade Civil e Sociedade Política levantadas por aquele longínquo teórico sardo? Entretanto,  o maior problema no modelo leninista de revolução pode ter sido precisamente o fato de que os seus protagonistas não podiam deixar de acreditar que estavam construindo o socialismo pós-capitalista, a sociedade que conduziria a humanidade ao comunismo, entendido então um tanto pictoricamente por Lenin como Socialismo + eletricidade. Por que acreditariam que a experiência construída por eles viesse a provar-se muito mais anticapitalista do que pós-capitalista não a esperada antítese dialética do capitalismo, mas um antimodelo restrito de um Estado burguês também restrito? Por que deveriam imaginar que o Estado proletário que construíam viria a ser cobrado pela história a “ampliar-se”, sob pena de ser aniquilado, quando esse cenário teórico inexistia não somente na formulação leninista, mas também na de Marx ou na de Engels? E no entanto, nenhuma democracia popular conseguiu incorporar uma Sociedade Civil robusta capaz de inaugurar um Estado ampliado de hegemonia proletária, à semelhança do que ocorria no mundo burguês, onde a ampliação do Estado se dava sob hegemonia burguesa.

As inevitáveis e legítimas convicções e fundamentações teóricas dos russos não permitiram, portanto, a percepção de que o Estado capitalista estava evoluindo para uma etapa superior de sua organização, etapa essa que faria desaparecer aquela velha “democracia burguesa” que tratava as manifestações sociais com a cavalaria e baionetas e a dar origem a um tipo de Estado onde a força daria lugar a formas bem mais sofisticadas de imposição  do Poder. Presos, pela História e pelainsuficiência teórica à condição congênita de antimodelos de Estados burgueses declinantes (substituídos progressivamente por Estados ampliados, mais conhecidos como Estados de direito), as democracias populares foram se tornando literalmente um eco do passado. Quando algumas delas tentaram introduzir organizadamente o Estado ampliado, já era tarde demais. Fracassou a Glasnost na Rússia e foram sufocadas as tentativas democratizantes de alguns países do Leste Europeu como a da Tchecoslováquia.

Rapidamente o antimodelo socialista tornou-se tão anacrônico quanto o Estado burguês restrito a que se opuseram em suas revoluções e que o século XX estava se encarregando de transformar em fumaça.

O modelo gramsciano, por sua vez, foi insuficiente ao acreditar que estava lidando na Itália apenas com um Estado burguês mais complexo, ou ocidental, cercado de forte linha de trincheiras, a Sociedade Civil, não estabelecendo uma relação “cronológica” entre o Estado restrito e o Estado ampliado como representantes de duas fases do desenvolvimento do Estado no capitalismo. Gramsci percebeu que a tomada do poder nos termos em que ocorrera na Rússia seria impossível na Itália e no Ocidente, mas não pôde entender, dada a novidade dos fenômenos estudados, que estava diante de uma necessária transição interna do capitalismo com poder letal tanto sobre os Estados burgueses restritos (as democracias burguesas) quanto sobre os Estados proletários restritos (as democracias populares) por inaugurar, no capitalismo (fonte da legitimidade última dessas duas variantes de Estado), a exaustão histórica do exercício do poder a partir da Sociedade Política. Não era possível, obviamente, que ele pudesse ter entendido, nos anos 1930, que aquelas razões que inviabilizavam a tomada do poder na Itália e no Ocidente teriam poder suficiente para derrubar o poder dos partidos comunistas na quase totalidade das democracias populares nos distantes anos 1980: a emergência irrefreável do Estado ampliado.

Por tudo isso, Gramsci se alinhou a um modelo leninista adaptado em que a disputa pela hegemonia e pela construção de um novo bloco histórico popular precederia a tomada de um poder, apesar de tudo, entendido como centralizado – sujeito, portanto, a ser objeto de uma tomada em momento crítico. Manteve no plano teórico: a) o modelo leninista de partido; b) o seu comando, tanto sobre as lutas pela hegemonia do proletariado na Sociedade Civil quanto sobre a tomada do poder na Crise Orgânica; e c) a sua governança, precedendo e protegendo o advento de uma Sociedade Regulada através de um Estado “gendarme” qualitativamente diferente do Estado de direito.

A percepção da existência da Sociedade Civil não se dobrou em Gramsci do entendimento de que o próprio poder político centralizado, a ser tomado, já não existia mais nos termos do passado, pois, como num fenômeno de vasos comunicantes, o fortalecimento da Sociedade Civil se acompanhara de um proporcional enfraquecimento do poder centralizado nas mãos da Sociedade Política e nas do governo.

O ganho de poder pela Sociedade Civil, “em detrimento” do governo, inviabilizou conceitualmente a ideia de uma revolução em duas fases – a primeira, de disputa da hegemonia e a segunda, de tomada e exercício do poder pelos trabalhadores, uma vez que este poder não tem mais peso gravitacional suficiente para dar cumprimento à agenda da revolução. Essa é a razão pela qual o Estado proletário nunca foi implantado a partir de um Estado de direito, mas sempre a partir de Estados burgueses restritos ou de outros Estados ainda mais primitivos.

Poderíamos em socorro à posição de Gramsci argumentar que tudo se justifica pelo fato de que a conquista da hegemonia na Sociedade Civil precede (apesar da interação dialética entre as duas esferas) à da Sociedade Política, cuja tomada consolidaria o governo proletário edificador da Sociedade Regulada. Essa compreensão, na verdade, esconde um sofisma, pois frente ao poder existe, entre a Sociedade Civil e o governo, uma diferença de densidade, mas não de natureza. De fato, ao avançar na conquista de maior influência na Sociedade Civil, o proletariado já estará conquistando parcelas crescentes do poder político real, o que converte a guerra de posição prévia, seguida de uma guerra de movimento no topo da Crise Orgânica (duas fases), uma espécie de leninismo último na segunda fase, numa ilusão.

Tal ilusão não se deve ao fato de que o proletariado não deva assumir o poder na Crise Orgânica – o que pode ser impositivo frente a riscos maiores como o do fascismo –, mas se deve ao fato de que, em lugar de fundar a Ditadura do Proletariado ou o Estado gendarme, o proletariado emerge como a única força política capaz de assegurar a continuidade do Estado de direito que, sob a sua hegemonia, se veria libertado dos limitantes impostos pela burguesia e acederia a graus superiores de exercício da democracia. Esse fato nos obriga a constatar que a ideia da necessidade de um Estado de transição para a edificação da Sociedade Regulada (a ditadura do proletariado ou o Estado gendarme)  de natureza é diversa da do Estado de direito é inteiramente obsoleta para a revolução. Em outras palavras, é o Estado de direito, afinal o Estado ampliado, que cumpre o papel, desde que sob a hegemonia do proletariado, de Estado de transição para a edificação da Sociedade Regulada.

Tais fatos impõem uma revisão completa da fundamentação teórica que sustenta as táticas e estratégias de hegemonia do proletariado na Sociedade Civil, incluindo o modelo leninista de partido, desenhado para o assalto à Sociedade Política, que distorce o próprio modelo de transição ao socialismo no Estado ampliado e o mito do partido único no comando da transição, incompatível com o conjunto de liberdades de associação e de organização que o próprio proletariado vai irreversivelmente impondo ao ampliar os seus espaços de influência na Sociedade Civil.

A incompreensão dos fenômenos explicitados acima nos permite também o entendimento da gênese do erro oposto – este cometido não por Gramsci, mas por seus sucessores no PCI e na esquerda italiana: o de considerar, pela inevitabilidade histórica do Estado de direito, que a ele não haveria sucedâneo, erro, aliás, de gravíssimas consequências. Nesse caso, a impossibilidade de entender, o que se esconde para além do Estado de direito e de, em função disto, propor um novo modelo de revolução, traduziu-se historicamente pela regressão da esquerda italiana aos padrões socialdemocratas hoje bem conhecidos. Em síntese, a insustentabilidade teórica da revolução em duas etapas deixou a esquerda italiana rendida ao ideário socialdemocrata, onde inexiste qualquer revolução.

Podemos dizer que, por razões diferentes, o Estado de direito (o Estado ampliado) tanto derrotou as experiências leninistas como fez retroceder, no Ocidente, a melhor formulação até então desenvolvida (a de Gramsci) a uma condição inofensiva ao capitalismo.

Explicitaremos nos próximos artigos o modelo de transição ao socialismo compatível com a superação histórica do Estado de direito, capaz de ultrapassá-lo e de concluir o ciclo estatal da história, sem romper com a sua natureza democrática. Tentaremos apontar para o que há para além do Estado ampliado sob o capitalismo e porque trata-se da última forma de Estado.

Antes disto, no próximo artigo, analisaremos as relações existentes entre as democracias populares do século XX e o processo de transição interna do capitalismo que  o fez evoluir do Estado burguês clássico ao Estado de direito.

 

 

Ion de Andrade

Médico epidemiologista e professor universitário

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador