O governo da união e reconstrução e os militares, por Antônio Carlos Ludwig

É imprescindível instituir mecanismos de controle democrático das Forças Armadas já aplicados em outros países regidos pela democracia

Ricardo Stuckert

O governo da união e reconstrução e os militares

por Antônio Carlos Will Ludwig

Em mensagem direcionada aos parlamentares no mês de fevereiro de 2023 o atual presidente da República realçou a necessidade de o Congresso Nacional praticar uma atuação harmônica, ainda que independente, em favor da reconstrução do Brasil. Externou o compromisso relativo à interlocução republicana com os governos estaduais e municipais, sem distinção partidária bem como apresentou a promessa de ouvir trabalhadores, empresários e representantes da sociedade. Acentuou ainda que o ano que se iniciava constituiria o ponto de partida de um novo tempo aspirante de união.

Sem dúvida tal discurso levou em conta acontecimentos notórios surgidos em período anterior com destaque para dois deles. O primeiro diz respeito às ações do governante que o antecedeu.  Embora possam ser pinçados alguns aspectos positivos na atuação de Bolsonaro em determinados setores da gestão pública, as mazelas concretizadas em relação ao salário mínimo, área ambiental, empresas estatais e política externa, dentre vários outros, a caracterizou como um desastre administrativo. O segundo faz referência ao visível ambiente de polarização instalado no país expresso pelo realinhamento da direita em torno do ex-presidente versus a ampla coalizão apoiadora do atual presidente.

Vale lembrar que união e reconstrução foram vocábulos usados diversas vezes por Lula em seus discursos de campanha eleitoral e período de transição após a vitória nas urnas. Em sintonia com os dois acontecimentos citados, dirigentes do PT expuseram que a proposta de união decorre da disputa presidencial radicalizada e a propositura da reconstrução é consequente da visível piora dos números da economia e do crescimento da miséria e da fome.  

É importante dizer que tal slogan possui uma essência evidentemente conciliatória haja visa que em outras falas proferidas ele realçou que não há dois Brasis e que é imprescindível dar um basta ao ódio e à violência política e pacificar o país. Outrossim, cabe recordar que no ano passado a Secretaria de Comunicação Social lançou o mote O Brasil é um só povo. Convém evocar ainda que o slogan adotado em seu primeiro e segundo governo foi Brasil: um país de todos, o qual passava as ideias de diversidadee de inclusão. Ressalte-se que em 2002 o marqueteiro Duda Mendonça criou a expressão Lulinha, paz e amor para impulsionar sua campanha. E já emergiu o bote fé no Brasil, indicador de entrega de melhorias ao povo e aceno aos evangélicos. Não parece difícil perceber então que o atual presidente do país, desde seu mandato inicial e de maneira determinada anseia praticar uma gestão minimizadora de conflitos e enfrentamentos e fomentadora de entendimentos, acordos e acomodações.

Esta forma de gerenciamento tem sido aplicada por ele em todos os setores do governo e da sociedade, particularmente no âmbito das Forças Armadas. Com efeito, desde seus mandatos anteriores Lula tem procurado manter uma desejável atitude protocolar e pragmática com os militares apesar de não ter tomado nenhuma iniciativa peremptória voltada para o aperfeiçoamento do processo de subordinação deles ao regime democrático.  Note-se que que existe uma PEC de caráter duvidoso e questionável transitando no Senado que objetiva a despolitização das Forças Armadas. Mencione-se também a oportuna decisão do STF relativa ao artigo 142 da Constituição, porém precipitadamente anunciada como ultrapassagem da  politização das instituições bélicas segundo a fala de um de seus ministros.  

Destaque-se, também, que Lula se manteve atento à área castrense. De fato, nas gestões anteriores Marinha, Exército e Aeronáutica foram contempladas com diversas ações governamentais. E no mandato atual ele continua solícito às três armas, pois basta lembrar a destinação de mais de cinquenta bilhões de reais à área da defesa pertencente ao Programa de Aceleração do Crescimento e a decisão de poupar recursos das organizações castrenses do corte do orçamento de 2024.

Outrossim, tomou determinadas atitudes relacionadas aos militares, as quais são questionáveis, porém bem consoantes ao mote união e reconstrução, conforme o entendimento exposto. Em fevereiro deste ano dezenas de entidades sociais vieram a público cobrar a instalação da Comissão de Mortos e Desaparecidos ainda não autorizada por ele. Neste mesmo mês, ao se referir ao golpe de 64, declarou que não deseja remoer o passado e que pretende tratá-lo da forma mais tranquila possível. Recentemente proibiu a efetivação da campanha elaborada pelo Ministério de Direitos Humanos relativa a pedidos públicos de desculpas às vítimas da ditadura.

Por causa dessas atitudes emergiram inúmeras manifestações de descontentamento e exibição de críticas pertinentes nos meios de comunicação embora tenha vindo a público uma defesa baseada nos argumentos de que ele deve agir para que a unidade nacional se efetue ao máximo possível, que precisa criar as melhores condições para comandar os militares segundo a Constituição, bem como instituir uma nova orientação profissional à formação dos fardados.

Afora tais críticas é preciso completar que a escolha de seu Ministro da Defesa se revelou a mais importante decisão claramente sintonizada com o slogan adotado. Com efeito, ele tem se mostrado como uma pessoa adepta do diálogo, construtora de elos entre setores divergentes, que busca conversar com civis e fardados, prosear com políticos conservadores e progressistas, aproximar civis e militares, além de possuir boa aceitação entre os servidores de uniforme e, principalmente para buscar a conciliação deles com Lula. Junto aos comandantes das três forças, tem se dedicado a afastar a atividade político-partidária dos quartéis e pleitear elevados investimentos em segurança e defesa.

Não é preciso fazer qualquer esforço intelectual para perceber que o emprego do referido mote no âmbito das Forças Armadas está contribuindo bastante para o não aperfeiçoamento do necessário, legal e legítimo processo de submissão delas ao regime democrático mesmo porque, erroneamente, ele tende a ser visto como um indesejável constrangimento aos militares. Muito pior do que este entendimento é a adoção da ideia de que o mesmo representa capitulação, punição e revanche. Ademais o atual aumento da desaprovação do governo e a demonstração de força do bolsonarismo no ato realizado em fevereiro parecem  favorecer a contenção de iniciativas reformadoras da área castrense.

Observe-se que nossa história registra a presença de uma tendência golpista entre os servidores de uniforme e o hábito de atuarem como poder moderador. Desde a proclamação da República até meados do século passado o uso do poder moderador ocorreu várias vezes bem como a aplicação de golpes. Em 1964 ocorreu o golpe que suprimiu a democracia e recentemente aconteceu a tentativa de aplicar outro golpe para impedir a posse de Lula. Neste caso também foi levantada a possibilidade de empregar novamente o poder moderador baseada em uma absurda e infundada interpretação do artigo 142 da Constituição.

Embora o tresloucado ensaio para barrar a assunção do cargo de presidente tenha falhado, houve uma fala do então Comandante da Aeronáutica em seu depoimento à Polícia Federal, que precisa ser exposta e clarificada pois é extremamente grave e infelizmente passou desapercebida. Segundo os meios de comunicação ele asseverou que foi a posição firme de Freire Gomes que impediu a ocorrência de um golpe de Estado, pois caso o Comandante do Exército tivesse anuído possivelmente ele teria se consumado. Acrescentou também que o Comandante da Marinha colocaria suas tropas à disposição do presidente da República em uma possível tentativa de um golpe de Estado.

Estes dizeres indicam que ele devia possuir conhecimento a respeito do que estava ocorrendo no âmbito dos quartéis. Portanto, devia ter informações de que no interior deles era vigorosa a disposição favorável à aplicação do golpe, apesar da quantidade minoritária que participou ativamente. Isto tende a reforçar o entendimento de que a inclinação golpista dos fardados continua existindo, aparenta ser ampla e não foi seriamente abalada com o término da ditadura e da redemocratização do país.  

A democracia brasileira que se revelou exuberante frente aos recentes atos antidemocráticos não pode, em hipótese alguma, continuar suportando um elevado contingente de servidores de uniforme partidários do autoritarismo. Para tanto se faz necessário pesquisar as relações informais dos fardados, particularmente nas redes sociais, a socialização dos que ingressam nas Forças Armadas e as ações educativas que se desenvolvem nas escolas castrenses, inclusive o currículo oculto, pois é por meio delas que a atitude iliberal continua sendo cultivada e mantida.

Perante esta intrincada situação, e pensando tanto no presente quanto no futuro do país verifica-se que a conduta acolhedora e cordial de Lula em relação aos militares, apesar de acertada, por si só, não tem validade política, não encontra apoio em nenhuma justificativa convincente, não pode servir de barreira a outras iniciativas relevantes, e, portanto, precisa ser complementada num momento apropriado a ser definido pelo governo e, preferencialmente, após o convencimento dos militares. Então, além da pesquisa mencionada é imprescindível e urgente instituir mecanismos de controle democrático das Forças Armadas já aplicados em outros países regidos pela democracia os quais se mostraram efetivos. Vale lembrar que quanto mais recursos supervisores forem empregados mais consolidação do sentimento de dependência dos militares aos civis ocorrerá porquanto ele é essencial para impedir qualquer aventura política violadora da legalidade e da legitimidade.

Apenas para ilustrar seguem-se alguns exemplos desses expedientes: Ministério da Defesa chefiado apenas por civis na Argentina desde a redemocratização do país até a presente data; Ensino Superior Militar  subordinado ao Ministério da Educação na Turquia; Comissário Parlamentar das Forças Armadas, um defensor dos interesses militares, na Alemanha; Tribunal de Justiça Civil na Holanda que possui câmaras militares com juízes paisanos especializados junto a um juiz fardado; Ratificação pelo Senado da promoção de oficiais generais nos Estados Unidos da América do Norte.

Antônio Carlos Will Ludwig – Professor Aposentado da Academia da Força Aérea, pós-doutorado em educação pela USP e autor de Democracia e Ensino Militar (Cortez) e A Reforma do Ensino Médio e a Formação Para a Cidadania (Pontes)

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