O Disseminador da Peste, por Aracy P. S. Balbani

Há que se ter investigação correta e responsabilização pela tragédia sanitária que ainda nos aflige e pode fazer muito mais vítimas se não houver correção urgente de rumo no país.

O Disseminador da Peste

por Aracy P. S. Balbani

“O senhor bem sabe como, em um momento político tão delicado como o atual, uma Autoridade não perfeitamente equilibrada, não completamente dona de si e de seus atos, pode representar uma séria deficiência, prenunciadora de imprevisíveis consequências”.

Andrea Camilleri, Por uma Linha Telefônica

O escândalo Covaxingate envolvendo a compra da vacina indiana, mais uma denúncia grave de corrupção durante a pandemia de COVID-19, soma-se ao número inadmissível de brasileiros mortos pela doença, ao sofrimento dos sobreviventes que enfrentam sequelas e à dor de milhões de famílias.

Assim como a falta de suprimento de oxigênio em várias localidades do Brasil, o boicote ao uso de máscara e outros descalabros, também o caso Covaxin não pode passar em branco.

Há que se ter investigação correta e responsabilização pela tragédia sanitária que ainda nos aflige e pode fazer muito mais vítimas se não houver correção urgente de rumo no país.

Quem é acusado pode querer espernear e fazer cortina de fumaça. Sobretudo quando se trata de figura pública movida pelo próprio ego, acuada pela ambição insaciável de familiares e paralisada pelo medaço de perder eleições livres para o rival que mais odeia.

Quem está por cima não quer largar o osso. Porém, não são mais toleráveis mentiras, sigilos eternos, velhacarias e coronelismo. Nem toma lá-dá cá, quarteladas, chiliques autoritários, aglomerações em motocadas, voos de aerojegue ou quaisquer palanques eleitorais antecipados. Muito menos se deve silenciar frente às tentativas de intimidação de cientistas, intelectuais, artistas, quadros técnicos da administração pública, jornalistas e opositores.

É necessária uma solução democrática definitiva para essas velhas mazelas nacionais. Ouso dizer que sem democracia plena não pode haver vida digna nem saúde para os humanos no Brasil. Consequentemente, toda a humanidade estará ameaçada.

Opressão política e econômica, esquemas de pequenas igrejas, grandes negócios, milícias e corrupção – pública ou privada – ferem a sociedade, matam indivíduos e destroem o planeta.

Depois que todos os apoiadores graúdos baterem em Jair Bolsonaro o carimbo de inútil ou indesejável e virarem a página, as excrescências embutidas no bolsonarismo, um fascismo à brasileira, poderão sobreviver.

Por isso, a visão do intelectual siciliano Leonardo Sciascia sobre as relações entre o fascismo e a máfia se mostra oportuna e merecedora da leitura crítica dos brasileiros.

Em artigo, a pesquisadora Gisele Palmieri pontua que Sciascia “acreditava que a sociedade siciliana deveria reagir, interferir na realidade, combater as desigualdades e as injustiças sociais, ir contra a violência do poder (fosse a fascista, fosse a mafiosa). Viver numa sociedade mafiosa e fascista era o ápice de uma experiência de opressão. E ele não encontrava uma indignação explícita nos cidadãos sicilianos à sua volta”. “O desespero advindo da pobreza, a desesperança com a política vigente, a falta de oportunidades justas para os menos favorecidos parecem ser pontos de contato entre máfia e fascismo, fazendo com que ambos os regimes se ancorem na sociedade com a justificativa de oferecerem a melhor solução para essas injustiças” (1).

As manifestações populares de 29 de maio e 19 de junho pelo Fora Bolsonaro, vacina no braço e comida no prato foram importantíssimas para demonstrar que há, sim, uma poderosa massa indignada, corajosa, que não resigna a ser conduzida à morte. Mas, diante do aumento do número de contágios por coronavírus, conseguiremos conter a catástrofe antes de 24 de julho?

Basta de impunidade. Basta de exploração econômica do sofrimento humano. Basta de existir banda podre entre agentes políticos e do Estado, aquela que investe contra indígenas, mulheres, negros, favelados, trabalhadores rurais, estudantes e população LGBT.

Que em 24 de julho já celebremos a vida, a paz, a justiça e a esperança. Que comemoremos uma conquista: a refundação do Brasil como país saudável, solidário e honesto para todas e todos. Que nessa terra a verdade nunca seja impronunciável (2).

A propósito, “O Disseminador da Peste” é o título de um romance do premiado escritor italiano Gesualdo Bufalino (1920-1996) cujos personagens se encontram num sanatório para tuberculosos na Sicília após a Segunda Guerra Mundial. Fica a sugestão de leitura.

Aracy P. S. Balbani é médica.

Esse texto expressa a opinião pessoal da autora.

1. Gisele Palmieri. Analogias entre a máfia e o fascismo por Leonardo Sciascia.

Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaitalianouerj/article/view/48761/32612.

2. Gisele Palmieri. Leonardo Sciascia e a Verdade impronunciável. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/italianistica/article/view/174726/167692.

Redação

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