Combinação política e econômica no Golpe de 1964

O “Golpe Branco” dado no Governo Dilma (2016) foi um ensaio com grande sucesso que animou as forças políticas reacionárias

Combinação política e econômica no Golpe de 1964

por José Messias Bastos[1] e Leonardo Mosimann Estrella[2]

A economia política brasileira viveu dois grandes acontecimentos no século XX: a Revolução de 1930; e o Golpe Civil-Militar de 1964. O primeiro significou uma ruptura no polo interno do pacto de poder então estabelecido e foi costurado pelas classes sociais dirigentes nacionalistas do campo e da cidade ligadas ao abastecimento do mercado interno brasileiro; e o segundo foi uma intervenção  militar institucional para dar continuidade ao então pacto de poder estabelecido pela mencionada meia-ruptura ocorrida ainda em 1930, formando a terceira dualidade da economia brasileira de acordo com I. Rangel (2012).

A conjuntura de crise vivida pela sociedade brasileira na primeira metade da década de 1960 era reflexo natural do processo de industrialização em andamento, ou seja, da acumulação cíclica capitalista. Essa crise estava estreitamente ligada, reverberando Rangel, mais aos acertos do que aos erros cometidos pelo Programa de Metas, no governo anterior, de Juscelino Kubistchek (JK). A recessão que assolava a economia brasileira foi ampliada e reforçada pelo Plano Trienal de C. Furtado e ganhava seus contornos mais cruéis nas cidades ao, por um lado, ampliar significativamente a taxa de desemprego e, por outro, ao criar na cabeça de milhares de jovens a famigerada ideia do “beco sem saída”, combustível para a suicida guerrilha urbana que reivindicava as reformas de base.

O clima de desordem generalizado abriu o flanco para a descarada aliança entre reacionários liberais ligados ao mercado externo de importação e exportação e os conservadores progressistas nacionalistas, que levaram o Golpe de 64 ao “desfecho vitorioso”. Em seguida, as medidas institucionais como a correção monetária do liberal monetarista Octávio Gouvêa de Bulhões, no segundo lustro dos anos 1960, e seu congelamento nos anos de 1970 para as indústrias pesadas mecânica, química e de construção civil sustentou vários anos o forte crescimento da produção, período conhecido como “Milagre de Delfim”. Na verdade, esse movimento não só destravou os investimentos, como inseriu milhões de famílias no mercado de consumo. Ao mesmo tempo completava-se o edifício industrial brasileiro com a implantação da indústria de bens de capital, dando sustentação material à ditadura militar.

Na década de 1980 veio a fatura. Pelo lado econômico, o Estado brasileiro esgotou sua capacidade de endividamento, ou seja, ficou em situação de insolvência, falido, pois os credores internacionais (império), além de estancarem os empréstimos passaram a cobrar severamente a dívida então contraída. Para agravar a conjuntura, apresentava-se ainda, por um lado, grande capacidade ociosa na indústria recém instalada de bens de capital, sobretudo do setor privado, carente de encomendas. Por outro lado, os grandes serviços de utilidade pública estrangulados em geral e concedidos a empresas públicas, necessitando de centenas bilhões de reais de investimentos. Aliás, como se apresenta até os tempos de hoje. O resultado dos anos de incentivos à industrialização fortaleceu o setor privado, pois este acumulou uma gigantesca poupança real e potencial. Ora, fazer casamento para transferir capitais ociosos do setor supercapitalizado para os carentes de inversões, estrangulados, como o de infraestrutura, era a medida institucional a ser abraçada por todas as forças vivas da sociedade brasileira.

Mais uma vez a questão da privatização e da estatização apresentava-se como faces da mesma moeda e ganhava novas conotações, como ocorreu em outras conjunturas pretéritas da economia e da sociedade brasileira. Assistimos estupefatos, como coadjuvantes, o imperialismo estadunidense operando para enfraquecer politicamente a classe dos industriais, dos trabalhadores, dos intelectuais das universidades e cooptar o setor financeiro e midiático brasileiro. Nitidamente a ofensiva neoliberal em curso ajudou a enfraquecer o projeto nacional desenvolvimentista e a “mão visível” do mercado não só ensejou uma extraordinária concentração de capitais, como também levou à desnacionalização e ao desaparecimento de grandes grupos empresariais do país.

Diante desse quadro nada alentador, a resposta pela óptica política não podia ser diferente. Uma aposta no retorno ao passado (apostasia) se impôs, não só pela tarimba de políticos ligados ao esquema agroexportador (segunda dualidade) vitoriosos nas urnas com a eleição de Fernando Collor, como também pela incisiva ação neoliberal imposta pelo imperialismo e, a não menos importante, divisão das esquerdas. Contudo, os contornos derradeiros das premissas neoliberais ganharam terreno de forma decisiva por quase uma década inteira (anos 1990) com a eleição e reeleição de FHC.

Nessa conjuntura liberalizante, que procura diuturnamente romper com as estruturas construídas no projeto nacional desenvolvimentista inaugurado por Getúlio V. em 1930, o país chega ao início do século XXI em situação de terra arrasada, com suas contas públicas estraçalhadas, falência de grandes grupos industriais, trabalhadores desempregados das periferias urbanas cooptados ou  executados pelas milícias. Com isso, vislumbra-se uma luz no fundo do túnel com a eleição de Lula (2003-2010) e, em seguida, de Dilma Rousseff (2011-2016), que, aos trancos e barrancos, retomoram timidamente o projeto nacional desenvolvimentista. Os Planos de Aceleração do Crescimento (PAC) I e II, o Programa de Investimento em Logística (PIL), entre outras políticas de inclusão exitosas, melhoraram substancialmente o nível de vida da grande massa de brasileiros até então excluída do consumo. O rumo trilhado mostrou-se perigoso demais e a reação não tardou.

O “Golpe Branco” dado no Governo Dilma (2016) foi um ensaio com grande sucesso que animou as forças políticas reacionárias, a grande mídia, sobretudo a televisionada, sob a orientação de órgãos de repressão estadunidenses, a enterrar vivos Lula e o Partido dos Trabalhadores (PT). Quase devoraram o grande líder político. O bolsonarismo saiu vitorioso nas urnas, mas faltou muita competência para administrar a economia e a sociedade brasileira. A farsa montada pela famigerada Lava Jato (Vaza Jato) foi demolida pela República e Lula voltou ao comando político do Brasil com muito mais prestígio e poder. Contudo, por outro lado, a grande tarefa do império estadunidense foi exitosa ao não só fortalecer e unir as forças de militância de direita, como também sedimentar um possível caminho a ser percorrido pelas forças políticas internas pró-império estadunidense, que defendem um programa neoliberal para o Brasil. Seremos capazes de reduzir essas forças à sua insignificância?


[1] Professor Titular do Departamento de Geociências e do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Possui graduação (1980) e mestrado (1996) em Geografia pela UFSC e doutorado em Geografia pela USP (2002). Editor-chefe do periódico “Cadernos Geográficos” e da série “Livros Geográficos”. Coordena o Instituto Ignácio Rangel (IIR) e o Laboratório de Estudos Urbanos e Regionais (Labeur – UFSC) — [email protected].

[2] Administrador e graduando em Ciências Econômicas pela UFSC. Possui especialização em Gestão Estratégica de Pessoas, Gerenciamento de Crises, Comunicação Pública e Marketing para Gestão Empresarial. Mestre e doutorando em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Socioambiental (PPGPLAN) pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Coordenador do Núcleo de Estudo, Pesquisa e Observatório de Gás Natural da Vision Gas — [email protected].

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  1. Em agosto de 1961, Janio Quadros renunciou. Imediatamente começou o tragédia nacional, pois os militares se recusaram a aceitar a posse de João Goulart. Esse foi o primeiro golpe mortal na constituição de 1946, mas os militares que ameaçaram o país com uma guerra civil caso João Goulart fosse empossado não sofreram qualquer represália. Isso obviamente fortaleceu a ideia de que o Brasil era ou podia ser um apêndice do Exército. Em outubro de 1962 ocorreu a crise dos mísseis, fato que aumentou a paranoia militar cuidadosamente estimulada pelos agentes diplomáticos dos EUA no Brasil. A campanha suja financiada pela CIA contra Jango já estava então de vento em popa; 46 dias antes de ser assassinado em 22/11/1963, o então presidente JF Kennedy discutiu na Casa Branca uma possível intervenção militar dos Estados Unidos no Brasil para depor o presidente João Goulart. É difícil saber exatamente qual foi o impacto no Brasil da morte de Kennedy, mas é evidente que o golpe militar estava maduro demais para ser abortado. A ruptura da legalidade em abril de 1964 foi obviamente facilitada pela manutenção de Lincoln Gordon como embaixador dos EUA no Brasil. Desde 1961, Lincoln Gordon agia abertamente para depor Jango. Pouco depois de ser empossado, Lindon Johnson decidiu aumentar a presença militar norte-americana no Vietnã. E a Operação Brother Sam (envio de uma frota naval para o litoral brasileiro para apoiar os militares golpistas) facilitou a consolidação do golpe de estado. A alegação de que a esquerda estava prestes a dar um golpe comunista veiculada nesse video é propaganda enganosa. Em abril de 1964 os militares golpistas que rasgaram a constituição de 1946 rapidamente se instalaram no poder e em nenhum momento eles correram qualquer risco de ser derrubados ou mortos. Se eles tivessem sido derrotados militarmente a história do Brasil teria sido muito diferente.

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