Que indústria queremos?

A desaceleração da economia mundial que agora nos preocupa irá passar. E bem farão os governos que se preocuparem também com estratégias de longo prazo, não só com “segurar as pontas” no momento.

Que a participação da indústria na formação do valor agregado na economia brasileira está decaindo, é um fato. Caiu de 16% em 1995 para os 12 ou 13% atuais. Mas há muitos “ses” para pensar. Maior industrialização, para o Brasil atual, é indistintamente desejável ou apenas os setores capazes de pagar melhores salários devem ser estimulados? Como suprir de mão-de-obra com um sistema educacional que não é voltado para ensino técnico? Desvalorizar o câmbio é a melhor escolha para resgatar a rentabilidade da atividade industrial ou traz contra-indicações? E, se for o melhor caminho, como fazer? E em quanto? Há tantas variáveis em jogo que se focamos em apenas um objetivo corremos o risco de sermos imprudentes.

A desindustrialização ocorre em todos os países onde foi possível desenvolver atividades mais dinâmicas. Serviços ligados ao conhecimento em países desenvolvidos, agricultura e mineração com elevada participação de tecnologia em outros (e ambos na Austrália.) Construção civil e serviços mais comuns em todo lugar.

A redução lenta da participação da indústria nas economias ocorre tanto em países de moeda “cara”, como Alemanha e Japão (e note-se que apesar destes serem dos países mais caros do mundo ainda obtêm superávits comerciais de 6% e 4% do PIB com produtos industriais. Por que não precisam desvalorizar suas moedas?), como em países de moeda “barata” (África do Sul, Argentina, Turquia), onde os setores de serviços mesmo assim já pagam salários melhores que os industriais na China, Índia, Vietnã & Cia.  É certo que há países onde a importância da indústria e do câmbio desvalorizado se mantém (Coreia, Taiwan), mas estes são mais nicho que paradigma.

Nos EEUU ocorre desvalorização cambial contínua desde 2000, tendo o US$ caído de 1,25 euros para os atuais 0,74 euros. Cerca de 40% de desvalorização. Mas a participação da indústria na economia daquele país não aumentou no período, nem as exportações industriais dos EEUU para Europa, posto que a produção de muitos bens de consumo não duráveis e massificados desapareceu de ambos os continentes até antes do fenômeno China.

Será que a desindustrialização é sempre indesejada? Talvez não quando a indústria pode liberar trabalho para outras atividades de rápido crescimento, como saúde e comunicações. Também talvez não quando pensamos em subsetores. Não devemos tomar a crise atual (e suas lamentações) nos países da OCDE como permanente, e há décadas há uma expulsão consciente e programada de indústrias neles. Nesses países nem o fetichismo em torno da indústria subsiste. A China persegue a industrialização por motivo bem específico : precisa gerar empregos de algum modo por não ter ainda mercado consumidor interno para serviços nem ser capaz de gerar excedentes exportáveis de matérias-primas, é seu caminho para sair de uma economia de subsistência (o que era até os anos 1970, o que o Brasil era até os anos 1940.) Esse modelo já dá sinais de esgotamento e, com o seu envelhecimento populacional, daqui a 30 ou 40 anos veremos transferência de indústrias para a África. Indústria de ponta, capital intensiva, é uma coisa. Já a manufatura de bens de consumo de massa, com utilização intensiva de mão-de-obra, torna-se aos poucos um refúgio para situações difíceis, quando não há outras opções. Produção industrial (não confundir com o desenvolvimento de tecnologia) é a commodity que tende a se desvalorizar nestas décadas.

Se nos anos 1960/1970 uma desvalorização cambial provocava grandes efeitos na distribuição entre produção interna/externa de manufaturados, permitindo rápidos resultados com substituição de importações, isto hoje não é mais possível na mesma escala. Efeitos sempre há, claro, mas minimizados pela globalização : homogeneização dos preços das matérias-primas e também a “commoditização” dos componentes e bens intermediários. Se antes uma desvalorização baratearia em todos os pontos na formação de preços (imóveis, insumos, equipamentos, mão-de-obra), hoje impacta de modo duradouro apenas nos fatores trabalho e impostos. (E, novamente, há a China… Como maior economia exportadora/importadora e ainda sendo a mais regulada, define todos os preços relativos. Para cada ação que houver no resto do mundo haverá a reação.)

O resultado mais esperável de desvalorização não é reindustrialização em larga escala, mas o reequilíbrio das contas externas com contração de consumo. Na Argentina de 2002-2003 e na Rússia de 1998-1999 as maxidesvalorizações de até 200% não redundaram em grande crescimento da base industrial. Mas irrigaram a economia com a renda de agrícolas e minérios,  impediram o consumo de importados e aumentaram a demanda em serviços. E em ambas economias, após cerca de uma década de crescimento econômico, as moedas já se revalorizaram (em 2011 o PIB em US$ correntes da Argentina já é 50% maior que em 2001 – último ano da paridade cambial – , e 5 vezes maior que em 2002. O do Brasil também está previsto para ser 5 vezes maior que o de 2002. O PIB em US$ correntes da Rússia é atualmente 10 vezes maior que no auge da crise cambial daquele país [1999], pelo que há que se tomar muito cuidado com que ponto de partida escolher quando se calcula sobrevalorização de moedas.)

Se os resultados macroeconômicos foram bons para esses países, como também o foram para o Brasil de 1999-2003, é porque havia grande capacidade ociosa anterior. Esta não é a situação do Brasil atual. Na hipótese de haver mecanismos que pudessem levar a uma desvalorização os benefícios como a manutenção e o crescimento do emprego em alguns setores industriais atualmente no limite da rentabilidade (ou recém expulsos) envolvem 3 a 4% do PIB. Mas a redução no poder aquisitivo e a reconcentração geral da renda seriam sentidos por toda a economia que não é “exportável”. (Boa parte da expressiva redução do índice de Gini no Brasil dos anos 2000 deveu-se não só a políticas sociais, mas também à redução do preço relativo de bens transacionáveis vis a vis salários e aposentadorias. Para entender isto basta olhar a situação contrária : se houver uma desvalorização expressiva para onde irá a renda obtida com o aumento de preços nos alimentos, energia e ferro, setores que não aumentarão a produção e o emprego?)

Tudo isto não significa que se deva sacrificar permanentemente os setores que seriam capazes de manter as contas externas em equilíbrio para quando – em futuro próximo ou não – for reduzida a entrada de divisas por investimentos ou houver redução dos preços de matérias-primas. Um déficit em manufaturados, da ordem de US$ 90 bi como o esperado para o Brasil em 2012 pode ser excessivo e comprometer irremediavelmente uma distribuição saudável de atividades econômicas. Uma taxa de câmbio de equilíbrio intertemporal (de longo prazo) deve ser buscada, e já contemplando efeitos deletérios de “doença holandesa” (e fundos soberanos servem para isso.) Mas ainda assim uma desoneração tributária e uma elevação (com o disfarce que for) no recurso ao protecionismo dariam resultados mais consistentes sem prejudicar a distribuição de renda e sem desalinhar todos os preços relativos internos. Desajustes e artificialismos provocados por diferenças excessivas nos juros também devem ser evitados.

Um problema bem brasileiro é o sistema tributário criado para economia fechada, que onera os setores onde é mais fácil a arrecadação, e que não foi modernizado quando da abertura comercial. No fim, os setores que não exportam, como construção civil e serviços sofrem menor carga tributária. Isso também ocorre para a agricultura, mas esta não está precisando de câmbio para sua competitividade.

E sem tributação de ganhos extraordinários em matérias-primas (como Noruega, Austrália, Canadá, Argentina, Peru de um modo ou de outro fazem) é quase impossível obter uma desvalorização estável (e mesmo assim alguns desses países apenas contêm a sobrevalorização.) Os ciclos de desvalorização/valorização de matérias-primas são de muito longo prazo, estamos apenas nos primeiros anos da valorização. Mesmo que a China desacelere seu crescimento e que as expectativas de redução no preço dos metais (em proporção menor para agrícolas) se confirmem para 2012, ainda assim se passarão anos onde as moedas de emergentes estarão valorizadas (e não só emergentes, o dólar australiano dobrou de valor em uma década.) Uma discussão que começa é quanto tais moedas estavam desvalorizadas antes, reduzindo o poder aquisitivo de seus países, não mais tanto o quanto estão sobrevalorizadas hoje. Assim, mecanismos como a formação de reservas, além de seu efeito para as contas públicas, não surtem efeito indefinidamente. Principalmente quando o pré-sal for uma realidade.

Uma dose de cada medida possível (quais sejam abrir mão da produção de alguns produtos, desenvolver tecnologia, melhorar educação, tributar exportações, proteger alguns setores, desvalorizar um pouco o câmbio, reduzir juros reais, abrir novos mercados consumidores, endurecer em negociações, formar reservas, qualificar investimentos externos) pode muito bem ser mais prudente – e desenvolver mais harmonicamente o país – que depositar todas as fichas em uma aposta só.

Redação

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