Sobre a origem do craque de futebol, por Felipe Costa

Todos aqueles trejeitos de corpo que fazem com que um jogador seja considerado um grande futebolista ou um verdadeiro craque não têm nada a ver com a cor da pele.

Latuff

Sobre a origem do craque de futebol.

Por Felipe A. P. L. Costa [*].

Em sua coluna deste sábado, 19/6/2004, no prestigioso sítio eletrônico NoMínimo, Roberto Benevides publicou um artigo – ‘A bola corre para a Europa’ – no qual encontramos o seguinte parágrafo (grifo meu):

“Mais curiosa ainda é a exceção quando se lembra que os incomparáveis craques do Brasil e da Argentina têm como antepassados os portugueses e espanhóis que, no século XVI, trocaram a península ibérica pela América do Sul. Há quem diga que o Brasil deve a fartura de craques à porção afrodescendente de seu povo. Pode ser, mas a Argentina quase não tem negros e nunca deixou de ter craques. Em Portugal e na Espanha é que eles não vingam.”

Em fevereiro deste ano, em artigo publicado neste Observatório (Como usar o ‘bom senso’ para gerar bobagens), apresentei uma lista com exemplos de afirmações inconsistentes comumente encontradas na mídia. Afirmações construídas apenas com a ajuda do bom senso podem parecer corretas para quem faz uma leitura apressada ou superficial, mesmo quando escondem argumentos inconsistentes. Um dos exemplos que usei tem a ver justamente com a questão da origem do craque de futebol, a saber:

“Jogadores de futebol afrodescendentes são inerentemente mais habilidosos do que os não afrodescendentes, pois a ginga de corpo é uma característica própria de negros e mulatos.”

GENÉTICA OU CULTURA?

Não sou especialista em comportamento humano, embora sempre tenha me interessado pelo estudo do comportamento animal [1]. Dito isto, tomo aqui a liberdade para especular e, nos parágrafos que se seguem, apresento uma hipótese explicativa para a questão da origem do craque, entendido aqui como um jogador mais habilidoso que os demais.

Começo com uma provocação: sabe por que o futebol praticado por paulistanos (ou por moradores de qualquer outra metrópole mundo afora) é e continuará sendo medíocre? Simplesmente porque faltam campos de futebol de livre acesso na cidade de São Paulo. (Não se iluda: em muitas cidades brasileiras, o acesso aos poucos campos de várzea disponíveis não é livre. Ao contrário, é pago – i.e., os jogadores pagam para jogar, com um detalhe curioso: os goleiros pagam menos! No fim das contas, cria-se também um círculo vicioso: como o acesso aos campos é controlado, os controladores terminam se convertendo em personagens políticos relevantes – e.g., cabos eleitorais. Conheço casos assim, aqui na Zona da Mata mineira.)

Todos aqueles trejeitos de corpo que fazem com que um jogador seja considerado um grande futebolista ou um verdadeiro craque de futebol (ou de qualquer outro esporte) não têm nada a ver com a cor da pele. Ou com a origem social ou qualquer outro daqueles fatores que comumente aparecem nas explicações que os jornalistas apresentam em suas colunas de domingo. Aqui, como em tantos outros casos, a contribuição da genética é pífia ou apenas indireta [2].

Tudo ou quase tudo que separa o craque dos futebolistas que são apenas e tão somente aplicados, digamos assim, teria a ver com outro processo: a aprendizagem por imitação. E isso incluiria desde o jeito de chutar a bola até a maneira de conduzi-la com os pés, passando pelos dribles usados para se livrar dos adversários em campo.

Explicando melhor: trejeitos de corpo são aprendidos por imitação, quando somos ainda bem pequenos, a exemplo do que ocorre com outras habilidades (físicas e mentais), incluindo o jeito de falar, andar ou gesticular.

ESCOLINHAS OU CAMPOS DE VÁRZEA?

Quando somos pequenos, capturamos muita coisa do nosso ambiente de modo inconsciente, através do que parece ser uma janela de oportunidades. Com o amadurecimento, a janela se fecha e aí não há mais como absorver as coisas do mesmo jeito. É por isso, por exemplo, que na idade adulta achamos tão difícil aprender e falar corretamente um segundo idioma – i.e., na idade adulta, além de já sermos falantes de um idioma nativo, nós passamos a refletir sobre o processo, o que tende a dificultar a mera absorção. De modo semelhante, seria muito difícil, a partir de determinada idade, transformar um futebolista mediano em um craque.

Os pais que matriculam seus filhos em escolinhas de futebol, imaginando que um adolescente perna de pau possa vir a se transformar um dia em um Dirceu Lopes, por exemplo, estariam simplesmente jogando dinheiro fora. Não custa lembrar: praticar esporte em uma escolinha pode ser algo saudável e prazeroso. Mas o xis da questão aqui é outro: as escolinhas de futebol não podem efetivamente cumprir o que anunciam – i.e., elas simplesmente não podem formar craques [3].

Por quê? Porque a transformação de um aspirante a futebolista em um craque de verdade seria essencialmente um processo de aprendizagem por imitação, restrito mais ou menos à idade infantil.

Para se tornar um craque, claro, o sujeito deve contar com certos atributos favoráveis (miopia, por exemplo, atrapalha, embora não impeça), mas os fatores decisivos são outros – é necessário principalmente aprender as coisas certas, no lugar certo. Neste sentido, a melhor escola de craques seria um campo de várzea (ou uma quadra) de livre acesso, especialmente quando há ali uma mistura de gerações: crianças pequenas, por exemplo, esperam sua vez de jogar enquanto presenciam a exibição de jogadores mais velhos. Em tais circunstâncias, as crianças teriam a chance de aprender (consciente ou inconscientemente) duas coisas fundamentais: (1) repetir e reforçar os comportamentos que dão certo (e.g., os que resultam em gols); e (2) evitar ou neutralizar os comportamentos que não dão certo (e.g., os que resultam na perda fácil da bola).

CODA.

A hipótese explicativa aventada neste artigo tem ao menos um desdobramento demográfico relevante: se os craques surgem por imitação, então o número de craques deve aumentar em razão do número de campos de várzea existentes. Em outras palavras, o Brasil já foi o país do futebol – do mesmo modo como os Estados Unidos já foi o país do basquete (esporte que também envolve trejeitos e gingas de corpo) – por razões que nada têm a ver com etnia, como querem crer muitos dos cronistas esportivos mais ufanistas. A explicação seria bem outra: interações culturais ocorridas em campos de várzea (ou quadras) frequentados por jogadores de gerações diferentes.

*

Notas.

[*] Versão original deste artigo foi publicada no Observatório da Imprensa, em 22/6/2004. Sobre como adquirir os livros do autor, ver o artigo Ciência e poesia em quatro volumes. Para adquirir algum volume específico ou para mais informações, faça contato pelo endereço [email protected]. Para conhecer outros artigos ou obter amostras dos livros, ver aqui.

[1] Para uma introdução ao assunto, ver, e.g., Comportamento animal (Artmed, 2011), de John Alcock.

[2] Para uma discussão do comportamento humano com base na distinção entre fatores genéticos e fatores culturais, ver La diversidad humana (Editorial Labor, 1984), de Richard Lewontin.

[3] Uma boa escolinha de futebol, assim como um bom técnico, pode evidentemente lapidar um craque já formado.

* * *

Redação

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