Passaportes para a sobrevivência

Do Estadão – 03/09/2011

Justa, de Mônica Raisa Schpun, retrata a vontade de emancipação feminina na fuga da perseguição nazista.

Aracy de Carvalho, a “justa” de que fala o título, trabalhava no Consulado do Brasil em Hamburgo e foi responsável pela emissão de vistos que podem ter significado a diferença entre a vida e a morte para centenas de pessoas.

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Marcos Guterman – O Estado de S.Paulo

O pesadelo nazista na Europa atingiu o Brasil de diversas maneiras. Uma das mais significativas, como detalha a historiadora Mônica Raisa Schpun, da École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris, foi o drama dos imigrantes judeus que fugiram de uma Alemanha que lhes era cada vez mais hostil. Em seu livro Justa (Civilização Brasileira), recém-lançado, ela mostra que esse fluxo só foi possível graças a alguns heróis circunstanciais. Um deles foi Aracy de Carvalho, a “justa” de que fala o título. Ela trabalhava no Consulado do Brasil em Hamburgo e foi responsável pela emissão de vistos que podem ter significado a diferença entre a vida e a morte para centenas de pessoas.

Mônica usa a história de Aracy e dos judeus que ela socorreu como pretexto para se debruçar sobre os dramas, sonhos e estranhamentos contidos em cada deslocamento rumo a um país desconhecido. Assim, seu livro não é uma mera biografia de Aracy, celebrizada injustamente como “a viúva do escritor Guimarães Rosa”, mas um notável estudo sobre imigração – e também sobre a força das mulheres. “Mesmo que eu quisesse fazer uma biografia”, explicou Mônica em entrevista ao Sabático, “a documentação sobre Aracy é insuficiente. O que tem ali já foi tirar água de pedra.”

Justa tem como centro a ida de Aracy para Hamburgo, onde conheceu a outra ponta do relato de Mônica, a judia alemã Margarethe Levy. A ideia, diz a historiadora, é “abrir janelas comparativas, para caracterizar o Brasil da época, no contraste com a Alemanha”. As duas representam, no livro, a vontade de emancipação feminina.

Aracy separou-se de seu primeiro marido numa época em que o divórcio não era reconhecido no Brasil, e lutou com vigor para conseguir viver com o filho na Alemanha e trabalhar para a diplomacia brasileira. Margarethe, por sua vez, não queria filhos e, segundo seu relato à historiadora, fez “vários abortos”, também num momento em que a interrupção da gravidez era controversa na Alemanha. Dizia-se “livre pensadora”, uma “mulher do mundo”. A fibra de ambas foi testada a partir de 1938, quando a sombra da perseguição sistemática dos judeus já dominava a Alemanha.

Com o marido escondido, Margarethe, a exemplo de outras tantas mulheres na mesma situação, teve de assumir a tarefa de resolver a vida do casal para conseguir emigrar para São Paulo. Ela vinha de família rica e teve raro contato com o antissemitismo cotidiano, entre outras razões porque se relacionava com poucos judeus. Só mais tarde, quando ficou claro que o governo nazista transformaria os judeus em párias, Margarethe sentiu o drama da perseguição, justamente porque teve de se afastar de seus amigos não judeus: “Amigos que tínhamos durante anos não nos conheciam mais”, relata ela no livro.

Mas as judias alemãs de um modo geral, exatamente porque circulavam mais que os maridos nas ruas, nos mercados e nas lojas, sentiram muito antes e em grau muito maior a hostilidade antissemita – e pressentiram o perigo do nazismo. Eram elas também, como mostra Mônica, as responsáveis pelo equilíbrio emocional dos filhos ante a tensão da perseguição. E tiveram de arranjar trabalho para obter renda e substituir os maridos presos ou mortos.

Aracy, por sua vez, driblou diversas diretrizes do governo brasileiro, correndo óbvios riscos em relação ao seu trabalho, para fornecer vistos não só para Margarethe, de quem se tornou grande amiga, mas para muitos outros judeus que não se enquadravam nas cotas oficiais.

A costura do livro está na reconstituição do ambiente que Aracy encontrou na Alemanha, onde, como mulher, tinha uma liberdade de movimento sem paralelo no Brasil – ela chegou a comprar um carro, uma comodidade normalmente reservada aos homens. Passa também pelo choque de Margarethe com a São Paulo dos anos 30, uma cidade em construção, sem passado e com as cores multiculturais dos imigrantes, algo bastante diverso do universo alemão. Contudo, Margarethe não teve dificuldade em se adaptar ao Brasil, porque “nunca teve pátria” – era polonesa de nascimento, foi alemã por opção dos pais e tornou-se brasileira por circunstâncias históricas.

Finalmente, o livro também mostra como o governo brasileiro agiu em relação aos judeus que fugiam da perseguição na Alemanha. Uma circular secreta que orientou a diplomacia do País chegou a qualificá-los como “parasitas”, “mentirosos” e “subversivos”. Mônica consegue provar, no entanto, que a atitude do Brasil não era diferente da do resto do mundo, indisposto a receber aqueles párias. O governo dos EUA, por exemplo estabeleceu cotas de imigração para os judeus bem antes do Itamaraty. A recusa brasileira a conceder vistos a esses imigrantes não era automática, porque o governo Vargas se reservava o direito de decidir caso a caso, como faria qualquer país naquelas circunstâncias.

Isso revela que o governo brasileiro não era particularmente antissemita. Pelo contrário: os judeus viveram um período de efervescência cultural e social sob o governo Vargas, o mesmo que habitualmente aparece na historiografia como hostil aos imigrantes “de raça semita”.

“Os estudos do começo dos anos 80 a respeito do antissemitismo varguista descobriram uma realidade da qual ninguém desconfiava”, defende Mônica. “Depois a gente vai digerindo melhor a coisa”, diz a historiadora, a respeito de novos documentos e interpretações. “É evidente que havia uma indiferença brutal em relação ao que estava acontecendo com os judeus na Europa, mas não era prerrogativa brasileira.”

No entanto, o foco de Mônica não é propriamente a diplomacia, isto é, o Estado, mas “a história construída por baixo, com a experiência dos imigrantes”. E é esse o trunfo do livro, ao reiterar a tragédia de um povo que, de um momento para outro, teve as portas do mundo fechadas diante de si – e que passou a depender da sensibilidade de gente como Aracy de Carvalho para encontrar frestas pelas quais se esgueirar e, assim, ter a alguma chance de viver.

Generosidade e achaques

Anjos e Safados no Holocausto, de Roberto Lopes, põe em xeque diplomacia latina

Não houve apenas heróis, como Aracy de Carvalho, entre os diplomatas brasileiros que trabalhavam na Europa durante o pesadelo nazista. O jornalista Roberto Lopes, especializado na história diplomática latino-americana no Terceiro Reich, prepara para outubro o lançamento de um novo livro a respeito, Anjos e Safados no Holocausto (Editora Lafonte), no qual promete mostrar que, entre os diplomatas, apareceram burocratas que tentaram se aproveitar da situação, achacando os judeus.

“O livro é a primeira tentativa na historiografia sul-americana de abordar os esquemas de atendimento aos judeus na Europa”, disse Lopes ao Sabático. O período escolhido, entre 1938 e 1939, é crucial: a Noite dos Cristais (1938), em que sinagogas e lojas judaicas foram alvo de uma onda de fúria nazista, mostrou aos judeus que o antissemitismo não era mais apenas retórico. Ademais, com o início da guerra, em 1939, e o avanço da Alemanha sobre outros países, ficou evidente que as possibilidades de refúgio para os judeus se reduziram drasticamente. Foi aí que a diplomacia da América Latina ganhou importância para esses desesperados. “Os judeus encontraram generosidade e até mesmo operações bem montadas para tirá-los da Europa, mas havia diplomatas corruptos que se aproveitavam da ocasião para ganhar dinheiro com aquilo”, conta Lopes.

Segundo o pesquisador, havia muito mais diplomatas trabalhando em esquemas de corrupção do que gente disposta a ajudá-los. Lopes diz que esse fenômeno tem uma explicação simples: os países latino-americanos eram muito pobres. “Alguns deles deixavam seus diplomatas na Europa ocidental praticamente à míngua.”

O jornalista dá exemplos dessa penúria, como o do representante da Costa Rica na legação do país em Paris, que não tinha uma máquina de escrever decente. “O chefe da missão sempre pedia desculpas a seus superiores na Costa Rica porque não tinha dinheiro para comprar uma máquina moderna.” Além disso, muitos diplomatas latino-americanos na Europa eram pessoas cujos governos queriam se ver livres, ou então tinham de ser mantidas no exterior por motivos políticos, ou, ainda, eram apaniguados dos governantes. “Desse modo, era uma gente de baixo nível, em sua maior parte.”

Mesmo o Uruguai, que era chamado na Europa de “Suíça da América do Sul”, pela sua qualidade de vida, teve algum dos casos mais graves de funcionários corruptos, diz Lopes. Segundo ele, houve até um de seus diplomatas que foi flagrado pela própria Gestapo, a polícia política nazista, conhecida por ser visceralmente corrupta. “Ele tinha uma equipe de judeus alemães que captava a “clientela” e ele a achacava barbaramente”, conta o pesquisador.

Mas uma das histórias que Lopes considera mais dramáticas é a de Murillo Martins de Souza, cônsul brasileiro em Marselha. Ele foi expulso do Itamaraty em 1942 porque ousou ajudar os judeus. “O livro mostra como ele foi sendo cercado, como todas as medidas que ele tomava começaram a ser cerceadas pelo Itamaraty, como ele foi sendo desautorizado em tudo o que ele fazia”, diz o pesquisador. “Ele foi uma pessoa que salvou muitos judeus da morte certa.” Apesar disso, Murillo, o “cônsul solitário”, ainda não está no Jardim dos Justos, homenagem de Israel aos não judeus que socorreram os perseguidos pelo nazismo.

JUSTA
Autora: Mônica Raisa Schpun
Editora: Civilização Brasileira
(518 págs., R$ 49,90)

ANJOS E SAFADOS NO HOLOCAUSTO
Autora: Roberto Lopes
Editora: Lafonte
(Lançamento em outubro)

Luis Nassif

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