Prende e solta, por Marco Aurelio Mello

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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da Folha

Prende e solta, por Marco Aurelio Mello

A prisão preventiva talvez amenize consciências ante a morosidade da Justiça, como se fosse uma panaceia perante a impunidade

O título deste artigo revela autoria única. Quem prende e solta é o Estado-juiz, gerando toda sorte de perplexidade, de decepção para os cidadãos em geral. A ordem natural direciona a apurar para, selada a culpa, prender, em execução da pena privativa da liberdade de ir e vir.

Esse enfoque decorre da presunção do que normalmente ocorre; mais do que isso, do princípio constitucional da não culpabilidade: ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.

A impossibilidade de voltar-se ao estado de fato anterior exclui a denominada execução provisória da pena. A liberdade perdida, ante postura precoce, temporã, açodada, foge ao campo da devolução. Há, pois, de admitir-se uma premissa: o acusado, até então simples acusado, deve responder ao processo-crime em liberdade, assim permanecendo sob os holofotes da persecução penal, o que não é pouco em termos de reputação perante a sociedade.

A Constituição Federal, de forma indireta, contém mitigação a esse princípio, ao versar não só que ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, como também que ninguém será levado à prisão ou nela mantido quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança.

A prisão temporária é exceção, e mais ainda o é a preventiva. Presente o princípio da não culpabilidade, o legislador veio a afastar, como título da prisão provisória, até mesmo, o flagrante. Fê-lo mediante lei de 2011, estabelecendo a necessidade, se for o caso, de conversão em preventiva, uma vez não sendo oportuna e satisfatória a adoção, no caso concreto, de uma das medidas acauteladoras nela previstas.

Mas por que a população carcerária provisória chegou a patamar praticamente igual ao da definitiva, levando o Conselho Nacional de Justiça, na gestão do ministro Gilmar Mendes, a realizar um verdadeiro mutirão de soltura?

As razões mostram-se muitas. São potencializados –em inversão de valores, em abandono de princípios, da máxima segundo a qual, em direito, o meio justifica o fim, mas não este, aquele– aspectos neutros, de subjetivismo maior, sobressaindo o critério de plantão e, com isso, grassando a incerteza, a intranquilidade, a insegurança.

Em visão míope –e de bem-intencionados, nesta quadra estranha, o Brasil está cheio–, passou a vingar não o império da lei, mas a óptica do combate, sem freios, dos desvios de conduta, da corrupção, da delinquência de todo gênero.

A prisão preventiva talvez amenize consciências ante a morosidade da Justiça, dando-se uma esperança vã aos cidadãos, como se fosse panaceia perante esse mal maior que é a impunidade. A exceção virou regra, implementando-se, com automaticidade e, portanto, à margem da regência legal, esse ato de constrição maior que é a prisão.

As decisões nesse campo carecem de fundamentação, desaguando na concessão de ordem em habeas corpus. Por vezes, potencializa-se a imputação e, em capacidade intuitiva, presume-se que, solto, o investigado voltará a delinquir. Que se apure, viabilizando-se, à exaustão, o direito de defesa, para então, depois de incontroversa a culpa, limitar-se a liberdade, bem suplantado apenas pela própria vida.

Não é demasia lembrar Machado de Assis –a melhor forma de ver o chicote é tendo o cabo à mão. Justiça não é sinônimo de justiçamento. A sociedade não convive com o atropelo a normas reinantes. O desejável e buscado avanço social pressupõe o respeito irrestrito ao arcabouço normativo. É esse o preço a ser pago “” e é módico, estando ao alcance de todos “” por viver-se em um Estado Democrático de Direito.

MARCO AURÉLIO MELLO, 68, é ministro do Supremo Tribunal Federal

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

6 Comentários

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  1. Isso tudo pra nao tirar a

    Isso tudo pra nao tirar a bunda de gilmar mentes da lei seis-a-zero de financiamento de campanha?

    Estou emocionado.

  2. Mais do mesmo

    Não há sistema jurídico no mundo que espere quatro instâncias de julgamento para prender. Isso significa mais de dez anos. 

    Míope para com a sociedade é quem interpreta nossa lei dizendo que a decisão do juiz de primeiro grau, de segundo, e até de terceiro, não é suficiente para afastar o princípio da não culpabilidade. 

    MA vive encastelado, nunca tomou um interrogatório de réu, e é um dos responsáveis pelo STF em matéria penal ser mais acadêmico do que prático, juiz. Queria ver ele trabalhando em uma pequena cidade do interior aplicando suas teorias malucas e soltando todo mundo que a polícia prendesse, em seis meses a cidade estaria pedindo a cabeça do juiz. Lá encima a sociedade é algo abstrato. Aqui embaixo ela existe. 

  3. Hipocrisias sociais

    Pois é.

    Todos somos contra a corrupção, até sermos pegos em uma blitz.

    Ou até encararmos uma prova, sem havermos estudado o suficiente.

    Todos queremos Justiça rápida, até sermos réus.

    Todos queremos cadeia – para os outros…

    Quem já foi vítima de uma acusação mentirosa ou injusta sabe do que estou falando.

    Tento não entrar no clima instalado no País, ser mais sereno, olhar todos os lados e – principalmente – não emitir juízo sobre situações que não domino.

    O problema são os outros… Ah, os outros…

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