Mais um sonho sem pé nem cabeça discute o futuro da humanidade, por Sebastião Nunes

Meus amigos continuam fazendo trapalhadas com seus sonhos malucos. Até parece um retrato do Brasil atual. E aproveito o humor para sonhar um sonho impossível: o fim do racismo.

Mais um sonho sem pé nem cabeça discute o futuro da humanidade

por Sebastião Nunes

Estava o negro Adão Ventura posto em sossego, ouvindo a bizarra narrativa do comparsa Sérgio Sant’Anna, quando levantou, suspirou, espreguiçou, fungou, passeou os lábios sobre a dentadura mal ajustada e, de bem com a morte, decidiu ser o segundão a narrar recente sonho. Como ainda não havia pigarreado, fê-lo (eita, nós!), dardejou em torno os avermelhados (cortesia de celestial cachaça) bugalhos, e começou assim:

– Estava eu posto em sossego, ouvindo o notável pesadelo do parça Sant’Anna, quando fui intimado a, se não verbalmente, mas por intimação exótica, e por artes de esconjuros secretos, a, repito, expor diante de tão nobre assistência, um de meus sonhos. Se assim lhes convém, assim será. Ei-lo, pois:

“Estamos fodidos”, cerebralizou Otávio Ramos, “com esse tipo de introdução barroca a lugar nenhum iremos”.

– Ei-lo, pois – repetiu Adão, ignorando a muda interpelação otaviana.

“Bem ou mal, na verdade antes mal do que bem, vivem na Terra algo como oito bilhões de seres ditos humanos. Oito bilhões. Gente pra caralho. Vão de lá para cá no cumprimento de suas corriqueiras e diuturnas funções: roubar, estuprar, sacanear, matar, debilitar, tungar, acumular, surrupiar, depauperar, trair, esconder, foder, botar pimenta em olhos e cus alheios – e outros verbos beligerantes similares. Mas considerem esse introito mero aquecimento, pois apenas expresso minha opinião sobre a humanidade em geral, nada tendo a ver com o sonho.”

Pigarreou mais uma vez, esperou alguma admoestação durante 33 segundos e, não ocorrendo qualquer manifestação, continuou:

“Sonhei que tinha abiscoitado o Prêmio Nobel de Literatura e estava sentado à mesa em Estocolmo para o jantar comemorativo. A meu lado direito, o nobre colega e físico Albert Einstein, galardoado em mil e novecentos e fumaça. Estranhei a vetustez do alemão, mas reconheci em seguida que, no reino da física, sua contribuição foi monumental. À esquerda, o nobre colega José Raúl Capablanca, vencedor do Prêmio não sei quando, por sua enorme contribuição ao desenvolvimento de mentes brilhantes pela prática enxadrística. Verifiquei, então, que não importava a categoria ou o ano, mas apenas a qualidade excelsa dos vencedores. Prova disso foi a introdução no recinto dos nobres colegas Albert Camus e William Faulkner, mestres de cerimônia.”

Sérgio Sant’Anna, muito aplaudido pelo sonho (ou pesadelo) aqui narrado na semana passada, torceu o nariz, murmurando: “Eu sabia que desse mato não sairia coelho, quando muito um preá. Ou um gambá”.

Fez ouvidos de mercador o esperto Adão e continuou:

“Ansiosamente aguardado pela seleta plateia, e depois que Martha Argerich e Daniel Barenboim executaram ao piano o Réquiem de Mozart, numa saudação aos mortos que não deixávamos de ser, ergui-me, sacudi-me, levitei brevemente para assegurar-me de que estava na plena posse de meus extraordinários recursos mentais e dei início ao discurso de agradecimento.”

O DISCURSO DE ADÃO

Depois de tanto disparate, até São Pedro interrompeu a introdução de novas almas no celestial recinto e parou para ouvir. Fez muito bem, pois, na portaria, um tal de Jair Messias Bolsonaro ameaçava céus e terras, berrando: “Eu mato esse desgraçado se não me deixar entrar!”, mesmo sabendo que, atrás dele, Satanás, empunhando o tridente cerimonial, aguardava tranquilamente o fim do esperneio para conduzi-lo a destino mais adequado a seus desmandos terreais.

Então, Adão começou:

“Sonhei que acabava de ganhar o Prêmio Nobel de Literatura e me encontrava em Estocolmo sentado à mesa do jantar comemorativo, e que devia dar início ao discurso de agradecimento. A meu lado direito…”

– Ora, Adão – interrompeu Otávio, rabugento como sempre. – Tudo isso você acabou de contar.

– Acabou, sim – rosnaram Manoel Lobato, Luís Gonzaga Vieira, Dom Quixote e Sancho Pança, outros rabugentos.

– Então, tá – concordou Adão, continuando:

“Comecei assim meu discurso: ‘Sonhei que, em todos os países da Terra, negros e brancos estavam reunidos num magnífico jantar festivo para comemorar, enfim, a paz entre as duas facções. Os brancos compensariam os negros, regiamente, por todos os males que tinham feito ao longo dos séculos de escravidão, discriminação, ódio e tudo o mais que lhes fosse exigido. Em compensação, os negros esqueceriam o rancor que haviam devotado aos brancos, passando uma borracha na história’. Não pude continuar: Uma explosão de gargalhadas acolheu minha fala. Em peso, a plateia se cagava de rir do que eu acabava de dizer. Imediatamente, a comissão de concessão do Nobel se reuniu e trocou meu prêmio.”

– Trocou??? – trovejaram em uníssono os ouvintes.

– Sim, trocou – disse Adão. – Em vez do Prêmio Nobel de Literatura, criaram e me outorgaram o Prêmio Nobel de Humorismo. Fiquei feliz do mesmo jeito.

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“Tenho a impressão de que estou tentando contar um sonho – uma tentativa vã, porque nenhum relato é capaz de transmitir a sensação onírica, onde aflora essa mistura de absurdo, surpresa e encantamento, num frêmito de emoção e revolta, essa impressão de ser capturado pelo inacreditável em que consiste a própria essência dos sonhos.” (Joseph Conrad)

Sebastião Nunes é um escritor, editor, artista gráfico e poeta brasileiro.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

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Sebastiao Nunes

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