Primeira carta ao Presidente Lula: Preâmbulo antiquíssimo, por Sebastião Nunes

Se não levarmos a sério a educação, deixando de lado os eternos discursos ocos, este país jamais sairá do lugar.

Primeira carta ao Presidente Lula: Preâmbulo antiquíssimo

por Sebastião Nunes

            Nasci numa cidade de 3.000 habitantes, Bocaiúva, no norte de Minas, sertão tórrido e desprovido de tudo, cujo território passaria mais tarde a integrar o tristemente famoso Polígono das Secas (mina de ouro para alguns e seca permanente para multidões incontáveis de desvalidos).

            Naquele tempo, as professoras do Grupo Escolar Coronel Fulgêncio (não havia professores) eram senhoras bem postas na vida, ganhando o de-viver da família inteira, tão fartamente que se cunhou a expressão “marido de professora”, para albergar os felizardos que por amor, sorte ou golpe do baú, podiam perambular sem sustos pelo Bar Vitória que exibia, no salão da frente, uma mesa de sinuca pejada de sapos e, nos fundos, a salinha semissecreta do carteado, onde pontificavam fazendeiros graúdos e o único médico da cidade, o despreocupado doutor Gil.

            Todos conheciam seu lugar na sociedade primitiva, forjada desde a segunda metade do século XVIII, quando bela imagem do Senhor do Bonfim, destinada à matriz de Montes Claros, próspera cidadezinha 50 km além, empacou numa curva do caminho e não houve novena, rogo, impropério ou maldição que a demovesse dali. Empacou e ficou. Parelhas de bois parrudos foram convocadas e tiveram os fornidos pescoços e os forçudos membros postos a ferro – e nada. Amarraram o andor do resoluto Senhor a longas cordas puxadas por dezenas de bestas quadrúpedes e bípedes – e nada. Ali era seu lugar, argumentava a silenciosa e inerte imagem. E ali ficou. À tapera que a acolheu sucedeu humilde igrejinha tosca que, já no apagar das luzes e dos séculos, se tornou a nunca assaz louvada Matriz de Nosso Senhor do Bonfim de Bocaiúva.

            Fazendeiros rudes plantaram roças e ditaram leis. Leis do mais forte, claro. Leis do senhor branco, sem dúvida. E assim, com a lentidão de um cágado, a cidadezinha se povoou, com as sobras do povo escorraçado do nordeste pela seca, pela fome e pela ganância dos latifúndios.

“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: www.catarse.me/jornalggn

CADA QUAL NO SEU LUGAR

            Dona Rola era a proprietária do único prostíbulo local, honrada senhora que passeava nas tardes modorrentas pela Rua Dom Pedro II, empunhando colorida sombrinha e, espinha erguida, respondia austera aos cumprimentos risonhos dos frequentadores da venda do pequeno Levi, o de olho de cobra, como o alcunhou padre Alderico, o cônego.

            – Boa tarde, dona Rola.

            Ao que ela respondia, com discreto e superior sorriso:

            – Tarde – e seguia, sob o olhar conivente de todos.

            Da confraria partilhavam tanto o promotor de justiça, doutor Benjamim, capaz de entornar uma dúzia de cervejas diárias (que o faziam chegar capengando e aos empréstimos no fim dos meses), quanto o matador tímido, amigo de todos que não fossem o morto e que, ao fim da sessão de júri que o absolvera pela enésima vez, rodava pela cidade agradecendo aos jurados e prometendo préstimos futuros de igual monta.

            Quase não havia negros na minha Bocaiúva. Como no restante do país, a riqueza estava reservada aos brancos, que casavam entre si e geravam filhos que perpetuariam a branquitude e os haveres. Mulatos, mamelucos e cafuzos constituíam a mão de obra barata e servil, habitantes do entorno e à mão, sempre que necessário.

            Um único negro fugia ao padrão municipal: o chefe dos correios era negríssimo! Ele e a família, uma senhora negra e dois filhos negros, muito educados e atenciosos, servindo com humildade e presteza ao papel de moscas na sopa ou de furúnculos pretos na perna branca da sociedade branca.

DE VOLTA ÀS PROFESSORAS

            Estas cartas, presidente Lula, destinam-se a oferecer-lhe algum subsídio em seu terceiro mandato, que se iniciará em janeiro de 2023. Mas não seria razoável que eu, na minha modéstia de cronista provinciano, passasse por cima de longa experiência como aluno de escolas públicas – já lá se vão mais de setenta anos! Começo, portanto, pelas primeiras professoras que tive e percebo agora, quando todos usam a palavra educação como moeda de troca, que aquelas mulheres eram dedicadas e alegres principalmente porque ganhavam bem, viviam bem e eram todas, sem exceção, filhas da parcela rica da sociedade patriarcal, racista e elitista de Bocaiúva. Era chique ser professora.

            Educação se tornou, hoje em dia, uma palavra vazia, como verdade, liberdade, justiça, igualdade e Deus. Milhões estão prontos para cuspi-las sem o menor escrúpulo em seus discursos, do mais ignorante candidato a deputado estadual aos presidentes da câmara e do senado, já que nenhum deles tem o menor compromisso com outra coisa para além de seus projetos pessoais.

            Educação só se tornará uma missão quase sagrada (e não uma palavra vazia como é hoje) quando professores de todos os níveis ganharem salários compatíveis com a dignidade de seus cargos, começando pela educação infantil.

            Serei mais explícito na próxima semana, presidente Lula. Se não dá para ser revolucionário em tudo, já estará de bom tamanho se houver uma revolução profunda na educação básica, principalmente com salários dignos, que não existem hoje.

Sebastião Nunes é um escritor, editor, artista gráfico e poeta brasileiro.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

Leia também:

De como meus amigos recém-mortos caçaram no mato sem cachorro, por Sebastião Nunes

O sonho místico de Vieira, o filósofo existencialista do mundo pobre, por Sebastião Nunes

Manoel Lobato e as prostitutas do baixo meretrício de Belo Horizonte, por Sebastião Nunes

Sebastiao Nunes

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador