Mobilização em Recife marca início da semana de atos contra o marco temporal, a ser julgado pelo STF 

Renato Santana
Renato Santana é jornalista e escreve para o Jornal GGN desde maio de 2023. Tem passagem pelos portais Infoamazônia, Observatório da Mineração, Le Monde Diplomatique, Brasil de Fato, A Tribuna, além do jornal Porantim, sobre a questão indígena, entre outros. Em 2010, ganhou prêmio Vladimir Herzog por série de reportagens que investigou a atuação de grupos de extermínio em 2006, após ataques do PCC a postos policiais em São Paulo.
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O STF volta à discussão na próxima quarta (7) para estabelecer tese de referência para todos os casos que envolvem o direito à terra indígena 

Protesto em Recife reuniu indígenas, movimentos sociais e populações do campo. Foto: Angelo Bueno

Esta semana teve início da mesma maneira que se encerrou a última, após a aprovação do Projeto de Lei 490 na Câmara Federal, combatido pelos povos indígenas, com amplas mobilizações país afora contra o marco temporal. 

Na tarde desta segunda-feira (5), povos indígenas, movimentos sociais e populações do campo realizaram uma passeata em Recife (PE) afirmando que a história dos povos indígenas não começou em 1988.  

O Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu, em 2019, a repercussão geral do Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, que discute uma reintegração de posse movida contra o povo Xokleng, em Santa Catarina. 

A discussão, que voltará ao STF na próxima quarta-feira (7), estabelecerá uma tese de referência para todos os casos que envolvem o direito à terra indígena. 

Mobilizações similares a de Recife, e até mesmo manifestações dentro das aldeias, que se encontram envolvidas em rituais contra o marco temporal, acontecem às dezenas e devem seguir até quarta. 

O ato, que teve o apoio da Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME), integrante da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), atacou o PL 490 e pediu aos ministros da Corte Suprema que não permitam que a tese do marco temporal destrua a vida das populações indígenas do país.

“Se a gente não estava na terra no dia da Constituição de 88 é porque nos expulsaram antes, massacraram a gente, roubaram nossas terras. O marco temporal é uma tentativa de legalizar o genocídio e fazer ele seguir acontecendo”, declarou um indígena Xukuru do Ororubá presente no ato.

Para a antropóloga Caroline Farias Leal Mendonça, professora no curso de Licenciatura Intercultural Indígena da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), a tese do marco temporal é mais uma invenção anti-indígena no bojo da colonialidade do poder.

“As terras indígenas precisam ser incorporadas pelas cadeias produtivas predatórias. Tal como sempre ocorreu. Para isso suas populações precisam ser retiradas, esquecidas, como se nunca tivessem estado nelas. A tese do marco temporal pretende assumir esse legado no Estado moderno, mas que já vimos na Colônia, Monarquia, em todo século XX”, explica.

Julgamento: expectativas 

Conforme Rafael Modesto, assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e advogado do povo Xokleng, a expectativa para o julgamento é otimista.

“A Corte sofreu uma enorme pressão política para retirar da pauta, mas a manteve. Então a expectativa de início do julgamento é grande e otimista”, afirma. Modesto afirma que a comunidade Xokleng e os povos indígenas como um todo esperam que o julgamento tenha início, continuidade e finalize.

“Esperamos que o STF faça valer o constituinte originário, decline da tese do marco temporal, a declare inconstitucional e que prevaleça a tese do indigenato, para a garantia do futuro das comunidades em seus territórios de ocupação tradicional: demarcados, regularizados e com a devida fiscalização contra invasores”, defende o advogado. 

Não há previsão na Constituição para um marco temporal. O conjunto do artigo 231 fala de um direito nato, originário: a terra indígena estava ali antes da criação do Estado nacional, um ato administrativo, a demarcação, cujo procedimento é definido pelo Decreto 1775, define o tamanho dessa terra. 

Dessa maneira, o assessor jurídico do Cimi acredita que o marco temporal está desgastado, não conseguindo se impor como tese jurídica crível. Ainda assim, ele vem sobrevivendo como uma tese e será confrontado por outra: a do indigenato.

Duas teses em debate

Duas teses estarão em debate na Suprema Corte: a teoria do Indigenato, que reconhece o direito dos povos indígenas sobre suas terras como um direito originário; e a tese do marco temporal, que fixa a data de promulgação da Constituição – 5 de outubro de 1988 – como requisito legal para o reconhecimento das terras indígenas.

Modesto explica que a discussão não é tão nova. Foi ventilada a possibilidade de se estabelecer um marco temporal na Constituição de 1934. Posteriormente, alguns ministros mais antigos da Corte falaram a respeito da tese. Nunca prosperou. 

“Mas ela ganhou força depois do caso TI Raposa Serra do Sol porque ela (a tese do marco temporal) foi suscitada, mas não aplicada. A demarcação foi contínua e não em ilhas, como os ruralistas queriam, e o Supremo reconheceu ali o indigenato e o marco constitucional, não o temporal”, lembra. 

Ocorre que ficou uma armadilha no acórdão do julgamento, o que bastou para a construção de uma narrativa jurídica a ser aplicada em decisões da Justiça sempre citando o acórdão do caso Raposa Serra do Sol. 

De tal forma que demarcações passaram a ser questionadas na Justiça Federal, caso da Terra Indígena Limão Verde, do povo Terena, e Terra Indígena Guyraroká, do povo Guarani e Kaiowá, ambas no Mato Grosso do Sul, e Terra Indígena Porquinhos, do povo Canela-Apanyekrá, no Maranhão e, por fim, da própria Terra Indígena Xokleng Ibirama Laklaño, em Santa Catarina. 

PL 490: além do marco temporal

Além da tese do marco temporal, a análise dos assessores jurídicos do Cimi aponta outros dispositivos existentes no texto do PL, que evidenciam sua inconstitucionalidade. Acima de tudo, um desrespeito ao STF.  

“Foi uma afronta acintosa em função justamente do STF ter pautado. Jogar com o Supremo e dizer que tiraria o PL 490 da pauta da Câmara se o Supremo tirasse o recurso extraordinário da pauta. Se não fosse pra fazer pressão do Supremo, teriam aprovado antes, mas não fizeram”, declara Modesto.

A respeito de como fica o PL 490 caso a Corte Suprema rejeite a tese do marco temporal, o advogado entende que quem vai dar a última palavra sobre o assunto será o STF. 

“A Corte Suprema é quem vai decidir. Seja no julgamento do recurso extraordinário ou examinando esse Projeto de Lei, caso ele vigore, seja aprovado no Senado, sancionado pelo presidente. Tem vício, inconsistência”, diz. 

Nesse sentido, Modesto explica que acredita que só o STF resolve essa matéria porque se trata de interpretação, “não carece mais de lei para regular o procedimento, além de ser um direito material dos povos indígenas garantido pela Constituição”. 

O PL 490 possui ainda outros arbítrios. Dentre eles, destaca-se a flexibilização do usufruto exclusivo das terras indígenas pelos povos originários, garantido pela Constituição Federal. Institucionaliza a abertura das terras indígenas para empreendimentos econômicos predatórios.

Renato Santana

Renato Santana é jornalista e escreve para o Jornal GGN desde maio de 2023. Tem passagem pelos portais Infoamazônia, Observatório da Mineração, Le Monde Diplomatique, Brasil de Fato, A Tribuna, além do jornal Porantim, sobre a questão indígena, entre outros. Em 2010, ganhou prêmio Vladimir Herzog por série de reportagens que investigou a atuação de grupos de extermínio em 2006, após ataques do PCC a postos policiais em São Paulo.

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