O País novelizado (e a volta do discurso do Estado de Direito), por Marcus Filgueiras

Foto: AFP/Getty Images

por Marcus Filgueiras

Muitos vivem se perguntando por que as pessoas não estão nas ruas, protestando contra o governo Temer, tal como estiveram de 2013 a 2016. A explicação me parece simples. Somos um País novelizado. Não pelos livros, mas pela TV. As novelas são um bom produto brasileiro! Sim, é verdade. Não discuto isso, que fique claro. Mas há algo de errado quando a TV brasileira – leia-se TV GLOBO – passa novelas das 14 às 22h. com grande audiência. O que esperar dessa massa de telespectadores, que, além disso, fica na sala para ver o jornal?

O telejornal mais famoso – ainda a maior fonte de (des)informação de massa do País – pode dar qualquer notícia, mas não é qualquer delas que é novelizada para virar obsessão nacional, para incentivarem às pessoas à colocarem o “bloco na rua”, para formar uma imagem no inconsciente, valendo das técnicas mais eficientes de rebaixamento da faculdade crítica. Entender o fenômeno Murdoch é ajuda decisiva para compreender a tamanha potência e nocividade desta técnica, especialmente quando usada em um País onde não se lê livros, e a informação de largo alcance ainda está dominada por nada mais que cinco famílias.

 

Para retirar o mandato popular de Dilma, sob o argumento de acabar com a corrupção, a grande mídia jornalística alimentou com força o novo discurso emplacado pela ultradireita recém-saída do armário, cujos representantes mais notáveis são Bolsonaro, MBL e alguns homens-públicos-raivosos. Um balaio de retrocessos inominável, que ainda tem seduzido a muitos. (Respeito de verdade aos conservadores, mas os conservadores patológicos, os reacionários, mal informados são de doer. Chega até a dar saudade de Roberto Campos, José Guilherme Merquior, Paulo Francis…)

Na medida em que a grande mídia-jornalística “comprou” o pacote, ele veio completo, não só com o ultra liberalismo (já desautorizado até pelo próprio FMI, desde 2012), que já era defendido pela grande mídia antes, porque bancado pelas grandes corporações econômicas. O pacote contemplou também a homofobia, truculência, moralismo de fachada e, especialmente, justicialismo togado e de espetáculo.

O justicialismo de toga, disfarçado de ativismo judicial, trouxe em seu bojo a ideia de flexibilização dos direitos fundamentais como única forma para combater a corrupção. Basta indícios para colocar na cadeia e linchar publicamente (o inimigo, é claro), bem ao estilo da “Liga da Justiça” dos filmes americanos. Já viram algum julgamento nesses filmes para saber quem é o culpado? Processo? Para que processo, diriam eles, se o herói é sempre infalível e honesto, quase encarnação de Deus na terra, não é mesmo? Enfim, o negócio é destruir o mal, afinal “o bem sempre vence o mal” nesse reino dos super-heróis.

Mediante pressão quase insuportável sobre as instituições, até (super)novas teses jurídicas surgiram, como raios lancinantes no coração do Estado de Direito, mas que tinham o endereço certo para alcançar o inimigo. Exemplo mais clássico: a prisão antes do trânsito em julgado, porque “a sociedade tem pressa da resposta” (antes da próxima eleição, é lógico); a possibilidade de prisão de parlamentar sem flagrante; criaram uma nova espécie de flagrante para enquadrar os inimigos, norma sancionatória retroativa, grampo de escritório de advocacia e de Presidente da República, prazos ilimitados de prisão preventiva, e até a negativa de assistência religiosa ao encarcerado Reitor da UFSC que, depois, suicidou; tudo surfando nessa onda, entre outras.

Pois bem. A roda foi girando e os ovos frigindo. A situação saiu do controle e todos puderam ver o óbvio. Todos, não, os que se permitiram ver. Há ainda incrédulos vagando sob o efeito da intoxicação. O problema da corrupção não era da Dilma, nem uma exclusividade do PT, como se novelizou diuturnamente durante anos. Aliás, começou-se a ver que o PT (com sua culpa de corrupção também, é óbvio) se revelou até amador ou “peixe pequeno”, diante da megaestrutura do negócio, que alcançou não só as empreiteiras, mas o mercado financeiro (ainda intocável) e até o narcotráfico.

No entanto, quando começaram a aparecer os próprios amigos nos imbróglios de corrupção, o tom midiático já foi obrigado a mudar um pouco no jornal televisivo. Não houve novelização sobre os parceiros encrencados. Não dava mais para sustentar que a “nova” lei deveria ser aplicada a todos, pois já havia também os amigos na alça de mira da “mesma” lei. Foi uma correria só. Tentaram até usar um filme para convencer que a lei é aplicada igualmente a todos. Foi uma propaganda ruim, porque pouco inteligente, apesar do alto investimento.

Enfim, o fato é que já começou a marcha para o retorno das antigas teses jurídicas, mais corretas, creio. (Min. Barroso, perdoe-me dissentir, retornar à tese anterior, agora, não é oportunismo de ocasião, mas, ter alterado entendimento já consolidado em momento anterior é que suspeito que tenha sido oportunista). O fato é que parece ser a tendência atual acelerar o discurso em prol da valorização do Estado de Direito. Explico.

Agora, vieram personagens novos detonando no idioma de Cervantes. Um, direto da Espanha. Uma vez tendo sido garantido que ele não seria extraditado, começou a abrir a boca. Começaram a aparecer declarações que vão desvendando a “indústria das delações”, milionária, diga-se, que envolve muita gente. Até provas já foram reveladas.

Na mesma balada, na Argentina, um hermano também resolveu abrir o bico para o FBI e dar nome aos bois e às contas sobre o outro lado do futebol, que envolve a venda fraudulenta de direitos de transmissão. Empresas e empresários do setor midiático entraram em cheio. Lá nos EEUU não dá para mentir em delação, ao contrário do que parece acontecer aqui, que muitas delações estão sendo praticamente desmontadas.

Agora, sim, o discurso midiático deverá sofrer mudança radical. Deverão dizer que as provas robustas serão necessárias para a condenação, em nome do Estado democrático de direito. Sem provas, é autoritarismo, é barbárie, inquisição, espírito medieval. Neste ponto, estaremos de acordo, afinal, basta estudar a história do Direito.

Suspeito que o discurso vai mudar ainda mais. Muito provavelmente, o MBL e companhia serão tostados. A “liga da justiça” corre o risco de férias permanente. As prisões cautelares mais frágeis, vinculadas ao “sistema” de delações, tenderão a desaparecer. Vai sobrar até para Juiz que está brincado de ser deus. Assim como outros já foram moídos depois de usados, verão que o sistema não é para amadores. Verão também que o discurso do Estado de Direito crescerá de importância na boca midiática, mas para alcançar a outros fins obscuros, infelizmente.

De qualquer forma, prefiro defender a autonomia do Direito e a necessidade vital do respeito ao Estado democrático de direito, em que corremos o risco de bandidos ficarem soltos por falta de provas. Prefiro esse risco democrático, a ter inocentes presos a partir da distorção autoritária do Direito conforme a ocasião política.

 

Redação

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  1. Mas tem uma pedra no meio do

    Mas tem uma pedra no meio do caminho: a plutocracia. O direito tornou-se uma massinha na mão do mercado. A lei é moldada conforme seus interesses. Sem uma esquerda de verdade no poder, a plutocracia mundial fará o que bem entender.  

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