Os grampos de Rupert Murdoch

Da CartaCapital

O cerco aos abutres

Gianni Carta 27 de abril de 2011 às 15:53h

A prisão de dois jornalistas do News of the World expõe os métodos escusos dos tabloides britânicos e o imenso poder político do magnata Rupert Murdoch. Por Gianni Carta.Stan Honda/AFP

Vai mal a democracia no Reino Unido. O escândalo das escutas ilegais que levou à cadeia dois jornalistas do News of the World não é só outra prova de que Billy Wilder traduziu perfeitamente o espírito da mídia no clássico A Montanha dos Sete Abutres, no qual Kirk Douglas interpreta com maestria um repórter sensacionalista. No caso britânico, o assunto tem outros contornos: envolve o maior magnata dos meios de comunicação do planeta, Rupert Murdoch, com influência sobre os últimos cinco primeiros-ministros, um ex-alto funcionário do atual premier, David Cameron, e um jornalismo dominado por tabloides marrons dispostos a obter a qualquer preço os mais insólitos dados pessoais sobre políticos e celebridades. Além de uma Scotland Yard que não faz jus à sua fama.

Após cinco anos de esforço para negar que seus repórteres grampeavam celulares de integrantes da família real, políticos e celebridades, o News of the World (NoW), maior tabloide dominical britânico, com tiragem de 3 milhões de exemplares, desculpou-se na sexta-feira 8 e ofereceu recompensas para as vítimas de seus grampos. O pedido de desculpas ocorreu depois das prisões de Ian Edmondson, de 42 anos, e Neville Thurlbeck, de 50 anos, respectivamente ex-editor-assistente e ex-chefe de reportagem do NoW, acusados de grampear, entre outros, os celulares da atriz Sienna Miller. Ganharam liberdade sob fiança, mas em setembro serão novamente interrogados.

MaisMais importante ainda na nova investigação iniciada neste ano por uma Scotland Yard em busca de credibilidade serão os depoimentos de Andy Coulson, que em janeiro renunciou ao cargo de porta-voz de Cameron. Coulson, editor-chefe do NoW entre 2003 e 2007, declarou na hora da renúncia: “Quando um porta-voz precisa de um porta-voz, está na hora de se demitir’’.

Coulson é apontado como o executivo que encorajou as escutas ilegais. Ele pediu demissão do NoW no dia em que foram presos Clive Goodman, responsável pela cobertura da família real, e Glenn Mulcaire, um detetive privado. Em 2005, Goodman escutou na secretária eletrônica do celular de um funcionário do príncipe William que o jovem monarca tinha tido uma contusão no joelho. William suspeitou da existência de grampo. As investigações duraram um ano, mas não houve provas contra Coulson. O ex-editor insiste, até hoje, nunca ter estado a par da suposta prática de escutas ilegais. Goodman, que permaneceria quatro meses atrás das grades ao lado de Mulcaire, era, segundo Coulson, um caso isolado de um repórter desesperado na busca por notícias exclusivas.

O ex-editor do NoW voltou a repetir para a polícia em novembro de 2010 que Goodman era o único a grampear. Mas a tese se estilhaçou com as prisões de Edmondson e Thurlbeck. Foi Mulcaire, o detetive, que disse à polícia que Edmondson o autorizou a grampear os celulares de Sienna Miller. Certo é o seguinte: o cerebral Coulson sabia muito mais do que admite, caso contrário seu nível de incompetência como editor-chefe ultrapassaria qualquer limite.
Bastaria se perguntar como seus repórteres conseguiam tantos furos e tão detalhados.

Da mesma forma, intriga o quanto o primeiro-ministro Cameron sabia sobre o passado de editor de Coulson ao contratá-lo como diretor de comunicações em meados de 2007. Assim como o ex-premier Tony Blair, Cameron, claro, teve razão em acreditar que um hábil jornalista seria fundamental no trato com a mídia. Também Alastair Campbell, o porta-voz de Blair, trabalhou para um tabloide, no seu caso o de centro-esquerda Daily Mirror. Esses jornalistas convertem-se naquilo que no reinado se chama de spin doctors, “doutores” capazes de colocar o efeito desejado em cada notícia com o intuito de favorecer a imagem de seus patrões.

Coulson foi um arquiteto importante da vitória de Cameron em maio de 2010, em grande parte por ter angariado o apoio ao futuro premier do NoW e do Sun, outro tabloide de Murdoch. O apoio do magnata, traduzido em campanhas em seus tabloides, e mais aquelas do diário Times e do semanário Sunday Times, foi fundamental para as vitórias de Margaret Thatcher, John Major e Tony Blair.

Murdoch também tinha poder sobre Gordon Brown, sucessor de Blair. Segundo uma fonte anônima do diário Guardian, o mais assíduo na cobertura das escutas ilegais, Murdoch teria usado sua influência política e contatos para arrefecer as investigações sobre os grampos do NoW durante a administração Brown. Murdoch teria sido representado por um político de alto escalão numa conversa com o então premier trabalhista. O escândalo das escutas ilegais, teria dito ao premier o enviado do empresário, era prejudicial aos negócios da News Corporation. Ironicamente, Brown havia escrito ao menos uma carta para a polícia, na qual alegava que seus telefones estavam grampeados. Por ora, o ex-premier guarda silêncio sobre o suposto encontro, apesar de não ter se esforçado para negá-lo.

Outros entraram em ataque frontal contra Murdoch e seu império midiático. John Prescott, ex-vice-premier de Blair, cujos telefones teriam sido grampeados pelo NoW, é o mais loquaz. Lorde Prescott, sublinhe-se, não está na lista das escassas vítimas de grampos reconhecidas pela News International, e sujeitas a recompensas oriundas de um fundo de 25 milhões de euros. Para se ter uma ideia de quanto a News estaria disposta a gastar no intuito de evitar processos legais, duas vítimas de escutas ilegais teriam recebido 1 milhão de libras esterlinas cada uma.

A prioridade de Prescott não parece ser uma recompensa. Prescott, como disse um comentarista britânico, é o herói da hora porque, homem com disposição para confrontos, inclusive físicos, lança seus ferozes ataques verbais com convicção. Defende, por exemplo, a suspensão das negociações para a aquisição total da BSkyB, rede de tevê britânica com cobertura via satélite, pela News Corp., que já detém 39% da rede. Segundo o político, é um risco aumentar o poder de quem tem por hábito grampear figuras públicas.

O governo britânico alega que as escutas ilegais nada têm a ver com a defesa do pluralismo da mídia. Portanto, com ou sem investigações, as negociações para a compra da BSkyB continuam. Mas também nesse quesito de pluralidade o governo britânico é criticado. A News Corp. controla atualmente 37% da imprensa britânica por meio dos periódicos NoW, Sun, Times e Sunday Times. A BSkyB gera uma receita anual de 6 bilhões de libras esterlinas. Estima-se que em dois anos seu faturamento será maior do que aquele da soma da BBC, Channel 4, Channel 5 e ITV. O Reino Unido parece se inspirar no Brasil.

Uma das expoentes dessa cultura corporativa, na qual crucial é obter o furo a qualquer custo, seria Rebekah Brooks, presidenta-executiva da News Corp. e ex-editora-chefe do News of the World e do Sun. Brooks, talvez a mais leal escudeira nas ilhas britânicas de Murdoch, entrou na mira, de forma mais nítida, tanto da mídia quanto dos investigadores. Ironicamente, isso se deve a um furo jornalístico do ator Hugh Grant, uma das maiores vítimas dos paparazzi. Armado com um microfone camuflado, Grant foi ter com um ex-repórter do NoW metamorfoseado em dono de pub.

Os dois já se conheciam. Em dezembro passado, Paul McMullan pretendia fazer fotos de Grant numa zona rural, mas o automóvel do ator quebrou e o paparazzo lhe deu uma carona. A Grant, no pub, o ex-repórter contou como era comum o sistema de escutas ilegais sob a direção de Brooks. Disse ainda que Cameron deve muito de sua vitória à chefona da News Corp.

Em março, antes do furo de Grant, publicado pelo semanário New Statesman, Brooks havia sido questionada por um grupo de deputados. Um dos parlamentares lhe fez uma pergunta bastante espinhosa: ela chegou, quando editora do Sun, entre 2003 e 2009, a pagar por informações fornecidas por policiais? Brooks retrucou que não tinha “conhecimento de nenhum caso específico”, no qual tenham sido feitos pagamentos à polícia. Mas oito anos atrás Brooks havia dito o contrário aos integrantes de um comitê parlamentar de cultura, mídia e esporte: “Pagamos à polícia por informações, no passado”. Segundo ela, seria algo normal no meio jornalístico. Sobre se voltaria a fazê-lo no futuro, foi vaga: “Depende”. Coulson, ao lado de Brooks no interrogatório, interveio: “Operamos dentro do código e dentro da lei, mas, se houver interesse (em pagar), o faremos”. Disse ainda que pagaria detetives privados e estaria aberto a propostas.

As revelações cada vez mais frequentes, em parte devido a repórteres dispostos a salvar a pele em troca de relatos sobre seus patrões, e em parte à excelente cobertura dos escândalos nos diários Guardian e The New York Times, certamente serão danosas para a mítica Scotland Yard. De saída, interessa saber se, de fato, a polícia hesitou em aprofundar as investigações por causa de sua conivência com jornalistas em inúmeros casos ao longo dos anos. A polícia é acusada por diversos erros, bastante graves, diga-se: não informou os donos de celulares que seus telefones estavam grampeados, não foi atrás de pistas e escondeu evidências dos procuradores.
A Scotland Yard nomeou uma nova unidade para investigar o escândalo de escutas ilegais do NoW, e garante que policiais envolvidos no caso serão julgados. Os britânicos podem acreditar? Há pilhas de casos nos quais a polícia claramente mentiu. Quando, em julho de 2005, Jean Charles de Menezes foi morto a tiros na cabeça num vagão do metrô londrino, choveram mentiras na tentativa de encobrir o assassinato do brasileiro por policiais ingleses.

Os tabloides britânicos, em busca de culpados na esteira de um tremendo ataque terrorista nos meios de transporte londrinos, foram atrás da versão da Scotland Yard. Menezes era estrangeiro, com visto vencido. Personagem ideal para alimentar a xenofobia de leitores de periódicos como o NoW e o Sun. Por fim, descobriu-se que os autores do atentado não eram estrangeiros, mas britânicos.

Essa cultura da informação a qualquer preço, e por qualquer método, move os tabloides do reinado. Se na França a vida pessoal de políticos tem se tornado notícia graças a Nicolas Sarkozy, ainda há muito caminho a ser percorrido para que a cobertura dos podres das celebridades vire rotina. Isso porque, como já foi dito, os franceses fazem amor na cama enquanto os britânicos o fazem nos tabloides. A sociedade do Reino Unido, especialmente no caso das elites a frequentar escolas com tutores repressores, é essencialmente pudica. Histórias como aquela reportada no ano passado pelo tabloide Daily Mail de um deputado conservador cuja mulher brasileira se prostituía encantou os leitores. Outro repórter, este divertido, ganhou fama ao se vestir de xeque. Mazher Mahmood conseguiu enganar centenas de pessoas.

Mas o que preocupa os políticos, da direita à esquerda, é até onde irão as investigações. Teria o premier Cameron, e seu antecessor Brown, tentado abafar as investigações do escândalo a pedido de Murdoch?

Gianni Carta é jornalista, correspondente de CartaCapital em Paris, escreve sobre coisas da vida do Hemisfério Norte.

Luis Nassif

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