Aquiles Rique Reis
Músico, integrante do grupo MPB4, dublador e crítico de música.
[email protected]

Guinga e suas madamas, por Aquiles Rique Reis

Guinga e suas madamas, por Aquiles Rique Reis

A cada CD Guinga se supera. Seja como virtuoso violonista, seja como compositor, ele nos possibilita uma viagem através de sua aptidão musical. Suas melodias são surpreendentes, bem como extraordinárias são as harmonias com que envolve as letras de seus parceiros. Sua música é imensa!

Tais impressões ressurgiram durante as audições de Porto de Madama (selo SESC-SP), disco só de voz e violão, com direção artística de Luis Carlos Pavan. Guinga toca nas treze faixas, para as quais criou os arranjos para violão. São seis músicas de sua autoria, sendo uma só dele e cinco em parcerias diversas; além de composições de Tom Jobim, Dorival Caymmi, Vinícius de Moraes e Gonzagão, dentre outros.

Mais: quatro cantoras foram convidadas a participar. Todas diferençadas, afinadas e com interpretações que enriquecem as músicas que cantam e o violão que as acompanha: a brasileira Mônica Salmaso, a norte-americana Esperanza Spalding, a portuguesa Maria João e a italiana Maria Pia de Vito.

Mônica Salmaso canta como se cantar fosse a coisa mais fácil do mundo. Sua voz é privilegiada e, mais do que isso, tem desejo. Sente-se a sua voz mergulhar em nós, e, como fina iguaria, nos abastecer e satisfazer. Linda em “Ilusão Real” (Guinga e Zé Miguel Wisnik) e soberana em “Dúvida” (Gonzagão e Domingos Ramos), que fecha o CD.

Esperanza Spalding tem um atraente jeito de cantar. Sua voz pode soar com fina sensibilidade, como em “Serenata do Adeus” (Vinícius de Moraes), quando o tom alto da canção lhe dá chance de brilhar nos agudos; ou irromper forte como em “Ligia” (Tom Jobim), quando após doce introdução, sua voz, bastante alta, sobrepõe-se, num provável exagero da mixagem.

Maria Pio de Vito é cantora que transparece suas qualidades (tantas!) a cada interpretação. Encanta ao cantar “Noturna” (Guinga e Paulo César Pinheiro) e “Boa Noite, Amor” (José Maria Abreu e Francisco Mattoso).

Após Guinga iniciar o canto de “Cine Baronesa” (dele e Aldir Blanc), Maria João surge aparentando fragilidade. Cantando próxima do microfone, sua voz pequenina, quase infantil, vem sussurrada. Aos poucos, porém, ela evidencia que sua voz pode e se desmembra em um, dois ou mais timbres, cantados com a emoção de quem sabe o que faz e quer.

Apesar de Guinga jurar que é muito mais compositor do que violonista, o seu instrumento faz jus a ter nome próprio: “Violão de Guinga”. E assim seria: violão de Guinga, um jeito próprio de ressoar as notas – até seus trastejados são indispensáveis –, com sonoridade única.

As introduções de Guinga são como portas talhadas em boa madeira: escancaradas. Intermezzos justos descortinam o interior da música que sente orgulho de ter o violão de Guinga a conduzi-la. Os uníssonos de voz com violão fazem-nos perceber que sua música é muito mais do que o que nela alcançamos: a genialidade “abriga” pérolas a serem abertas. Como janelas, suas melodias e harmonias abrem-se para voos admiráveis, como neste Porto de Madama.

Aquiles Rique Reis, músico e vocalista do MPB4

Aquiles Rique Reis

Músico, integrante do grupo MPB4, dublador e crítico de música.

3 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. O Safatle não tem mais o que fazer? Precisa cortar 2 ha de cana

    O FIM DA MÚSICA – Vladimir Safatle

    Em todos os momentos em que teve desenvolvimento econômico, o Brasil soube acompanhá-lo de explosão criativa em sua produção cultural, menos agora.

    No interior de tais explosões, a música costumava desempenhar um papel de alta relevância. A ideologia cultural nacional sempre foi, em larga medida, uma ideologia musical. Ela aplicava assim, em pleno século 20, essa estratégia política da formação dos Estados-nação no século 19, que consistia em utilizar a música para a construção das “nacionalidades”.

    Como tivemos de esperar até 1930 para começar a deixar de sermos um mero clube associativo de donos de fazendas para sermos algo mais próximo de um país, foi a partir daí que a música brasileira passou à linha de frente do debate cultural. A construção nacional de Villa-Lobos e das pesquisas musicais de Mário de Andrade são exemplos paradigmáticos nesse sentido.

    Na Europa do século 19, a junção entre Estado, nação e povo se fez, entre outros meios, pela elevação da música à linguagem de construção do espaço social e de reconciliação das populações como unidade.

    Criou-se o folclore, instrumentos típicos, particularidades que, muitas vezes, eram apenas variações estruturais de constantes globais. Assim, a narrativa do povo que encontra seu solo e os afetos que o singularizam vinha sob a forma do canto, deste mesmo canto que, já dizia Rousseau, era a forma da primeira linguagem que nos deixaria mais próximos da origem e da autenticidade.

    Que tenhamos apreendido cirurgicamente a nos orgulhar da música brasileira como expressão maior da espontaneidade bruta de nossos sentimentos e modos de pensar, como modelo de convivência possível entre camadas sociais distintas e distantes (afinal, quando o samba fala alto tudo se mistura), é algo que não deveríamos estranhar. Como vários outros, este país foi construído a ferro, fogo e música.

    No entanto, toda operação de ideologia cultural sempre produz mais do que consegue controlar. Essa alta importância da música acabou por produzir um sobreinvestimento. Mesmo que a música brasileira tenha se reduzido, em larga medida, aos limites da canção (a forma musical por excelência de consolidação de laços sociais devido a sua estereotipia formal e de fácil recognição), é inegável que o Brasil, como alguns poucos outros países, soube extrair genialidade de tais limites.

    Que, nos anos 1970 e 1980, músicos populares tenham se transformado em expoentes maiores da consciência crítica nacional, trazendo para a esfera da alta circulação cultural aquilo que tinha a capacidade de complexificar nossa imagem de país, de sociedade e de afetos, apenas demonstra como toda construção de um solo e de um território acaba por ter de lidar com o que procura nos levar para além de tal território. O desenvolvimento econômico parecia levar a uma explosão cultural que tendia a complexificar as imagens produzidas por nossa ideologia cultural.

    Mas algo de peculiar ocorre a partir dos anos 1990, chegando a seu ápice neste último decênio. A partir de certo momento, impera o movimento que vai do É o Tchan, da era FHC, ao funk e sertanejo universitário do lulismo.

    A despeito de experiências musicais inovadoras nestas últimas décadas, é certo que elas conseguiram ser deslocadas para as margens, deixando o centro da circulação completamente tomado por uma produção que louva a simplicidade formal, a estereotipia dos afetos, a segurança do já visto, isso quando não é a pura louvação da inserção social conformada e conformista. A música brasileira foi paulatinamente perdendo sua relevância, para se transformar apenas na trilha de fundo da literalização de nossos horizontes.

    Ultimamente, todas as vezes que se levanta a regressão da qual a música brasileira é objeto se é acusado de elitista. Afinal, tais músicas teriam vindo dos estratos mais pobres da população brasileira. O que se chora seria, na verdade, o fim da dominância cultural da classe média urbana e o advento das classes populares e das classes do “Brasil profundo”.

    Como se fosse o caso de aplicar um esquema tosco de luta de classes ao campo da cultura. Para esses que escondem sua covardia crítica por meio de tal exercício, lembraria da necessidade de desconstruir a farsa de um “popular” que não traz problema algum para o dominante. Lembraria de como não há arte proletária, cultura proletária, religião proletária, moral proletária, Estado proletário, pois, como dizia Marx, os proletários são aqueles que não têm religião, Estado, moral (e acrescentaria música, cultura). Por isso, eles são a indicação do que ainda não tem forma nem imagem. Sendo assim, em vez de aplicar esquemas sociológicos primários, melhor seria ouvirmos de fato o que se produz e nos perguntarmos por que chegamos a esse ponto.

    ***

    discussão aberta no post do Irajá Menezes e alguns comentários:

    Mujique Mujique De boa, acho mero saudosismo o que diz o Safátle. Vejo muitos talentos na música brasileira hoje em dia, tanto na popular quanto na eletrônica. Não sei de quem exatamente ele está falando, mas não perceber talento e complexidade artísticas em Kiko Dinucci, Juçara Marçal, Siba, Fernando Catatau, só pra citar alguns, é muito estrabismo. E outra, esse pessoal que citei não é marginalizado pela indústria cultural, como ele diz no texto, Metá Metá, Siba e Cidadão Instigado vivem ganhando prêmios da multishow, que é um canal da Rede Globo e são figuras frequentes no site da Globo.
    O que mudou dos anos 50-60-70 pra cá é que a indústria cultural prefere investir numa fórmula pronta a dar destaque para quem faz algo diferente e com qualidade estética, mas isso pouco importa porque hoje o público não precisa da grande mídia para chegar aos grandes músicos, a internet faz esse papel.
    Conheceria o professor Safatle a cena musical de Belém? Saberia o douto professor quem é Felipe Cordeiro e a tradição que ele representa? Teria ele escutado o disco Nova Fronteira do Davi Bernardo? E o samba da Roberta Oliveira? Psilosamples será que ele sabe quem é? Já pensou na síntese de modernidade e tradição complexíssima que ele faz? E o Ivan Vilela e sua viola, será que não tem o mesmo talento dos músicos dos anos 60?
    De boa, acho o texto do Safátle muito preguiçoso e ele não diz claramente de quem está falando exatamente para não revelar o óbvio, ele desconhece a riqueza e a complexidade da música brasileira de 2015.

    Mujique Mujique Outro dia, meu camarada de facebook Bernardo Oliveira, da página Matéria, citou uns 100 álbuns brasileiros que ouviu em 2015. Se o Safátle conhecesse um quinto da lista, não falaria tanta coisa sem sentido. Se tem uma coisa que está ultrapassada é a crítica que não sabe lidar com as novidades musicais dos anos 2000. A criatividade do brasileiro continua a todo vapor.

     

     

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador