A História do Mundo – parte V, por Gustavo Gollo

A morte de uma criatura consiste na interrupção do funcionamento de tais válvulas, ocasionando a decomposição do corpo, comandada por criaturas empenhadas em complexificar a si mesmas.

A História do Mundo – parte V, por Gustavo Gollo

De um modo, ou outro, todos os sistemas vivos se baseiam em válvulas que garantem a manutenção de sua complexidade. A morte de uma criatura consiste na interrupção do funcionamento de tais válvulas, ocasionando a decomposição do corpo, comandada por criaturas empenhadas em complexificar a si mesmas. (Válvulas são dispositivos que direcionam fluxos – como as válvulas do coração, que direcionam o fluxo sanguíneo, ou eletrônicas, que direcionam correntes elétricas. O conjunto de válvulas que compõe cada ser vivo direciona e acumula a complexidade do ser).

O aumento da complexidade de um ser exige que suas válvulas tenham potência suficiente para sustentar o desnível de complexidade entre ela e o meio. Os seres vivos quase minerais esboçados na parte IV dessa série chegaram a um limite de complexidade cuja transposição exigiu a idealização de um sistema de controle de fluxo extremamente engenhoso, baseado em tecnologia digital.

Os contemporâneos estão todos acostumados com esse tipo de tecnologia e com a exuberância de seu poder, praticamente ilimitado. Os que viveram em tempo anterior à era digital, e que nesse tempo, poucas décadas atrás, chegaram a pensar no assunto, quase certamente menosprezaram tal poder, incapazes de imaginar como sistemas aparentemente tão precários, como os digitais, poderiam ser tão poderosos e eficientes, como os computadores acabaram demonstrando. (Quando eu conheci a tecnologia digital, me pareceu impossível que aquilo pudesse adquirir complexidade considerável – tente construir um sistema automático para armazenagem e recuperação de um único bit e compreenderá isso).

A transposição do limite de complexidade dos seres quase minerais, de então, exigiu a utilização de tecnologia digital, provavelmente na forma de RNA, ou algo bem similar.

RNA

O RNA possui uma forma especialmente adequada para a autoreplicação, sendo constituído por longas fitas poliméricas às quais são acopladas 4 bases distintas (C, G, A, U). O polímero é formado pela repetição de monômeros idênticos incrustados com as diferentes bases referidas acima, que lhes conferem identidade. A afinidade entre as moléculas de cada par (C, G) e (A, U) favorece imensamente a utilização do sistema molde/contramolde para a replicação da molécula, bastando para isso confeccionar o polímero e aplicar-lhe as bases complementares às da fita a ser replicada, formando, assim, um molde, uma espécie de negativo da molécula. A repetição do sistema, efetuada sobre o molde, reconstrói a forma original da molécula, consistindo em sua replicação. Atente para a extrema precisão desse sistema, que consistiu, por si, em um grande salto evolutivo.

Moléculas de RNA podem funcionar como enzimas, catalisando reações. (Catalisadores induzem reações que não ocorreriam, ou que seriam raras, em sua ausência). Tal potencial atribui utilidade ao RNA, por si só, independentemente da existência de estruturas complexas que eventualmente o auxiliem. O surgimento eventual de uma molécula de RNA que acelerasse alguma das reações conducentes à replicação do protosser vivo idealizado anteriormente, tenderia a favorecer a replicação do ser, e, consequentemente sua própria.

Além da autorreplicação, a forma polimérica do RNA propicia a produção de outros polímeros, as proteínas. Essa produção, normalmente, exige a posse de um aparato auxiliar complexo, sem o qual deve ter sido bastante precária. O resultado da façanha, no entanto era espantoso, uma variedade imensa de materiais propícios à construção da infinidade de estruturas que compõem os seres vivos, incluindo, ainda, a produção de enzimas – catalisadores eficientíssimos capazes de acelerar imensamente as reações que mantêm o funcionamento dos seres, propiciando-lhes, também, uma precisão inaudita.

Desse modo, imediatamente após seu surgimento, o RNA se impôs, por facilitar a replicação dos seres que o possuíam, multiplicando-se, ele mesmo, desse modo, passando a se apresentar nas mais diversas roupagens compostas pela infinidade de variações possíveis na ordem de apresentação das bases que o constituem.

Sutis modificações do RNA conduziram à criação do DNA, molécula engenhosíssima apresentada sob a forma de molde/contramolde ensanduichado em duas fitas poliméricas. (Embora fitas duplas portando U em lugar de T sejam definidas como RNA, essa conformação é mais típica do DNA).

Os diversos aparatos utilizados pelos seres contemporâneos como auxiliares para a produção de proteínas comandada pelos ácidos nucleicos consistiram capítulos autônomos da história, mas não entrarei em tal detalhamento.

Válvulas digitais

Desde meados do século passado, tudo o que cerca o genoma tem recebido uma atenção, a meu ver, exagerada. A intensidade dos holofotes enfocando o tema decorre da gula, da glutoneria desenfreada com que tantos se lançam sobre tudo o que sugere a possibilidade de auferição de lucros. [O flagelo CRISPR, por exemplo – essa caixa de Pandora –, em conjunção à permissão para expropriação e posse da vida, constitui uma das mais sérias ameaças aos seres viventes em todo o planeta, mas tem propiciado lucros mirabolantes. As igrejas fundamentalistas, tão ávidas por combater cânones diversos dos seus – eventualmente cândidos e inofensivos, como a teoria da evolução –, deveriam ser informadas e instadas a se pronunciar sobre tal pesadelo, apesar de sua notória cegueira para com todos os males lucrativos].

Apesar desse pecado originário, o estudo das estruturas que compõem o genoma, e seu aparato auxiliar revelou peculiaridades importantes e notáveis.

A exclusividade da tecnologia analógica de replicação, utilizada pelos seres primevos anteriores ao surgimento dos ácidos nucleicos, tem seu escopo limitado a criaturas muito simples – consequência da perda de informação inerente às replicações analógicas.

O fenômeno pode ser exemplificado com a brincadeira chamada “telefone sem fio”, na qual uma palavra é passada ao ouvido de uma pessoa, que a replica ao ouvido de outra, e assim sucessivamente, até a última que a pronuncia em voz alta, propiciando a apreciação da perda de informação durante o percurso. Outra ilustração do fenômeno pode ser obtida fazendo-se sucessivas reprografias – cópias das cópias –, de uma página qualquer, permitindo que se aprecie a perda de definição da imagem durante o processo.

Tendo atingido certo grau de complexidade, a perda de informação inerente a cada réplica acabaria por igualar o ganho de complexidade possível em cada cópia, impedindo maior aumento na complexidade do ser. (O ganho de complexidade por geração é função do número réplicas produzidas, enquanto a perda é proporcional à complexidade existente).

O uso de tecnologia digital altera esse equacionamento propiciando com isso um incremento brutal em tal limite, funcionando assim como uma extraordinária válvula retentora de complexidade. O resultado consistiu no acúmulo de complexidade até níveis fabulosamente superiores aos imagináveis sem o uso de tal ferramental.

Replicação analógica e replicação digital

Esses 2 modos de replicação transcorrem de formas bastante diversas. A maneira mais simples de se executar uma replicação analógica consiste na fabricação de um molde. Réplicas digitais são obtidas através de um software que decodifica e recodifica a informação, fenômeno compreensível para quem saiba programar um computador. Os 2 processos são bastante diferenciados.

Durante o século XX, consolidou-se a ideia de que a “genética”, o processo de gênese dos seres, seria governada exclusivamente pelos “genes”, trechos de DNA inscritos nos cromossomos das criaturas.

Tal ideia sempre me pareceu despropositada, em vista da expectativa de que os processos naturais não se restrinjam a um modo de organização pré-fixada, mas se apoiam em qualquer coisa que esteja ao alcance, independente de inexistentes considerações sobre conveniências, ou adequações.

Assim, estando fácil e disponível uma dada replicação analógica, o programa inscrito nos genes não se acanhará, minimamente, em lançar mão da comodidade de realizá-la de modo analógico, comandando, sem qualquer pudor, que assim seja feito. Trata-se, simplesmente, de uma questão de economia lançar mão sobre o que esteja disponível, sem que qualquer tipo de consideração ética, estética, organizacional ou seja lá que classe de pudores inexistentes se aventasse.

Em vista de consideração tão óbvia, desde meados dos anos 90, inspirado no linguajar de Richard Dawkins, utilizo a expressão “genótipo estendido” para me referir a todo o conjunto de instruções necessárias para o desenvolvimento e manutenção dos seres, herdadas dos progenitores. A alusão ressalta especialmente, o hardware constituinte do ovo da criatura, cujos componentes, muito óbvia e naturalmente, são utilizados como modelos para a fabricação de réplicas, fato esquecido por geneticistas.

Uma boa estimativa da importância do genótipo estendido seria conseguida permutando-se o genoma de ovos de espécies diversas e comparando-se os híbridos artificiais assim obtidos com indivíduos comuns. A tecnologia para isso é similar à da clonagem e muitíssimo mais instrutiva que aquela).

O uso de sub-rotinas analógicas entremeadas no software de autoconstrução e manutenção dos indivíduos propiciou enorme economia aos seres que, desse modo, se beneficiaram das vantagens do uso do sistema híbrido digital/analógico em tais processos, alçando, de imediato, níveis de complexidade inauditos.

Do mesmo autor:

https://jornalggn.com.br/ciencia/como-surgiu-a-reproducao-sexual/

https://jornalggn.com.br/ciencia/teoria/

Minha versão de evolução está aqui: (retiraram a formatação do site, mas em breve republicarei algo similar).

https://jornalggn.com.br/ciencia/teoria-da-evolucao/

Gustavo Gollo é multicientista, multiartista, filósofo e profeta

#Replicadores #Biologia generalizada #genótipo estendido

Redação

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