Ano Novo Normal

                Por Kah Sanchez e Yoda

 

                Para Chico, o fim de dezembro era a pior época do ano, desde que se casara com Marlene, uma descendente de alemãs que jamais deixaria de passar o final de ano com a família na serra gaúcha, tradição secular. Para o marido, ela que viajasse para onde bem entendia, o problema era a insistência da moça em leva-lo a tiracolo. A cantilena era sempre a mesma, dizia que “antes”, quando ele a amava, não reclamava de nada e a acompanhava feliz. Chico, que detestava as “piadinhas” familiares que, com muita frequência, falavam sobre negros (sendo ele o único negro “da família”), odiava aquelas noites mais do que tudo, naquela família que jurava que não era racista. Também se odiava por acabar, depois de muita discussão, aceitando a tirania da esposa, ano após ano.

                Natália, a adolescente punk, deslocada como sempre, odiava aquelas roupas que a mãe a obrigava a usar e, num canto da sala, ajeitava a calcinha, que insistia em entrar-lhe no rego. A mãe, vigilante, além do incômodo da roupa, ainda a repreendia pelos “maus modos”.

Júlio era sempre tímido e introspectivo, aliás… exceto quando bebia. Aí se tornava o chato da família. Para tristeza das mulheres e, despertando raiva nos maridos, dava em cima de tudo que é mulher. Aliás, num ano em que o porre foi acima da média, já deu em cima até do padre franciscano, a quem elogiou o vestido.

Plínio, que cursara Teologia na faculdade do bairro, era o metido a esperto e se metia em qualquer conversa, mandando ver na sua sabedoria adquirida em livros de autoajuda. Com sua chatice dispersava qualquer roda. Lídice, sua prima apaixonada, achava Plínio o máximo, o suprassumo da inteligência. Era ela quem o convidava para a festa, para tristeza geral e, sobretudo, d@ “amig@” da tradicional brincadeira de amigo-secreto.

Para João, o irmão-pobre, a brincadeira era um suplício, um festival de exibicionismo dos parentes mais ricos, que pareciam disputar o presente mais caro. No geral, os Geitz não eram ricos, beirando a classe media-baixa, com raras exceções. Além disso, os presentes, eram nada criativos, constituindo-se, com poucas variações, de canetas, agendas, meias, gravatas e cds. Com tanta desigualdade social na família, ganhar um presente caro tornava-se até constrangedor. João, por exemplo, deu uma caneta de presente, mas seu filho ganhou um triciclo elétrico. Sua esposa logo torceu o nariz imaginando seu filho andando com o brinquedo na rua enlameada e esburacada em que moravam.

Esta desigualdade tocava, sobretudo, Sérgio, considerado o esquerdista da família. O rapaz odiava também quando começavam a falar sobre a ditadura gayzista, comunista, bolivariana e era marxista-leninista-ortodoxo demais para fazer ouvidos moucos. Cercado de conservadores, Sérgio era outra das atrações do final de ano da família Geitz.

Depois do amigo-secreto, ele e os demais adultos protagonizavam a tradicional rodada de bate-bocas sobre política, que incluía acusações ásperas de lado a lado, nas quais até mesmo pequenos furtos de infância, episódios de infidelidade conjugal e de falta de solidariedade dos mais ricos, eram pontos de pauta. Isso, é claro, até a intervenção final do patriarca e sua “homilia”, fazendo com que os ânimos se acalmassem e que a paz voltasse a reinar… Ao menos, na aparência.

Na hora da despedida, a troca de abraços entre os parentes fazia com que Sérgio lembrasse da frase dita ao final de seu programa favorito, o “Provocações”, pelo impagável Abujamra: “vem cá me dar um abraço, que é a única coisa falsa deste programa”! O clima entre alguns dos parentes sugeria que por trás do abraço e do “feliz ano novo”, havia um desejo oculto do tipo “Morra, desgraçado!” ou “Desejo que não cruzes a minha frente pelos próximos 365 dias!”.

Redação

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