Caso Nelma Kodama: o esqueleto que Appio tentou tirar do armário, mas a Lava Jato impediu

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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Assim como Tony Garcia, a doleira teria sido espiã da Lava Jato. Dobradinha entre Lebbos e TRF-4 barrou ação de Appio por transparência

No final de setembro de 2023, chegou ao Supremo Tribunal Federal uma bomba contra o ex-juiz Sergio Moro: um pacote de documentos que atestam que o delator Tony Garcia foi usado como “espião” e recebeu de Moro 30 tarefas para executar em troca de benefícios, incluindo grampos em autoridades com foro privilegiado. Em entrevista exclusiva ao GGN, Tony apontou que parte do material colhido ilegalmente por Moro foi supostamente usado para pressionar o ministro Felix Fischer, que referendou sentenças da Lava Jato no Superior Tribunal de Justiça.

Mas Tony Garcia não seria o único agente informal a serviço de Moro. Há suspeita de que outras figuras foram usadas para atender aos interesses do ex-juiz e da Lava Jato. Um delas seria a doleira Nelma Kodoma, que teria entregue clientes e concorrentes em troca de um acordo de colaboração premiada que a 13ª Vara Federal insiste em manter em segredo de Justiça. O GGN teve acesso a trechos da delação.

O caso Nelma Kodoma é um dos esqueletos que o juiz federal Eduardo Appio tentou tirar do armário ao assumir a 13ª Vara Federal. Mas uma dobradinha entre a juíza Carolina Lebbos, da 12ª Vara Federal, e o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), conseguiu impedir que decisões de Appio para dar transparência ao caso fossem executadas.

Os esquemas de Nelma Kodamo

“Nelma Mitsue Penasso Kodama”, nas palavras de Sergio Moro, “seria uma grande operadora do mercado negro de câmbio e líder de grupo criminoso envolvido na prática de crimes financeiros, especialmente evasão de divisas e operação de instituição financeira irregular, e de crimes de lavagem de dinheiro.”

Somente ao longo de 2013, o esquema de Nelma movimentou mais de 5 milhões de dólares. “Segundo um dos integrantes do grupo, a movimentação chegava a 300 mil dólares por dia e isso em um período pelo menos de oito anos”, apontou Moro.

Para Moro, Nelma Kodama utilizava “o nome de terceiros não só para suas operações financeiras criminosas, mas também para ocultar o seu patrimônio”. “(…) há indícios significativos de que Nelma Kodama utilizou o nome de sua mãe e a empresa constituída em nome desta, a PNGs Prosper Participações Ltda. para ocultar patrimônio proveniente do crime.”

A reportagem do GGN apurou que além de recuperar a liberdade (primeiro, progredindo para o regime domiciliar e, em 2019, recebendo indulto natalino que extinguiu todas as penas), Nelma Kodoma conseguiu autorização da Lava Jato para usufruir do patrimônio que o próprio Moro considerou fruto de esquemas ilícitos.

Os benefícios da delação premiada

Em 2014, Nelma Kodama, batizada pela grande mídia como “a dama dos doleiros”, foi condenada a 18 anos de prisão por Moro. No final de 2015, Nelma fez um acordo de delação premiada com a Polícia Federal, em que uma das cláusulas previa que ela teria direito a ficar com 15 apartamentos, além do imóvel em que residia. Este acordo, contudo, não foi homologado por Moro.

No final de 2016, a doleira fechou o acordo que segue em vigor até hoje, desta vez com a turma liderada por Deltan Dallagnol. Ficou determinado que Nelma ficaria, até 2020, com cinco apartamentos e o imóvel em que residia. Se os bens viessem a leilão judicial, ela teria privilégio no arremate, entre outros benefícios. Moro homologou o acordo em março de 2017.

Trechos do acordo de delação premiada de Nelma Kodama:
Parágrafo 2º. Será garantido o direito de preferência na arrematação do imóvel indicado no parágrafo 1º para a COLABORADORA, no caso de alienação por leilão judicial.
Parágrafo 3º. “Será garantido à COLABORADORA o usufruto, pelo período de 36 (trinta e seis meses) após a homologação do presente acordo, de 5 unidades do Hotel Villa Lobos, em nome da empresa PNGS – Prosper Participações Ltda., sendo que os frutos desses imóveis destinam-se nesse período à COLABORADORA, e serão de sua responsabilidade todos os importos, taxas e custos relacionados ao imóvel, tais como IPTU, condomínio, água e luz.
Parágrafo 4º. Serão desbloqueados os valores suficientes para o pagamento de tributos, condomínios e taxas atrasados de todas as unidades do Hotel Villa Lobos, do apartamento na Praia Grande, registrado à margem da matrícula nº 146.090 e 146;091 do Registro de Imóveis de Praia Grande e do imóvel da Rua Conde de Porto Alegre, 1033, ap. 141-B, Bairro Campo Bello, CEP 4608001, São Paulo, cujo montante será calculado e apresentado pela COLABORADORA, em até 10 dias, após a homologação do presente acordo, devendo ser apresentado, em prazo igual de até 10 dias, o comprovante de pagamento dos referidos impostos.
Parágrafo 5º. A COLABORADORA compromete-se a não questionar judicialmente, impugnar ou de qualquer forma discutir a perda ou o condisco dos bens descritos no Apenso 1, além de quaisquer outros não listados no Apenso 1 e que estejam constritos por ordem judicial, sem em nome próprio, seja por intermédio de outras pessoas físicas ou jurídicas, inclusive seus familiares.

Transitado em julgado, o processo foi remetido para a 12ª Vara Federal, parceria da Lava Jato. Uma normativa do TRF-4 respaldou a decisão de Moro de entregar a fiscalização do acordo de delação e da execução penal ao juízo onde atua Carolina Lebbos.

A criminosa reincidente

Nelma Kodamo, “que faz do crime seu meio de vida” – parafraseando Sergio Moro -, voltou a praticar ilícitos enquanto gozava dos benefícios de seu acordo de delação com a Lava Jato. Desta vez, lavando dinheiro para o tráfico internacional de drogas. Foi presa por autoridades portuguesas em 2022, desembarcou e ficou detida na Bahia. Posteriormente, a pedido da defesa, foi transferida para São Paulo.

Quando Eduardo Appio assumiu a 13ª Vara de Curitiba, encontrou um processo onde a manutenção dos benefícios concedidos a Nelma em seu acordo de colaboração estava em xeque por causa do envolvimento em tráfico internacional. Ele determinou, então, a revogação do sigilo processual, a suspensão do acordo de delação, o fim da liberdade da doleira e a devolução dos autos do processo pela 12ª Vara à 13ª Vara. A decisão foi proferida em abril de 2023.

Para Appio, é “incompreensível” que os benefícios sejam mantidos mediante a reincidência da doleira no crime. “As claúsulas do referido acordo de colaboração premiada são bastante claras no tocante à obrigação da acusada de se abster de novas práticas criminosas. Não se trata, pois, de acusação relacionada a uma simples infração de trânsito, mas sim de tráfico internacional de entorpecentes através de, ao que tudo indica, uma vasta rede que compunha perigosa organização criminosa, baseada na Bahia“, escreveu Appio.

O Ministério Público Federal já propugnou, inclusive, pela rescisão do acordo de colaboração premiada, mas até a presente data não existe uma decisão judicial.” A 12ª Vara não encaminhou a revogação do acordo. “Muito pelo contrário, nos autos de execução penal que tramitam junto à douta 12ª vara federal de Curitiba, NELMA KODAMA (ainda que presa na Bahia) continua ‘prestando contas de suas atividades’ a cada três meses, como se nada tivesse ocorrido no último ano“, acrescentou Appio.

A resposta de Lebbos e do TRF-4

Quase um mês depois da movimentação de Appio, em 23 de maio de 2023, Lebbos, amparada pelo TRF-4, rejeitou cumprir os pedidos do novo juízo da 13ª Vara, exceto pelo compartilhamento dos autos. Lebbos amparou-se na normativa criada pelo TRF-4, que deu exclusividade à 12ª Vara para executar as penas e também fiscalizar os acordos de delação premiada da Lava Jato. À 13ª Vara coube exercer o papel de juízo das condenações.

O TRF-4 mandou suspender “a imediata revogação do acordo de colaboração celebrado por NELMA KODAMA” e “a retomada da ação penal originária [que] revogou a liberdade provisória concedida à acusada“.

Para Appio, “a declinação judicial da 13ª Vara em favor da 12ª Vara Federal, com a devida vênia, não opera nenhum efeito jurídico válido em relação a este juízo federal na medida em que não se encontra fundamentada na lei e, pelo contrário, ofende diretamente o princípio do JUIZ NATURAL.”

Appio entra na mira

A atuação de Appio no caso Nelma Kodama motivou ação da força-tarefa da Lava Jato. O juiz passou a ser alvo da “correição Parcial nº 5016114-71.2023.4.04.0000, interposta pelo Ministério Público Federal em face de decisão proferida pelo Juízo Excepto que, nos autos nº 5039845-87.2019.4.04.7000, indeferiu o pedido de nova suspensão da ação penal, determinou a retomada da tramitação do feito, solicitou ao Juízo da 12ª Vara Federal de Curitiba a imediata devolução dos autos que lá tramitam, inclusive da Execução Penal nº 5006180-22.2015.4.04.7000, revogou de ofício a liberdade provisória antes concedida à acusada NELMA MITSUE PENASSO KODAMA e revogou de plano o acordo de colaboração“.

O caso Nelma Kodama é a base de apenas uma das 27 reclamações analisadas pelo TRF-4 no âmbito do julgamento da suspeição de Appio, que foi derrubada pelo Supremo Tribunal Federal.

PROCESSOS:
5026243-05.2014.404.7000/PR
5060482-98.2015.4.04.7000/PR
5006180-22.2015.4.04.7000/PR

5000665-35.2017.4.04.7000/PR
5039845-87.2019.404.7000/PR
5069288-78.2022.4.04.7000/PR

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3 Comentários

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  1. É tanto absurdo que se torna impensável outro destino para Moro e Dallagnol (e outros mais) que não a cadeia! Abusos e roubos de todo tipo.

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