Dilúvio de cartas – Mário de Andrade

Carta pra todo mundo – leitura de escritos íntimos

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Por Marcos Antonio de Moraes – Pessoa Revista de literatura lusófona

Silêncio. Em dezembro de 1939, Mário de Andrade, na crônica “Amadeu Amaral”, relembrava o tempo em que, jovem poeta, “sofria de um complexo de inferioridade orgulhosíssimo”. Na raiz do sentimento, a indiferença com a qual o escritor Vicente de Carvalho acolhera o seu anseio de diálogo. Mário endereçara a ele “uma carta assombrada de idolatria e admiração”, acompanhada de “uns quinze sonetos”, cuidadosamente escolhidos do “amontoado milionário” de inéditos; pedia “humildemente” opinião sobre os poemas. Tendo confirmado que o envelope fora entregue ao destinatário, lamentava o silêncio: “Jamais resposta veio, nem ‘sim’ nem ‘não’, nada. O que eu sofri de angústia, de despeito, de humilhação, de revolta, nem se conta! E comecei a cultivar um complexo de inferioridade prodigiosamente feliz, que me deixava solto, livre, irresponsável, desligado dos meus ídolos parnasianos, curioso de todas as inovações, sequaz incondicional de todas as revoltas” (Amadeu Amaral, p. 179-80).

Respostas. Escrevendo à amiga poeta Henriqueta Lisboa, em setembro de 1944, Mário reflete sobre a “fatalidade” de seu devotamento intelectual aos moços que o procuravam, enviando escritos, pedindo conselhos. Para ele, a questão moral determinava a prática epistolar: “Uma carta não respondida me queima, me deixa impossível de viver, me persegue. Algumas não respondo, me exercito, ou condeno por inúteis. Me queimam, me perseguem tanto hoje como as deixadas sem resposta, vinte anos atrás” (p. 305). Em fevereiro de 1945, o criador de Macunaíma, ressente-se de que algumas de suas mensagens a jovens escritores vinham sendo publicadas, à sua revelia, com mutilações que comprometiam o sentido. Recorda-se de um deles que “de uma carta demonstrando as deficiências, publicou a única frase resolutamente elogiosa”. Confidencia, então, ao jornalista moço Guilherme Figueiredo: “Fui, faz mais de ano, desleixando essa minha lei a princípio com remorso insuportável, já vou me acostumando, mas guardo sempre um remorso difuso. E este remorso difuso eu sei que não se acabará, porque a cada carta não respondida, a cada livro não agradecido, o remorso se reimpõe com a mesma inexorabilidade” (p. 160).

Compromisso. As cartas de Mário de Andrade, atualmente conhecidas em mais de trinta volumes, mobilizam projetos coletivos no modernismo, instituindo densos debates em torno da literatura, da música, das artes plásticas; propiciam a formação de seus jovens interlocutores, exigindo deles uma atitude de permanente inquietação intelectual. Aquele que um dia confessou a Carlos Drummond de Andrade sofrer de “gigantismo epistolar”, desculpando-se pela “longuidão” da carta (p. 52), trazia à tona, frequentemente, a aflição diante da “coluna de cartas pra responder”, referida a missiva a Pio Lourenço Correa (p. 274). A Drummond, Mário, brincalhão, se propõe a contrapor o “canalhismo epistolar” do amigo, com a sua “retidão epistolar” (p. 298). Em 1928, com círculo de amigos aumentando e “incapaz de trocar amigos velhos por novos”, o escritor, dirigindo-se à pintora Anita Malfatti, se vê diante do “dilúvio de cartas” que recebe e escreve (p. 137). Diz a Manuel Bandeira, nesse mesmo ano, que a “vida […] é quase só escrever cartas”. E, diante de um “epistolário fantástico”, pergunta-se: “Mas como não secundar pros que me escrevem? Seria injusto. E seria falso de minha parte.” (p. 374). Ao contista mineiro Murilo Rubião, em 1942, refere-se à sua “mania de escrever cartas muito de pijama demais” (p. 18). Em 1940, endereçou à discípula musicóloga Oneyda Alvarenga uma carta de 60 páginas, na qual o testemunho franco e sem adornos mistura-se ao denso ensaio crítico. Diante do maço de folhas que tem sob os olhos, Mário comunica à jovem amiga: “Acabei ontem de lhe escrever uma carta enorme, talvez a maior que já escrevi na minha vida. É quase um opúsculo sobre o problema do ‘conhecimento técnico’ que você insistiu em discutir na sua última carta e vejo que preocupa muito você” (p. 262).

“Escrevinhão”. No caminho da introspecção, o exercício da correspondência fornece a Mário de Andrade um instrumental reflexivo potente. A escuta do outro, situado à distância, propicia o desvelamento de si e o aprofundar-se nos labirintos da vivência interna. Mário se considera “por natureza esparramadão” (p. 25), confessa-se “muito escrevinhão” (p. 187), assume a sua “epistolomania” (p. 200) – curiosas expressões de que se vale em cartas a Alceu Amoroso Lima, Nini Duarte e Henriqueta Lisboa. Em 1940, dirigindo-se ao jovem jornalista Murilo Miranda, oferece uma figuração de si nos domínios da escrita epistolar: “Sei me abrir nas cartas, mas não sei, em corpo presente, confessar minhas fraquezas.” (p. 55). O processo de subjetivação, cumprido por meio da palavra escrita, realiza-se, de modo consciente pelo escritor, quando aproveita dos “amigos pra por certas coisas bem a limpo”. Explica a Henriqueta, em 1943: “escrevendo […] parece que consigo penetrar mais fundo em mim. A escrita visual me obriga a uma lógica mais inflexível. Pelo menos mais nítida” (p. 241).

Documento. A multifária epistolografia de Mário de Andrade namora a permanência na história, espelhando o sujeito que (se) escreve e a época da qual é testemunha. Em 1928, tendo por interlocutor Manuel Bandeira, pondera: “carta de deveras carta, é documento maior, Manu, e matute bem nos que não conseguem escrever carta e muito menos sustentar uma correspondência” (p. 386). “Documento maior”, em termos de esforço de superação do contingente, da mera cordialidade social, do prosaísmo que ignora a poesia da vida. Quando partilha com Prudente de Moraes, neto, no domingo, 4 de outubro de 1925, que andou “escrevendo cartas pra todo o mundo” (p. 124), talvez imaginasse dirigir-se apenas a seus companheiros de jornada modernista. Contudo, diante desses gestos de comunicação tão pujantes intelectualmente, estuando vivências e afetos, nos damos conta de que, assim como as cartas de Rilke “a um jovem poeta”, Mário endereçou mensagens também para o nosso tempo e, certamente, para os tempos futuros.

 

 

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Posta-restante. ALVARENGA, Oneyda (org., intr. e notas). Cartas. Mário de Andrade/ Oneyda Alvarenga. São Paulo:Duas Cidades, 1983. ANDRADE, Mário de. “Amadeu Amaral”. O empalhador de passarinho. São Paulo: Martins/ MEC, 1972. ANDRADE, Mário de; CORREA, Pio Lourenço. Pio & Mário: diálogo da vida inteira. A correspondência entre o fazendeiro Pio Lourenço Correa e Mário de Andrade, 1917-1945. Estabelecimento de texto e notas de Denise Guaranha; estabelecimento de texto, das datas e revisão ortográfica de Tatiana Longo Figueiredo. São Paulo: Edições SESC-SP/ Ouro Sobre Azul, 2009. BATISTA, Marta Rossetti. Mário de Andrade: cartas a Anita Malfatti (1921-1939). São Paulo: Forense Universitária, 1989. DUARTE, Paulo. Mário de Andrade por ele mesmo. [cf. carta a Nini Duarte]. São Paulo: Hucitec/ Prefeitura do Município de São Paulo; Secretaria Municipal de Cultura, 1985. FERNANDES, Lígia (Org.). Mário de Andrade escreve cartas a Alceu [Amoroso Lima], Meyer e outros. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1968. FIGUEIREDO, Guilherme. Mário de Andrade. A Lição do Guru: Cartas a Guilherme Figueiredo, 1937/1945. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989. KOIFMAN. Georgina (org.). Cartas de Mário de Andrade a Prudente de Moraes, neto; 1924-1936. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. MORAES, Marcos Antonio de (org., intr. e notas). Mário de Andrade e o Pirotécnico Aprendiz: cartas de Mário de Andrade a Murilo Rubião. São Paulo: IEB/Editora da UFMG/ Giordano, 1995. MORAES, Marcos Antonio de (org., introd. e notas). Mário de Andrade & Manuel Bandeira. Correspondência. 2.ed. São Paulo: IEB/Edusp, 2001. MORAES, Marcos Antonio de. “Mário de Andrade: cartas” (conferência na Academia Brasileira de Letras, 25 out. 2011). SANTIAGO, Silviano (Prefácio e notas); FROTA, Lélia C. (Organização e pesquisa iconográfica). Carlos & Mário: correspondência completa entre Carlos Drummond de Andrade (inédita) e Mário de Andrade. Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, 2002. SOUZA, Eneida Maria de (Org., intr. e notas). Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa. Correspondência. Notas: Eneida M. Souza e Pe. Lauro Palú; estabelecimento de texto Maria S. I. Barsalini. São Paulo: IEB/Edusp/Peirópolis, 2010.

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Marcos Antonio de Moraes é graduado em Letras; mestre e doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo. Docente e pesquisador do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo. Membro da Equipe Mário de Andrade no IEB-USP. Desenvolve pesquisas interdisciplinares, focalizando as relações entre literatura brasileira e memorialismo (correspondência de escritores). Recebeu o Prêmio Jabuti de melhor livro na categoria Teoria/Crítica Literária, pela obra Câmara Cascudo e Mário de Andrade – cartas 1924-1944 (Global, 2010). Recebeu o prêmio Jabuti na categoria Ensaio e Biografia com o livro Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira (Edusp/IEB, 2000).

Redação

2 Comentários

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  1. Mário em, Cartas ao amigo, correspondências a Drummond:

    sempre sensível, delicado, atencioso.

    Penso como seria se vivo estivesse com toda essa tecnologia, o quanto escreveria, o quanto responderia a tudo e a todos ( a despeito de não adivinhá-lo nesses mundos de tropos digitais, contudo).

    1. Seria formidável se vivo

      Seria formidável se vivo Mário de Andrade estivesse, Odonir. Certamente ele saberia dar um uso cheio de imaginação às redes sociais e multiplicaria sua generosidade epistolar para compartilhar o imenso conhecimento e gosto estético de que era capaz.

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