Em causa, a democracia

Quando o professor Paulo Nogueira Batista escreveu, há três meses, que “a primeira metade do século XXI poderá se revelar tão turbulenta e violenta quanto a primeira do século XX “ talvez alguns tenham achado que se tratava de mera retórica.

Mas é interessante ver como o acirramento da crise está fazendo com que valores que pareciam tão absolutamente sólidos que não se podia imaginar sua contestação começam a ser, na prática, questionados.

A capa do Le Figaro que ilustra este post não é diferente do tratamento que muitos jornais, mesmo os progressistas, deram à decisão do primeiro-ministro grego, Georges Papandréou, de submeter o plano de austeridade que a União Européia deseja ver adotado na Grécia à aprovação popular.

“Caos”, escreveu em grego, em letras garrafais, o francês Liberátion. “A Grécia afunda e nos leva junto”, o espanhol ABC.

Num artigo no Daily Telegraph, o editor-assistente Jeremy diz que não é totalmente brincadeira o comentário de que sairia mais barato, em lugar de suportar a falência grega, financiar um golpe militar que a retiraria da União Europeia. “Brincadeira” que a prestigiosa Forbes repete, indo mais longe: “se nos abstrairmos do ligeiro problema da transformação da Grécia em ditadura militar, essa seria uma boa solução para o país.”

As coisas foram a um ponto que um dos editores do respeitado Frankfurt Allgemeine Zeitung, Frank Schirrmacher, escreveu um indignado artigo, intitulado “Democracia é lixo”.

“Consternação na Alemanha, na Finlândia, em França e até no Reino Unido. Consternação nos mercados financeiros e nos bancos. Consternação em toda a parte porque o primeiro-ministro grego, Georges Papandreou, põe a hipótese de um referendo para obter resposta para um problema decisivo para o destino do seu país.

Esta terça-feira [1 de novembro] pudemos ver, minuto após minuto, os banqueiros e os políticos brandirem a ameaça da queda das Bolsas. A mensagem era clara: se disserem sim, os gregos são idiotas. Quanto a Papandreou, agiu precipitadamente, porque lhes fez a pergunta. No entanto, antes que a espiral do pânico se descontrole, seria sensato tentar compreender, com algum distanciamento, aquilo que está a passar-se diante dos nossos olhos. É o espetáculo do abastardamento dos valores que, em tempos, se considerava serem encarnados pela Europa”.
(…)Não somos capazes de ver que, cada vez mais, submetemos os processos democráticos à apreciação das agências de notação, dos analistas e dos agrupamentos bancários? Nas últimas 24 horas, todos esses atores foram assaltados com perguntas, como se tivessem alguma coisa a dizer sobre a vontade do povo grego de decidir o seu próprio destino”.

Ninguém se iluda achando que os arreganhos autoritários são pura imaginação. Quem quiser, veja aqui as manchetes dos jornais gregos, que falam desde “irresponsabilidade” até em derrubar e “chutar” o primeiro-ministro pela decisão de convocar o povo às urnas.

Será mesmo que o tempo em que os interesses financeiros e geopolíticos se podia fazer à revelia da vontade dos povos, sem voto e sem legitimidade?

Por: Fernando Brito

Redação

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