Ensaio de Pedro Duarte faz balanço do legado ainda presente do modernismo brasileiro

A partir de pesquisa minuciosa, autor discute movimento que continua a iluminar produção artística nacional

por Rosana Corrêa Lobo

O Globo

 

Oswald de Andrade em retrato de Tarsila do Amaral (à esquerda) e Mário de Andrade em retrato de Lasar Segall (à direita) – Reproduções

 

RIO – No artigo “Para os céticos”, publicado no jornal “A Noite”, em série sobre o movimento modernista coordenada por Mário de Andrade, Carlos Drummond de Andrade faz uma reflexão sobre o “suco” e o “bagaço” que constituem toda tradição. Para o poeta, o suco seria o respeito pelas obras dos antepassados. Já o bagaço da tradição consistiria no amor às fórmulas caducas e o fetichismo relacionado a tudo o que é antigo.

Em “A palavra modernista: vanguarda e manifesto”, Pedro Duarte revisita o modernismo brasileiro buscando extrair o “suco” do movimento, que ainda ilumina caminhos para a produção artística nacional. O livro faz parte da coleção “Modernismo + 90”, organizada por Eduardo Jardim, que começou a ser publicada em 2012, quando a Semana de 1922 completou 90 anos. Mas não cai na tônica da “modernistolatria”, no sentido cunhado por Luís Augusto Fischer, de comemoração irrefletida das conquistas do movimento. Repensa criticamente o movimento que revolucionou a maneira de fazer arte do Brasil, aliando inovação da linguagem a um projeto ideológico de consciência do país.

O ensaio faz um balanço dos principais legados modernistas, a partir de uma minuciosa pesquisa do autor, que envolvem episódios marcantes do movimento: a polêmica exposição de Anita Malfatti, em 1917, a Semana de 1922, a viagem dos modernistas a Minas, a publicação da “Paulicéia desvairada” e seu “Prefácio Interessantíssimo”, os manifestos “Pau-brasil” e “Antropófago”, bem como os poemas “Os sapos” e “Poética”, de Manuel Bandeira, que também funcionaram como manifestos clamando pela liberdade estética; produções teóricas que fizeram um balanço ao longo dos últimos 90 anos como “O caminho percorrido”, conferência dada por Mário de Andrade, em 1944, e “Fechado para balanço”, de Silviano Santiago, publicado em 1982, 60 anos após a Semana; e inclui também pesquisas contemporâneas que buscam resgatar o que ficou de fora da história hegemônica do modernismo. São exemplos os trabalhos de Nicolau Sevcenko, que destaca o caráter moderno e revolucionário das obras de Euclides da Cunha e Lima Barreto, além dos de Renato Cordeiro e Gomes e Julieta Sobral, que fazem o mesmo com João do Rio e J. Carlos, respectivamente.

Essas diversas leituras são orquestradas sensivelmente pelo autor e nos levam a refletir sobre o movimento que teve como bandeira permitir a renovação estética permanente e liberar a cultura brasileira de fiscalizações passadistas (ainda que tenha revalorizado o passado, como as pesquisas etnográficas de Mário de Andrade), sem cair na tônica do elogio ou do ataque ao movimento, exercícios que para o autor “tornam-se esportes igualmente comuns”.

Uma das contribuições mais significativas do livro é, a meu ver, como o autor consegue resolver uma contradição de nossa cultura que começa a ser gestada em pleno modernismo: o Brasil é um país triste, como pregava Paulo Prado, um dos mecenas do movimento e autor de “Retrato do Brasil” (1928), ou é um país alegre como se tornou lugar comum afirmar?

De acordo com Paulo Prado, a conjunção da luxúria entre colonizadores e autóctones e o espírito de cobiça desses mesmos colonizadores em sua busca incessante pelo ouro, teria constituído um povo triste. Essa tristeza seria um entrave para a modernização do país. De fato, na literatura brasileira produzida nas últimas décadas, autores como Luiz Ruffato, Férrez, Rubens Figueiredo, Paulo Lins, bem como compositores, incluindo Chico Buarque, Paulo César Pinheiro e Racionais MC’s, nos levam a pensar na perpetuação de um modelo de modernização excludente, ao traçarem um quadro de abandono, violência, miséria, tristeza do país.

ANTROPOFAGIA FOI GUINADA FILOSÓFICA

Duarte destaca “Macunaíma”, também de 1928, como uma reflexão sobre a complexidade de nossa tristeza e ainda o “Manifesto Antropófago”, do mesmo ano, que apontaria para uma solução para a tristeza nacional. Para Oswald, “a alegria é a prova dos nove”, ou melhor, é a saída (a cura e não uma característica nossa), é uma possibilidade de resposta do povo à violência colonial, ao passado escravocrata, à modernização excludente. Uma tentativa de libertação via alegria. O Brasil precisaria da alegria para se autoaprovar e acabar com o suposto débito com as metrópoles.

Com o modernismo, as diferenças que constituem o Brasil deixam de ser motivo de angústia. A mistura não é mais entrave e sim motor para a entrada do Brasil na civilização ocidental. Duarte busca então em Spinoza, via Deleuze, uma definição de alegria como “o afeto resultante de bons encontros”. Assim, a alegria brasileira, proposta via antropofagia, seria o resultado de um movimento de abertura ao outro, ao estrangeiro, à diferença. Essa guinada filosófica proposta pela antropofagia e lembrada por Duarte torna-se um gesto de alegria. Para ser Brasil não é preciso negar o outro, mas sim devorá-lo.

Essa é a nossa alegria, esse é o suco legado pela tradição modernista que o livro destaca. Mas o mundo mudou e a antropofagia talvez não seja mais capaz de dar conta da nova (des)ordem mundial, como pontua Duarte. O ensaio deixa, então, uma questão em aberto, que gera uma certa frustração no leitor: a vanguarda moderna brasileira propôs devorar o estrangeiro como política de autoafirmação, e agora, na globalização contemporânea, “quem engolirá quem?”. O texto termina de maneira um tanto abrupta sem que o autor desenvolva a questão. Resta saber se o corte foi intenção do ensaísta para aprofundar esse impasse pós-moderno em outro estudo.

Rosana Corrêa Lobo é pesquisadora de Pós-Doutorado do Departamento de Letras da PUC-Rio e bolsista da FAPERJ

Fonte:; – O Globo – 07/02/2015

 

Redação

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