A esquerda morreu? O debate Vladimir Safatle, por Ronaldo Tadeu de Souza

Se a esquerda está morta ou não (...) se ela está em crise profunda ou não (...) são questões que não nos livram de refletir sobre o que estamos fazendo

Reprodução

do Blog da Boitempo

A esquerda morreu? O debate Vladimir Safatle

por Ronaldo Tadeu de Souza*

Toda experiência, sobretudo se ela se revela infecunda, deve entrar na composição do real e, desse modo, ocupar um espaço na reestruturação desse [mesmo] real.”
Frantz Fanon, Pele Negra, Máscaras Brancas

Não há nenhuma dúvida que um dos principais, se não o principal, intelectual da esquerda brasileira hoje é o filósofo Vladimir Safatle. Nos últimos anos, ele vem insistindo na afirmação de que a esquerda mundial e, sobretudo, a brasileira, estão mortas. Neste aspecto, ele só não é a única voz a entoar o réquiem porque outro de nossos intelectuais de maior destaque atualmente, o historiador Jones Manoel, o acompanha na prece. Como todo escritor dialético, Safatle tem o condão de lançar seus leitores e leitoras no thaumadzein socrático: naquelas perguntas, posições, formulações e concepções do espanto que constituíram a filosofia. Que em um primeiro instante, faz os tocados por ele vivenciarem circunstâncias de choque, de recusa, de atordoamento, de indignação e de suspensão dos convencionalismos entorpecedores do espírito.

A estocada filosófico-político que o autor de Circuito dos afetosDar corpo ao impossívelCinismo e falência da crítica e do recém-lançado Alfabeto das colisões, como dissemos há pouco, é asseverar que: “a esquerda brasileira morreu como esquerda […] [pois abandonou] as ideias de igualdade radical, soberania popular, autogestão da classe trabalhadora e de transformação estrutural da sociedade”. No intuito de estimular e dar continuidade a um debate de importância incomensurável no âmbito da esquerda, proponho 10 teses sobre a polêmica: I) das discordâncias com Safatle (e eventualmente com Manoel…); II) do problema da teoria; III) do combate sistemático às ideias de direita; IV) da (in)compreensão de setores da esquerda sobre o Estado moderno; V) do atroz schumpeterianismo da esquerda; VI) do debate sério sobre o capitalismo e o atual regime de acumulação; VII) da ingenuidade do movimentismo; VIII) da posição dos intelectuais; IX) do “movimento negro”; X) da intenção do texto.

I) Das discordâncias

No geral, concordo com Vladimir Safatle quando afirma – e quem seriamente observar o atual momento da situação política, social e cultural da esquerda tem de no mínimo se não quer subscrever ou corroborar a posição do filósofo, convir que há plausibilidade no que argumenta – que a esquerda está “morta” ou em crise profunda, para retirar a carga eloquente que Safatle imprime na formulação. Tenho apenas dois pontos de divergência. Safatle (e por vezes Manoel…) tende à política do engrandecimento, quer dizer, agigantam a possibilidade de ações políticas como se não houvesse circunstâncias de uma materialidade bruta a ser enfrentada no âmbito parlamentar e social – é certo, certíssimo, que em boa medida os movimentos do PT e de Lula são impulsionadas por eles mesmos (como os decretos presidenciais acerca de políticas públicas de privatização de presídios, aportes do BNDES, a governança econômica de Fernando Haddad etc.), o que significa dizer que o enfrentamento com um Congresso de direita (intransigente) é, por vezes, irreal, e que, portanto, o PT  há muito sucumbiu, intencional e convictamente, às posições do campo político institucional; conservador e reacionário – entretanto, é preciso admitir que nosso sistema político e seu cipoal regimental transformam-se em obstáculos concretos, e que se necessita medir quais as atitudes serão encaminhadas. Articulado a isso, a situação das mudanças no regime de acumulação desde os anos 1980 alterou a composição daqueles setores que iam às ruas com maior denodo e intensidade, colocando dificuldades consideráveis: é um fenômeno que corta transversalmente todos os potenciais agentes sociais e não só os trabalhadores do chão de fábrica, é um problema, como diz Anton Jäger, de “esgotamento” da política de massas que esteve presente em todo o século XX.

Ainda sobre o sistema político, reconheço que é um vício de quem é formado, tristemente, na ciência política brasileira, tal comentário; o estatuto acadêmico e político dessa disciplina vinda da América do Norte e sua influência na construção de nossa democracia após a ditadura de 1964 ainda deverão ser averiguados pelos/as teóricos/as de esquerda e pelos/as especialistas em sociologia dos campos científicos (a la Pierre Bourdieu), mas é inegável que urge a esquerda, em geral, e a radical-revolucionária-marxista, em particular, apropriarem-se do melhor que a ciência política oferece, ao menos como apoio analítico e dado mimetizado da política. Esse exercício é, de certa maneira, recorrentemente efetuado pela esquerda norte-americana, que não se furta a entender, por exemplo, como o sistema de gerrymandering (o redesenho constante dos distritos eleitorais de modo a adquirir vantagem e assegurar a vitória) é, em certos momentos, fatal para os objetivos das forças comprometidas (minúsculas, é verdade…) com o povo no interior do Partido Democrata. Com efeito, não podemos menosprezar o efeito prático de contenção (aos partidos e grupos de esquerda) de nossas instituições políticas e seus agentes principais.

Outra consideração discordante com a intervenção de Safatle é mais de formulação do que de substância. Entendo que a fórmula igualdade radical e soberania popular são, tendencialmente, “rousseauistas”.1 É óbvio que Vladimir Safatle não teorizou e nem quis teorizar sobre isso em uma entrevista para a Folha de São Paulo, mas fica o registro – é o caso de pensar, neste aspecto, em formulações mais práticas e mobilizadoras. Feito essas duas observações divergentes, vejamos porque a esquerda está em crise profunda ou morta.

II) Do problema da teoria

A crise e/ou a morte da esquerda têm no elemento teórico uma das explicações. Ao não se autoquestionar que tipo de teoria (autores, autoras, escolas de pensamento, disciplinas, conceitos e análises) se estuda e se produz, a esquerda nacional revela a mais absoluta incompreensão de si-mesma como força política. Marx escreveu O Capital – assim como Lênin escreveu O desenvolvimento do capitalismo na Rússia, Horkheimer o Teoria Crítica e Teoria Tradicional, Marcuse O homem unidimensional, Fanon Os condenados da Terra, Mariátegui os Sete ensaios de interpretação da realidade peruana; Clóvis Moura o Rebelião nas senzalas; Angela Davis o Mulheres, raça e classe – dentre outras coisas, porque sabia da importância decisiva da construção de uma teoria que orientasse a ação da classe trabalhadora; bem como daquelas que contribuiriam para isso, daquelas que eram inevitáveis de serem incorporadas pelas organizações comunistas em certo tempo histórico, daquelas que eram sérias mas tinham pouco a dizer com vistas à transformação social e daquelas que tinham de ser rechaçadas e combatidas.

Ora, nunca nos questionamos (com raríssimas exceções que não precisam ser citadas… a carapuça, positivamente, vai vestir alguns) que tipo de autores e autoras, sistemas de pensamento, filosofias políticas, sociologias e visões de mundo estamos lendo, estudando, mobilizando para o debate – articulando as nossas convicções. Estamos, e nossas teorias estão, sempre certos, nossos autores e autoras são sempre os melhores, minha agenda de pesquisa (para quem as têm) explica o Brasil inteiro, tal ou qual teoria não faz mais sentido de ser defendida porque eu entendo que ela está superada e tutti quanti. O personalismo afetivo (Sérgio Buarque de Holanda) da esquerda brasileira é da ordem do ridículo: e me incluo nisso. Bem medidas as coisas,2 de minha posição compreendo, a partir do Renovações de Perry Anderson, e Depois da dialética de Goran Therborn, mas de um ponto de vista invertido, o seguinte – Anderson e Therborn, cada um ao seu modo naturalmente, afirmam que o marxismo não será mais a única teoria a fundamentar as concepções da esquerda. Psicanálise e teórica social de Bourdieu; teorias críticas feministas (Fraser, Benhabib, Young e Arruzza) e estudos culturais; filosofia política da esfera pública e teoria queer; pós-estruturalismo e sociologia das raças – Honneth e Mbembe; Butler e bell hooks; Spivak (e a pós-colonialidade) e Lacan; Pikety e Laval-Dardot: uma constelação de pensamento acadêmico crítico inevitavelmente fará parte de qualquer projeto de esquerda digna desse nome. Os motivos aos quais Renovações e Depois da dialética apresentam para seus respectivos diagnósticos são eminentemente variados e complexos para serem expostos aqui, recomendo a leitura de ambos os trabalhos.

Entretanto, a esquerda brasileira morre não por que se apropria grandemente de tais teorias sociais para compor o leque de entendimento e ação na realidade; quanto a isso estamos na vanguarda do que sugerem Anderson e Therborn. Mas o absoluto desprezo com que a esquerda brasileira, ressalvando pouquíssimas vozes, tem com relação ao marxismo e as flechas da aljava da teoria socialista clássica é escandaloso. Uma esquerda que ainda estivesse lendo, apenas O que fazer? de Lênin, escrito em 1902, e não soubesse o que está escrevendo Butler e Honneth, Laval e Rahel Jaeggi seria um problema grave. Contudo, uma esquerda que somente se debruça sobre a teoria queer e estudos sobre desigualdade, psicanálise e pós-colonialidade, esfera pública e teoria da justiça e sequer vislumbra averiguar, por exemplo, o que significa o conceito de imperialismo de Lênin, Rosa Luxemburgo, Kautsky, Bukharin e Hilferding (decisivo na querela sobre o argumento se um regime político é ou não fascista), ou mesmo não se dispusesse a estudar profundamente o que Gramsci quis ou queria dizer com a formulação acerca das situações-relações de força e seus graus (econômico, político e militar), não deixa de ser sintomático de sua crise profunda (é constrangedor, nesse caso, o uso insistente da noção de correlação de forças para justificar as condutas políticas de Lula, Haddad e do PT).

É absolutamente injustificável – nossas posturas teóricas, nossa arrogância tola, nossa incapacidade de elaboração analítica e dialética da realidade brasileira a partir do marxismo e da teoria socialista clássica. Ora, isso expressa, de certa maneira, a morte, ou o estágio terminal da esquerda. Não se trata de ou-ou, nem mesmo de ecletismo frágil: ocorre que se a esquerda não aliar o espírito revolucionário dos teóricos e intelectuais marxistas das primeiras décadas do século XX, bem como do que se vem publicando em termos do marxismo negro, caribenho, africano e latino-americano (dentre esses o de Clóvis Moura, no trabalho esplêndido desse intelectual público-orgânico de Jocélio Junior, o Juninho, à frente da Dandara) com o mais avançado e sério dos estudos acadêmicos críticos, nossa situação – inclusive subjetiva – será insuficiente para combater a contrarrevolução da direita intransigente (dos fascistas talvez…), das forças burguesas do mercado e dos liberais-conservadores cínicos.  E qualquer historiador, minimamente, com compromisso com seu artesanato, sabe que o PT de a muito abandonou, se é que o teve algum dia, o marxismo e as teorias socialistas: não há o menor vestígio disso, nas cúpulas do partido e mesmo nos seus segundos círculos concêntricos.

III) Do combate sistemático às ideias de direita

A crise profunda e terminal da esquerda, a brasileira em particular, é revelada na percepção equivocada que possuímos sobre a força das ideias políticas na história. A esquerda –  seus teóricos e suas teóricas, intelectuais e militantes – despreza, com raríssimas vozes se preocupando com isso, o confronto com as modalidades de pensamento de direita. É como se apenas nós tivéssemos ideias sobre o mundo, a sociedade, a política e a cultura. É como se apenas nós lêssemos e estudássemos nossos autores e autoras de predileção, que como disse acima, inclusive, precisam passar por uma autorreflexão séria sobre se ela está ou não sendo conveniente no âmbito da luta de classes, raça, feminista etc.

A circulação de ideias de direita no Brasil já ocorre desde os dias em que Olavo de Carvalho era consultor de algumas editoras. Com efeito, não temos um bom estudo crítico de fundo sobre o filósofo político e teórico da estética Roger Scruton, autor crucial na reorganização da direita brasileira no último período. Passamos toda a Operação Lava-Jato procedendo por meio de técnicas de exceção e sequer escrevemos duas páginas sobre Carl Schmitt e seus Teologia políticaO conceito do político e Legalidade e Legitimidade (o que é mais grave nesse caso, pois o teórico do direito alemão é lido e pesquisado no Brasil desde os dias em que José Arthur Giannotti lecionava no departamento francês do ultramar).

Não podemos restringir o entendimento que temos da direita brasileira contemporânea apenas – ainda que seja empreendida por pesquisadores e pesquisadoras de alta competência – com estudos qualitativos sobre quem, por exemplo, são os grupos que invadiram os Três Poderes em 8 de Janeiro de 2023. O que exprime, ademais, um elitismo perverso. É a crise profunda da esquerda tal despreocupação com as ideias políticas adversárias. Novamente, é uma questão de subjetividade: Hegel e Marx já demonstraram que é no reconhecimento de si-no-outro que se constituem os sujeitos (políticos): na bela formulação de Robert Pippin, “negando meu eu [no outro] eu posso me tornar um genuíno eu, ou um sujeito [coletivo] autoconsciente”. É necessário investigar como pensam as mentes da direita brasileira – quem os orienta e etc. – na chave da crítica impiedosa e radical. Perry Anderson disse, em duas ocasiões, que “os ensinamentos arcanos chegam até os cavaleiros, são eles os herdeiros” e “ideias que não chocam o mundo não tem capacidade de sacudi-lo” – e pelo que estamos presenciando, somente a direita choca a política e a sociedade sem nenhum contraponto a suas ideias.

IV) Da (in)compreensão de setores da esquerda sobre o Estado Moderno

Nessa tese não estamos sozinhos, visto que a esquerda latino-americana também é seduzida pela estratégia eleitoral para chegar ao governo. No Brasil, a experiência de competição pelo voto como momento primordial de acesso ao poder político é absurdamente problemática – e o PT não está sozinho, pois PSOL, movimentos feministas, movimentos negros e acadêmicos o acompanham. Isso acusa, em definitivo, o que Vladimir Safatle nomeia de “a morte da esquerda” ou de crise profunda, ou ainda, se preferir, de derrota histórica. O ponto aqui é de advertência. Não se trata, de minha parte obviamente, de nenhum esforço autoproclamado de esclarecimento dos que estão na luta política diária. Seria um descalabro, deselegante e uma falta de senso de proporção se portar assim. Essa circunstância envolvendo a esquerda nacional se conecta com a tese II. É inconcebível nossa obscuridade em entender o que significa atuar no âmbito das instituições do Estado burguês em geral (debate Lênin-Kautsky), bem como no Estado burguês brasileiro (Florestan Fernandes) e no contexto do capitalismo político (Robert Brenner e Dilan Riley).

É a contraface do fato de que a direita liberal-fascista-bolsonarista toma as ruas, despreza completamente os ritos e decoros convencionais do parlamento, recusa ser deferente ao Supremo Tribunal Federal (STF) e transfigura o Estado em um grande sicário no extermínio de negros (na Baixada Santista desde o ano passado até hoje já somam mais de 40 mortes pelas pistolas “.40” da polícia de Tarcísio-Derrite). Para a direita intransigente o Estado moderno é o katechon contra os anticristos que vêm – e apenas isso. Somos nós que nos enganamos, alguns evidentemente não…, sobre as virtudes em atuar no interior do Leviatã (Thomas Hobbes). Qualquer esquerda séria tem de abolir da atuação diária o sectarismo; não averiguar os limites extensivos e profundos em mover-se em terreno, historicamente, adverso – “não há Estado por mais democrático, que não tenha em sua constituição alguma fenda ou restrição […] [aos interesses dos trabalhadores] […] [e] a estreiteza e a relatividade do parlamento […] [frente aos interesses dos subordinados] existe no mais [republicano] dos Estados burgueses” (Lênin) – e somente nele, confirma o debate-Safatle.

V) Do atroz schumpeterianismo da esquerda

Organicamente ligado à ação acrítica no âmbito do Estado moderno, sem ao menos suscitar questões, postular dúvidas, rever táticas, está o schumpeterianismo da esquerda. Na definição canônica do cientista social e economista austro-americano, democracia nada mais é que um método institucional para selecionar elites (líderes), de modo a constituir a representação e formar o governo, através da competição pelo voto do povo. Após o procedimento ser efetivado, não haverá qualquer compromisso direto com os interesses dos votantes. O pressuposto de Schumpeter era que a direita (a burguesia) não teria problemas em sustentar o método de seleção de governantes; o problema residiria em se a esquerda e seus compromissos com os trabalhadores restringiriam suas práticas aos espaços institucionais do Estado e a luta por políticas públicas; só isso garantiria o funcionamento da democracia liberal-elitista. A esquerda brasileira não só subscreve a democracia eleitoral schumpeteriana, como a defende com alma, valoriza e atribui honrarias a seus ritos (a glorificação do Superior Tribunal Federal e de Alexandre de Moraes são vergonhosos para a história da esquerda). No período eleitoral, das campanhas, da disputa corpo-a-corpo pelo voto dos populares, apresentam-se soluções para a melhoria da vida dos que vendem força de trabalho – após isso, o que temos são planos econômicos haddadianos de austeridade, corte de gastos e retirada de direitos do povo. Nesse aspecto, o PT e outros setores da esquerda são relativos “adeptos das concepções” de Joseph Alois Schumpeter. PSOL, coletivos negros, comunidades indígenas que adentram à política via procedimentos eleitorais, comportam-se de maneira semelhante, guardadas as distinções existentes – os mandatos coletivos, que pareciam ser uma inovação imaginativa, rapidamente se metamorfosearam em novas sociais-democracias (Susan Watkins).

Para não pedirmos em demasia, dada a sempre pronta correlação de forças tirada da lapela do paletó, o emplasto de Brás…, que se atue com posições políticas substantivas de melhoria da vida dos que sofrem o dia-a-dia (com a falta de saúde, de transporte público de qualidade, de educação digna, de emprego formal): se quer depois do escrutínio eleitoral as forças de esquerda fazem do parlamento e dos ministérios tribunas que ecoem com radicalidade a voz daqueles que lá não podem estar. É dispensável dizer como são plácidas, por exemplo, as manifestações institucionais da esquerda diante do banho de sangue na Baixada Santista . Se não fossem mulheres negras aguerridas, combativas mesmo, de espírito inquieto, a “puxar” manifestações nas ruas nos últimos dias em São Paulo, é muito provável que quase nada chamaria a atenção do extermínio perpetrado pelo futuro candidato da classe burguesa brasileira em 2026, o senhor Tarcísio de Freitas, o Thiers renascido na periferia do capital.

VI) Do debate profundo sobre o capitalismo e o atual regime de acumulação

Como podemos dispor de um plano econômico de esquerda se não temos um debate teórico e conceitual profundo acerca do capitalismo contemporâneo e do atual regime de acumulação. É verdade que possuímos economistas de primeira linha (Juliane Furno, Elias Jabbour, Fernando Rugitsky, David Decache, Laura Carvalho, pesquisadores e pesquisadoras na Unicamp e no Instituto de Economia da UFRJ), mas não será suficiente, até que a esquerda enquanto tal, não produza suas próprias intepretações sobre a economia atual.

Assim, o pós-2008 mudou significativamente o estatuto do regime de acumulação de capital. Precisamente, seguindo William Davies, presenciamos a sobreposição de três momentos distintos do neoliberalismo: o contrarrevolucionário dos anos 1980, o progressista da era Clinton do capital humano e o neoliberalismo político (extrativista em sentido lato). O forte desejo (esperanças vãs) da esquerda em reproduzir os padrões keynesianos de crescimento através de concertações de classes – em que capital e trabalho acordam conciliações, com vistas a por um lado, o aumento do lucro do capital; e por outro, ganhos salariais e ampliação de direitos, foi esmagado desde que Thatcher e Reagan alcançaram o poder (e Hayek venceu a batalha das ideias) – exprime a crise profunda (a morte como quer Safatle) acerca do horizonte de transformação radical da sociedade.

Com a crise de 2008, o cenário agrava-se. Os déficits públicos dos Estados burgueses, aumentados com as intervenções salvacionistas, combinados com os profundos limites estruturais-imanentes do capital, bloqueiam padrões aceitáveis de lucratividade para a elite econômica – impossibilita a retomada, de médio prazo, da estratégia de crescimento-renda-consumo-emprego. Não é preciso dizer que a implicação disso é um ataque contumaz aos trabalhadores e trabalhadoras e seus já reduzidos ganhos: é uma contrarrevolução (Bolsonaro, Trump, Milei, Meloni, Le Pen, Johnson, Órban) que visa reestabelecer minimamente a taxa de lucro do capital. Essa tese, de fato, é um tanto catastrofista (pessimista) na formulação, reconheço. Mesmo assim, a esquerda militante e teórica, que já teve em seus quadros economistas públicos e compromissados como Celso Furtado, precisa se debruçar sistematicamente sobre as condições da economia atual e como ela atinge os de baixo. Sugere-se fazer isso articulando refinamento conceitual, popularização e debates diários, inclusive com o povo. Ora, no sentido algébrico, é preciso um programa econômico para restabelecer, em termos paradoxais do ângulo comunista, minimamente o trabalho e o salário – é atacando o capital, como afirmou Marx em Salário, preço e lucro, que isso eventualmente poderá ser alcançado. No vocabulário de Nancy Fraser, uma redistribuição estrutural-transformadora do capital acumulado.

Contudo, a esquerda está distante disso, pois ela sequer vislumbra outro modelo econômico – e no governo, o caso de Fernando Haddad é cristalino, pois nem mesmo defende um keynesianismo fraco, pelo contrário, é o agente de certas políticas para manter o lucro do capital a níveis plausíveis, ou seja, como a burguesia entende ser conveniente para seus interesses de classe imediatos.

VII) Da “ingenuidade” do movimentismo

Quando se assevera que a esquerda morreu, ou está em crise profunda, terminal mesmo, a primeira postura é de dispor de exemplos de luta política que cortam a sociedade. É inegável a existência de manifestações políticas e sociais diárias dos progressismos. O temor dos conservadores e da direita – algo que eles não aceitam desde Edmund Burke e o ódio às revoluções do irlandês – é que as pessoas continuarão a fazer da vida o momento de conflito e combate pela sobrevivência enquanto essa não for atingida com dignidade; e nas mais variadas e diversificadas formas. Entretanto, incorremos, excessivamente, em posições movimentistas – as práticas cotidianas para melhorar o meio-ambiente, a disseminação de espaços de cultura nos rincões, as comissões instaladas aqui e ali de direitos humanos, as pequenas mobilizações feministas a cada 8 de março, a absorção de pautas indígenas em espaços acadêmicos, os coletivos negros espalhados em vários municípios a discutir o racismo são altamente positivos e, decisivamente necessários, na atual circunstância política da esquerda. No entanto, assim como no caso da teoria, que orienta parte dessas ações, não é demais indagar da capacidade de impacto político material nas forças da direita intransigente que os movimentismos possuem.

Ao longo de todo o volume 3 (Maquiavel-Notas sobre Estado e a política) dos Cadernos do cárcere, Gramsci aborda o momento político-militar da luta de classes – “o terceiro momento é a da relação das forças militares, imediatamente decisivo em cada oportunidade concreta” e “a tropa mercenária nasce, assim, como o meio para determinar um desequilíbrio da relação das forças políticas em favor da parte mais rica da burguesia, em prejuízo […] do povo miúdo”, e por fim, “uma das manifestações mais típicas do pensamento sectário […] é aquela pela qual se considera que se possa fazer sempre certas coisas, mesmo depois que a situação político-militar mudou”. De modo que – o sectarismo, eventualmente, na esquerda brasileira tem sinal trocado. E a direita, tragicamente, sabe disso.    

VIII) Da posição dos intelectuais

Historicamente, os intelectuais foram aqueles que propiciavam intervenções críticas radicais acerca do sofrimento dos de baixo sem necessariamente estarem associados a algum partido político. Aqui a imagem de Jean-Paul Sartre cintila para quem acredita na capacidade dos hommes et femmes de lettres de, eventualmente, desequilibrar o jogo de forças para os que vivem em sofrimento social. E mais: quase sempre, na esmagadora maioria, intelectuais, sartreanamente falando, foram indivíduos de esquerda. O potencial de impacto, dado seus atributos retóricos, inspiradores, teóricos e organizativos, na luta política (de classes) é expressivo e considerável. Não é ocasional que escritores conservadores no século XX – Joseph Schumpeter, Leo Strauss, Eric Voegelin, Raymond Aron, Hannah Arendt, Micheal Oakeshott – sempre se postaram contrário às ações dos intelectuais. Contudo, deve-se admitir que estamos muito longe de termos uma camada significativa de intelectuais engajados que falem em nome do povo no sentido do ensaio Em defesa dos intelectuais, de Sartre (temos alguns poucos, para quem quer enxergar, é verdade, e que são conhecidos/as do público.) Infelizmente, professor ou professora universitário, pesquisador/ra desse ou daquele centro de estudos destacado não são sinônimo de intelectual, pelo contrário é possível afirmar. E, por vezes, na esquerda se confunde um e outro, revelando a crise por que passa. A universidade, as públicas sobretudo, ao qual faço parte, efetivamente pelo menos há 10 anos, tornou-se um espaço ao mesmo tempo sofisticado em termos de pesquisa, qualidade dos trabalhos escritos, internacionalização e de excessiva profissionalização das atividades exercidas e jogo de interesses mesquinhos de pequenos grupos da classe média branca (racista) – as implicações são de se supor para qualquer um ou uma informado sobre o que é o dia-a-dia do mundo campi.

Perry Anderson advertiu, no seu já citado Renovações, as consequências do fenômeno contemporâneo: “uma transformação fundamental da era anterior, frequentemente discutida, foi a migração generalizada de intelectuais da esquerda para instituições de ensino superior. Esta evolução, fruto não só de mudanças na estrutura profissional, mas também do esvaziamento das organizações políticas, da idiotização das editoras e da atrofia das contraculturas, dificilmente conseguirá inverter o seu curso num futuro próximo. Não é necessário dizer que isso gerou defeitos específicos. Recentemente, Edward Said chamou a nossa atenção sem rodeios para o pior destes: níveis de escrita que teriam deixado Marx ou Morris sem palavras. Mas a academização também cobrou o seu preço em outros aspectos: aparatos inúteis, mais por credenciais do que por razões intelectuais, referências circulares às autoridades no assunto, citações obsequiosas de obras próprias, etc.” No Brasil, esse cenário se agrava: o elitismo racista, machista e patrimonial das corporações acadêmicas; o sufocamento no acesso a recursos públicos para pesquisa, tornando as agendas de investigação reféns das demandas da vez (o que Wendy Brown chamou de “conhecimento neoliberalizado”) dado a escassez induzida das verbas; e o acesso altamente restrito do povo ao ambiente universitário,  tornando esse um espaço social de pequenos grupos de privilegiados brancos (e que, como diz o dito popular, “não larga o osso”…) – desmonta qualquer perspectiva de debate intelectual e seriamente de esquerda. E mais: a geração gloriosa de intelectuais de esquerda que trabalhava na universidade está nos deixando aos poucos (Luiz Werneck Vianna foi um dos que faleceu recentemente, deixando uma obra teórica e um compromisso irrefutáveis). Infelizmente, não temos os nomes de outrora. É urgente na esquerda o esforço coletivo de formar intelectuais engajados, públicos e orgânicos, comprometidos com os de baixo.

IX) Dos “movimentos” negros

Como negro, não poderia deixar de debater a questão racial no Brasil face à crise profunda da esquerda, sua morte como quer Safatle. E, talvez, esse seja nosso mais grave problema. Nenhuma transformação social-estrutural da sociedade e da política brasileira será lograda se não reconstituirmos nosso principal, insubstituível e decisivo sujeito político da ação. E, em nosso caso, é indisputável que a classe trabalhadora negra (bem entendido, trabalhadora em sentido lato…), homens, mulheres, jovens, idosos e idosas de pele preta e parda que vendem (ou, estruturalmente, não… o que é pior) sua força e energia (no vocabulário contemporâneo o corpo negro disponível para o capital) seja o agente político derradeiro da luta de classes. Decorrem três breves considerações a serem feitas no contexto de “morte” da esquerda.

A primeira é que enquanto a esquerda não entender que é absolutamente insuficiente agir tratando a questão racial como lateral, como mais um dentre inúmeros problemas no Brasil, ela estará fadada ao fracasso completo. Há uma vasta literatura em nosso pensamento social que já teorizou que qualquer solução para os dilemas brasileiros passa, substantivamente, por atacar de frente o racismo, mas via de regra a esquerda ainda é incapaz disso, infelizmente. Nossa presença na política daquela é meramente figurativa, o exemplo dos atuais ministérios do governo Lula (MIR e o MDHC) são flagrantes. Além disso, setores progressistas na sociedade civil (jornais, revistas, editoras, publishers, universidade), que “adentram” ao assunto do racismo, se dizendo antirracistas, o fazem do modo cínico, o fazem para autoforjarem a voz de sua consciência moral branca (o fenômeno é tratado, brilhantemente, no filme Ficção americana, de Cord Jefferson, que bem poderia ser Ficção brasileira).

A segunda, de maneira telegráfica, o movimento negro que também compõem as forças de esquerda em sentido amplo necessita, e com urgência, debater, mesmo que isso cause desconforto, inconvenientes e dessabores, o problema do identitarismo para usar, infelizmente, o vocabulário do tempo (posições como a do ensaista Francisco Bosco na Folha de São Paulo de 24/03/2024, malgrado seu talento ao tomar da pena, precisam ser lidas, estudadas e causticamente criticadas).

A terceira, sugere-se pensar acerca das nossas exigências (como pessoas pretas e pardas), em reconstruir uma subjetividade mais combativa, o que implica em formar ativistas, escritores, militantes e intelectuais negros que articulem, como disse acima, na tese sobre o problema teórico, marxismo negro-caribenho-africano-latino-americano, o espírito revolucionário dos socialistas do começo do século XX e o melhor dos estudos acadêmicos realizados aqui e fora (teoria crítica, pós-colonialidade, estudos culturais, pensamento social e político brasileiro, queer, sociologia da cultura, teoria feminista, pós-estruturalismo, psicanálise). Há uma juventude negra clamando por isso.      

X) Da intenção do texto

Por fim, é sempre inconveniente falar de algo que não se pratica e, mesmo sem intenção, adquira teor professoral. Mas, peço licença: o texto, escrito em forma de teses, teve o modesto, modestíssimo, intuito de contribuir com a discussão no âmbito da esquerda. O debate-Safatle foi o eixo motivador ao qual articulei algumas questões. Se a esquerda está morta ou não, como afirma Safatle e alguns poucos, se ela está em crise profunda (como tendo a acreditar) ou não, se ela sofreu uma derrota histórica (como também tendo acreditar) ou não, são questões que, independentemente da posição de cada qual nesse campo, não nos livram de refletir sobre o que estamos fazendo – se queremos, realmente, uma sociedade emancipada, sobretudo, para aqueles e aquelas que sofrem a não-realização dela.

Notas
1 No artigo em que responde às críticas de Fábio Palácios, Celso R. de Barros e José L. Portella; Safatle esclarece e desenvolve as duas formulações. Resolvi não alterar o corpo do texto para justamente incitar a reflexão prática. Esse é um debate (teórico-estratégico) de fundamental importância e Vladimir Safatle acerta em propô-lo. Como disse, os núcleos substantivos dos termos são sugestivos da perspectiva de uma esquerda radical e transformadora e concordo com eles – mas me parece que a formulação guarda um traço rousseauistas e de um em vias de constituir-se (um certo poder constituído em processo); significa dizer que precisamos ainda elaborar estratégias e táticas para mudar efetivamente a condição atual do poder de classe no curso e na dinâmica das lutas políticas e sociais. Sobre a resposta de Safatle, especificamente, a Celso Rocha de Barros, o filósofo da USP aquiesce em demasia ao cerco valorativo do colunista da Folha. Pois, tratar o problema da “reforma ou da revolução como binário” para responder a Barros não me parece adequado. É justamente aí que se joga o destino da esquerda hoje: ou ela será adepta da teoria do crescimento (keynesiano-reformista) com distribuição de renda, aumento salarial e concessão de direitos e para isso exige-se coalizões de classe (o que o próprio Safatle critica), e, obviamente, quem escolhe Bolsonaro, Milei, Trump e Órban não está mais disposto a concertação alguma, ou ela terá de pensar formas variadas de emancipação estrutural da ordem capitalista (isso não invalida posições táticas contingentes de ação prática) – que como bem demonstra Robert Brenner em estudos sucessivos, encontra-se na impossibilidade de alcançar taxas de lucro pré-neoliberalismo.   
2 Para evitar incoerências.

*Ronaldo Tadeu de Souza é professor de Ciência Política no Departamento de Ciências Sociais da UFSCar, pesquisador do Cedec e pós-doutor pelo Departamento de Ciência Política da USP. 

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

Redação

3 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Se você acha que está em crise então estå em crise…

    “visto que a esquerda latino-americana também é seduzida pela estratégia eleitoral para chegar ao governo. No Brasil, a experiência de competição pelo voto como momento primordial de acesso ao poder político é absurdamente problemática” isto me preocupa … será que a direita tem razão ?!

  2. Trocaria toda essa tese por uma constatação óbvia: a esquerda está covarde. Simples assim. Acomodada, acovardada, dopada, medrosa. São velhos que se acomodaram em um PT conservador e reacionário e jovens entupidos de psicotrópicos que são incapazes de fazer algo além de – risos – queimar estátuas. Assim fica impossível mesmo.

    1. Tenho, em minha ignorância, algumas dúvidas:
      1. A direita, vide PSDB, também morreu?
      2. É possível ser branco e hetero e entrar no debate social na atualidade, pensando no bem coletivo?
      3. O que temos hoje, no Brasil é no mundo, é um sistema pós capitalista marxista para os bilionários e capitalista feudalismo para os pobre?
      4. O queda do imperialismo americano, caindo atirando e concentrando, ou seja, o Caos, tem algo a ver com a jogada de toalha das ditas agendas progressistas?
      5. China e Rússia são de esquerda ou são os líderes da extrema direita mundial fora de seu quintal?

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador