Mitologias da Independência I: a reescrita da dependência político-econômica do Brasil, por Alexandre Filordi

De longe, sabemos que a Proclamação da Independência nunca teve povo; não foi articulada por mobilizações sociais de grandes lastros

(Charge de Miguel Paiva)

Mitologias da Independência I: a reescrita da dependência político-econômica do Brasil

por Alexandre Filordi

O Bicentenário da Independência é momento oportuno para refletirmos sobre a Independência que não foi. Os eventos históricos tomados como bloco carnavalesco, ou seja, com cores meramente festivas, tendem a disfarçar ou até mesmo a ocultar a realidade dos jogos de poder que os atravessam e os constituem. É assim que se inventam mitologias ou discursividades funcionais, deixando de lado o que não interessa à festa.

De longe, sabemos que a Proclamação da Independência nunca teve povo; não foi articulada por mobilizações sociais de grandes lastros, capazes de pressionar as estruturas do poder do Brasil imperial para modificá-las. Mas sabemos que foi fruto, em boa medida, das tricas e futricas, como gostava de dizer um ex-presidente, na corte portuguesa, envolvendo interesses privados dos herdeiros de D. João VI.

Ao situarmos, porém, a efeméride de 1822 no intervalo de duas situações históricas, podemos enxergar condições preponderantes das impossíveis independências política e econômica para as quais fomos destinados e com as quais, desgraçadamente, ainda somos nelas encabrestados.

Um século antes de 1822, no coração do Brasil colônia, a Inglaterra impôs à Portugal o Tratado de Methuen. Isso ocorreu em 1703. Em troca de algumas vantagens para seus vinhos no mercado inglês, Portugal cedeu seu próprio mercado e o de suas colônias às manufaturas britânicas. A aposta genial da colônia: matar qualquer germe de capacidade industrial no Brasil; destinar o Brasil a ser um retrato ¾ de Portugal: tornar-se um latifúndio onde o agro pudesse ser pop, reatualizando a forma produtiva feudal no século XXI. O reino proibiu, acossado pela Inglaterra, o funcionamento de refinarias de açúcar em 1715; em 1729, criminalizou a abertura de novas vias de comunicação na região mineira; e pasmem, em 1785, ordenou que fossem incendiados os teares e as fiações do Brasil. De caçarolas às ceroulas, tudo era made in England.

“Aiii, esta terra vai cumprir seu ideal. Ainda vai tornar-se um imenso Portugal”, como diz o Fado Tropical de Chico Buarque, realizou-se, desde então, perfeitamente. O Brasil avizinhado pela Proclamação da Independência é um país de fidalguia à roceira, de recursos minerais bombeados para se comprar tudo da Inglaterra; é uma criança sem futuro, uma nação sem esboço de produção com valor agregado; é esboço de desmonte de nação, um verdadeiro bastião do atraso, um gigante liliputiano. As condições históricas precedentes ao acontecimento do Ipiranga assinalam para o desmonte de uma nação que, à guisa dos interesses de quem sempre mandou, ofertou suas riquezas aos mais ricos e destituiu suas oportunidades de ser independente com indústrias próprias, interesses internos – estes, sim, patrióticos – descolados dos interesses estrangeiros.

 Um ano após a Proclamação da Independência, em 1823, o presidente estadunidense James Monroe reforçou o destino de nossa Nação, condensando suas riquezas e potências à dependência dos mandos estrangeiros. A expressão “A américa para os americanos” ficou conhecida como a doutrina Monroe. O General Grant houve por bem delineá-la: “Para os americanos, sim senhor, mas, entendamo-nos, para os americanos do norte”.

Em A ilusão americana, publicada por Eduardo Prado em 1893, encontramos complexa análise que como “o furor imitativo dos Estados Unidos tem sido a ruína da América”. Arremata dizendo que essa imitação servil é justamente a prova da incapacidade de independência. Sob um Brasil endividado e estruturado à base da violência da escravidão, do latifúndio medieval, da escritura passada ao interesse estrangeiro, a Independência é um jogo de RPG que apenas os poderosos gostam de brincar. Talvez o verso “longe vá, temor servil”, do Hino da Independência, faça todo sentido, mas como plano de desejo recalcado.

Enquanto Eduardo Prado dizia que “as sociedades devem ser regidas por leis saídas de sua raça [concepção da época], da sua história, do seu caráter, do seu desenvolvimento natural”, a Independência do Brasil celebra, de fato, as conveniências de leis impostas pelos impérios para destituir a sua história de qualquer desenvolvimento próprio possível.

A aventura do pretenso grito de “independência ou morte”, de 1822, resguarda na voz surda da verdadeira história de dependência e de morte de uma nação que nunca nasceu independente e cuja ventura reescreve pendências e dependências políticas e econômicas brutais. Ignorar tudo isso é bem interessante, mas para quem?

No próximo texto, mostrarei outra mitologia da independência: a da bandeira nacional, esta sem povo e decalcando a sanha imperial.

Alexandre Filordi – Departamento de Educação – DED – UNIVERSIDADE FEDERAL DE LAVRAS. Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação – UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO. Coordenador do GT de Filosofia da Educação – ANPEd – ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM EDUCAÇÃO.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

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Redação

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  1. “A ti trocou-te a máquina mercante,
    Que em tua larga barra tem entrado,
    A mim foi-me trocando, e tem trocado,
    Tanto negócio e tanto negociante”

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