Bolsonaro “chavista”?! O absurdo nosso de cada dia…, por Roberto Bitencourt da Silva

Bolsonaro é a verdadeira antítese de Hugo Chávez. Isso em múltiplos aspectos politicamente decisivos.

Alan Santos – PR/Getty Images

Bolsonaro “chavista”?! O absurdo nosso de cada dia…

por Roberto Bitencourt da Silva

Nos últimos dias tem proliferado nas redes sociais esdrúxulas comparações entre Jair Bolsonaro e o ex-presidente da Venezuela, Hugo Chávez. A identificação de uma pretensa semelhança decorre, original e notadamente, de manifestações de jornalistas brasileiros sintonizados com ideias liberais.

O que parece mover tal exercício comparativo é o receio, bastante compreensível, com a reeleição de Bolsonaro – um notório agente político dotado de veia autoritária, empolgado que é por seus deploráveis ídolos da ditadura instaurada em 1964. Se a mídia oligopolista apoia fervorosamente o ultraliberalismo econômico de Bolsonaro, o mesmo não ocorre em relação a dúbia posição do presidente acerca das instituições políticas representativas.

Se o receio é legítimo, a arma ora utilizada para criticar Bolsonaro é inválida, portadora de uma absoluta falta de rigor na análise política. Reunir um ou dois aspectos fortuitos para traçar semelhanças entre experiências históricas e líderes políticos tão distantes consiste em uma operação intelectual desonesta, despolitizante, que promove embaraços para a compreensão da política brasileira e latino-americana do nosso tempo. É imperioso evitar fazer coro a essa tolice absurda, especialmente nas hostes progressistas e confluentes com ideias de esquerda.

Bolsonaro é a verdadeira antítese de Hugo Chávez. Isso em múltiplos aspectos politicamente decisivos. O presidente brasileiro é um vassalo da política externa estadunidense, que molda as suas iniciativas de política econômica em convergência com a mofada cartilha do Consenso de Washington, imprimindo a radicalização das privatizações, da abertura comercial e do ataque aos direitos e às condições de vida dos trabalhadores e dos setores intermediários da sociedade. Norteia-se pela subjugação do país às diretrizes ingerencistas dos EUA na América Latina.

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Chávez, por sua vez, corresponde a um símbolo da integração latino-americana. Inspirado no libertador Simón Bolívar, preconizava a construção de laços estreitos entre os países da região, visando a defesa dos nossos recursos naturais, a criação de cadeias produtivas e mercados consumidores integrados, assim como uma agenda regional que impulsionasse a defesa latino-americana contra o imperialismo ianque. O ódio conservador a que é submetida a experiência chavobolivariana da Venezuela, até hoje mantida com Nicolás Maduro, em boa medida gira em torno da ousadia incipiente de Hugo Chávez em se contrapor aos geointeresses dos EUA.

A defesa do princípio da autodeterminação dos povos é um item básico do chavismo. O mesmo seguramente não se pode dizer de Bolsonaro, que desqualificou presidentes eleitos na região, aqueles opostos às suas crenças reacionárias. Igualmente participou de medidas de desestabilização de governos, como o da Venezuela e o de Evo Morales na Bolívia, do qual fez parte direta no exitoso arranjo golpista, em 2019. Sempre em obediência e em relação carnal com os EUA.

Para mobilizar a gramática política dos anos 1950-60, Bolsonaro é um verdadeiro entreguista: uma liderança que deprecia a própria capacidade do país e do povo e entende que o destino nacional está entrecruzado e subordinado à sorte dos EUA. Intensifica a entrega da exploração do patrimônio e dos recursos nacionais para o capital estrangeiro (descapitalizando a economia do país, via remessas de lucros, pagamentos de royalties etc.). Ademais, apresenta uma percepção “democrática” bastante peculiar, na qual os trabalhadores e faixas intelectualizadas da pequena burguesia (ou seja, a maioria da população) são concebidos como sujeitos ilegítimos para intervir de maneira efetiva no processo político. No dia do trabalhador a sua mensagem é para saudar efusivamente o empresariado!

Enquanto isso, Chávez apoiou-se na maioria da sua gente, tecendo esforços de mobilização, organização e politização das massas, empregando uma concepção de democracia que se sustenta na dilatação da capacidade participativa popular nos processos decisórios, entre outros, por intermédio de referendos, plebiscitos etc. Às tradicionais instituições da democracia representativa somam-se práticas e institucionalidades de uma democracia direta e participativa. Além disso, direitos trabalhistas foram ampliados, bem como demais direitos coletivos, como o acesso à moradia e à saúde pública, a erradicação do analfabetismo etc.

Como nacionalista que foi, Hugo Chávez lutou para nacionalizar a cadeia produtiva do petróleo, a mais importante fonte de receita da Venezuela. Controlar os dividendos do ouro negro significava capitalizar e aumentar a acumulação do país, trazendo o poder de decisão econômica para dentro da nação. Para operar com a gramática do grande economista Samir Amin, tratava-se de uma escolha direcionada para impulsionar um “desenvolvimento autocentrado”, na contramão do pífio e colonizado “lumpen-desenvolvimento” perseguido por Bolsonaro – cuja ênfase é conferida ao setor primário-exportador e à atuação do capital forâneo no mercado brasileiro. De resto, a estatização do petróleo foi uma iniciativa que tinha em vista dispor o Estado venezuelano de recursos destinados aos investimentos sociais e à tentativa de diversificar as atividades do aparelho produtivo nacional.

Em outras palavras, Chávez interpretava o seu país enquanto uma nação de cidadãos que deveria ser resgatada das garras das oligarquias e burguesias locais e estrangeiras. Almejava romper com as cadeias do imperialismo que asfixiavam a Venezuela. Por sua vez, Bolsonaro enxerga o Brasil como território que deve ser hegemonizado pela exploração estadunidense e pela lumpemburguesia doméstica, bem como a maioria dos brasileiros somente enquanto força de trabalho (em parte desprezível, descartável, em parte superexplorada). Para Bolsonaro e seus aliados, nosso país é geografia. Não é cultura. Não é, nem terá história. Não é sujeito da cena internacional. É objeto.

A Venezuela é submetida a diversas agressões patrocinadas pelo governo dos EUA, intensificadas após a morte de Chávez. A adoção de sanções extraterritoriais é recorrente, de sorte a causar danos e dor na população, com o intuito de erodir a credibilidade do governo Maduro. As sanções visam proibir empresas, de qualquer país, de fazerem negócios nos EUA, caso firmem acordos ou realizem negócios na Venezuela. Uma violação flagrante do direito internacional. Essas vicissitudes, é claro, sequer são mencionadas pela linha editorial dos veículos massivos de comunicação. Aí importa somente demonizar o chavismo.

O direito básico ao comércio internacional é negado pelos EUA, provocando escassez e inúmeros problemas para a população do país vizinho. O bloqueio do patrimônio do governo venezuelano em bancos estrangeiros também tem sido feito, escanteando o postulado liberal do direito à propriedade. País da periferia capitalista que busca se rebelar às ordens ditadas pelos ianques é submetido a várias agressões, que ofendem premissas elementares do imaginário e da teoria liberal, tais como a liberdade de comércio. Em todo caso, entre a teoria e a realidade liberal é comum ocorrerem mil discrepâncias.

Bobagens que circulam aqui e acolá a respeito do chavismo merecem críticas criteriosas e contundentes, em particular quando oriundas da seara liberal. Não é o liberalismo um corpo de propostas e ideias capaz de oferecer respostas mínimas à nossa dependência tecnológica profunda, à crescente drenagem de riquezas para o exterior, à miséria galopante, à retração acentuada do mercado interno, ao desemprego e ao subemprego, que tanto afligem o Povo Brasileiro.

Na contramão, são experiências políticas de natureza anti-imperialista, nacionalista e socializante, levadas a cabo por Chávez e Maduro, tão vilipendiadas e sujeitas a abordagens distorcidas e infames no Brasil, que realmente demandam a nossa atenção. Isso de modo a nos instrumentalizar frente aos enormes desafios do neocolonialismo duramente aplicado pela extrema-direita brasileira.

Roberto Bitencourt da Silva – doutor em História (UFF), professor da Faeterj-Petrópolis/FAETEC e da SME-Rio e pesquisador do GPETED/UFF.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

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