O apito da panela de pressão, por Paulo Kliass

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Frente ao atual quadro, é compreensível a indagação de quem não entende a passividade da maioria. Até quando aguardar para que ouçamos o apito da panela?

na Carta Maior

O apito da panela de pressão

por Paulo Kliass

O primeiro semestre deste ano marca o quadragésimo aniversário de uma importante etapa do movimento de luta contra a ditadura militar, que havia se instalado em nosso País em 1º de abril de 1964. Entre maio e junho de 1977 os estudantes foram às ruas em várias capitais denunciando prisões arbitrárias, a repressão generalizada e também as questões específicas da pauta na área da educação. As primeiras manifestações ocorreram na capital paulista. 

Parte dessa mobilização, até então inédita desde as passeatas de 1968, foi registrada na forma de um importante documentário realizado por estudantes da USP no calor dos acontecimentos. O filme recebeu o título de “O apito da panela de pressão” e foi divulgado pelo Brasil afora, apesar de proibido pelo governo do General Geisel. O exemplo vindo das imagens registradas em São Paulo operou como catalisador do sentimento generalizado de repúdio ao regime, mostrando que havia espaço para ampliar as lutas. 
À época, o acúmulo de medidas impopulares patrocinadas pelos militares e a piora nas condições de vida da maioria da população contribuíram para o isolamento ainda maior do regime. As manifestações dos estudantes soavam como o apito de uma panela no fogo, anunciando de forma ampla que a pressão e a temperatura haviam atingido um patamar próximo do limite do suportável.
 
Temperatura e pressão no limite do suportável.
A exemplo do que ocorria naquele período, hoje em dia muita gente se pergunta o que estaria acontecendo nas bases de nossa sociedade nos tempos atuais. Não haveria motivos suficientes para o surgimento de um amplo e sólido movimento que oferecesse uma alternativa política e institucional a essa crise que se arrasta há tanto tempo? Desde os primeiros passos que culminaram no êxito do golpeachment o Brasil profundo parece que assiste passivamente – impávido colosso? – ao desenrolar da conjuntura. A direção do processo permanece em mãos das classes dominantes, em especial do sistema financeiro e dos meios de comunicação.
 
Ao que tudo indica, estariam presentes por agora tanto as chamadas condições objetivas quanto as subjetivas para que o governo Temer fosse destituído e novas eleições fossem convocadas. Essas seriam as diretivas consignadas em #ForaTemer e #DiretasJá espalhadas pelo País afora. As condições objetivas se expressam na multiplicidade de aspectos negativos derivados da política econômica do austericídio e que afetam a piora evidente das condições de vida e trabalho da grande maioria da população. As condições subjetivas abundam na sucessão de escândalos políticos que são revelados a cada dia, envolvendo o Presidente e sua equipe mais próxima, além da profunda crise moral e institucional que se generaliza.
 
Ora, mas então o que estaria faltando na conjuntura atual para que o apito da panela de pressão passe a revelar de forma estrondosa e ruidosa que o limite do aceitável foi mesmo atingido?
 
Desemprego, falência, fome e que mais?
Os níveis de desemprego não param de crescer a cada nova pesquisa realizada por todas as entidades que se ocupam do tema. De acordo com os últimos dados do IBGE, havia 14,2 milhões de desempregados em todo o País. Esse levantamento, além da gravidade dos números, tende a subestimar a realidade das áreas metropolitanas, uma vez que a informalidade terminou por incorporar parte dos demitidos e a metodologia da pesquisa ignora os obstáculos para procurar novo emprego em quadro de tamanhas dificuldades. Tanto que os dados do DIEESE apontam para uma taxa de desemprego próxima 19% na região metropolitana de São Paulo.
 
A atividade econômica de forma geral também aponta para a maior recessão de nossa História. Já corremos o risco de nos aproximarmos de um terceiro ano consecutivo de retração do PIB, que já recuou 3,8% em 2015 e 3,6% em 2016. Com isso, aprofundou-se de maneira ainda mais trágica o processo de desindustrialização de nosso País, com a perda crescente de participação da atividade manufatureira no produto interno. Com isso, observa-se um aumento da dependência de nosso parque econômico à importação de bens industrializados de todo tipo. Desde os itens de consumo de massa de baixíssimos preços até os produtos mais sofisticados de alto valor agregado.
 
Recessão proporciona prejuízos também para o capital e não apenas para os trabalhadores. As empresas, em especial de pequeno e médio porte, não resistem à queda da demanda e aos elevados custos financeiros. Com isso, as estatísticas oferecem dados impressionantes a respeito de pedidos de falência e de recuperação judicial. Em 2015, quando os sinais da crise chegaram com maior força, houve um crescimento de 31% nesse índice. Em 2016, os pedidos de recuperação judicial de empresas haviam crescido 45% em relação ao ano anterior.
 
Os números relativos a vendas no comércio também reforçam o mesmo quadro desesperador. O faturamento geral das empresas do setor realizado ao longo de 2016 apontou uma queda de 6,2% em relação ao ano anterior, conferindo ao ano passado a marca de pior marca desde o início da série em 2001. Essa tendência era mesmo de se esperar, uma vez que a recessão induzida pelo cardápio da ortodoxia diminui a capacidade de consumo das famílias, dos indivíduos e das empresas.

A panela de pressão ainda não apitou?

Outro ponto sensível nesse modelito imposto pelo financismo é a queda de receitas do próprio Estado. Assim, a capacidade arrecadatória fica comprometida e a sanha pela austeridade fiscal a qualquer custo faz das políticas sociais uma verdadeira terra arrasada. E dá-lhe Emenda Constitucional nº 95/2016, com a imposição de um teto de gastos públicos por longos 20 anos. E dá-lhe Reforma Trabalhista com retirada de direitos e volta ao início do século XX. E dá-lhe Reforma da Previdência com a destruição do regime de seguridade social público e universal.
 
Além disso, as demais dotações orçamentárias para saúde, educação, assistência social, investimentos, pessoal e outros ficam também reduzidas. Passam a explodir crises em hospitais, escolas, universidades, ao ponto de redução ou eliminação de programas como emissão de passaportes, financiamento estudantil, Programa Minha Casa Minha Vida, acesso ao Bolsa Família e tantos outros. O retorno aos patamares anteriores de desigualdade social e econômica se combina ao aumento dos índices de pobreza e precariedade social.
 
A barbaridade é tamanha que as entidades encarregadas de acompanhar o comportamento da fome e da miséria já alertam para os riscos do Brasil voltar a frequentar o Mapa da Fome no Mundo elaborado pela ONU. Isso porque são grandes as possibilidades de que mais de 5% de nossa população esteja passando por graves necessidades e não consiga se alimentar com o mínimo necessário.
 
Frente a um quadro clamoroso como esse, é mais do que compreensível a indagação de quem não entende a passividade da maioria da população. Até quando será necessário aguardar para que ouçamos o apito da panela no fogão? Qual o limite do (in)suportável em termos de aumento de temperatura e de pressão para evitar os estragos irrecuperáveis em termos de nosso tecido social?
 
Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.
 

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

10 Comentários

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  1. Infelizmente o povo

    Infelizmente o povo brasileiro é despolitizado. Só participa da política quando vai votar. Mesmo assim reclamando que é obrigatório. 

    Pior, agora, depois de tantos anos de criminalização da política, nutre por ela mais que indiferença, ojeriza. Não adianta um candidato popular e progressista como o Lula ser favorito absoluto, isso se explica porque todos sabem que na sua época a vida era melhor.

    Na situação atual votar não basta, mesmo porque não se sabe se haverá 2018, ou se Lula ou outro candidato viável de esquerda poderá disputar. Só que o povão mesmo não canaliza sua indignação para ações políticas, não tem essa cultura. Coloca nas mãos de Deus e paciência. 

    1. E só se fala no voto para

      E só se fala no voto para presidente, sendo que o voto para o legislativo é tão importante quanto este. Foi graças à eleição destes deputados e senadores que o golpe parlamentar aconteceu e que todas estas barbaridades estão sendo cometidas.

  2. A panela não apita porque a

    A panela não apita porque a mídia mantém o controle do fogo. Quando quiseram, fizeram a panela apitar “impeaaachment!”. Simples assim. Um jornaleco editado pelo grupo Band e distribuído de graça nos cruzamentos de São Paulo ainda trata, na capa, de maneira jocosa as senadoras que tentaram resistir ontem. E esta, junto com as manchetes de jornais expostos em bancas e o jornal nacional, é a única fonte de informação para muita gente. Em 1977, o poder da mídia era um, porque muita gente nasceu e cresceu antes do golpe de 64, também antes que a globo se tornasse o que se tornou e se formasse este grande cartel midiático. A mídia expandiu-se e, hoje em dia, muita gente viveu a vida inteira acreditando na realidade inventada por ela.

    1. Deixaram a defesa dos
      Deixaram a defesa dos direitos de milhões de trabalhadores nas costas de quatro mulheres, que se expuseram bravamente, quanto aos passivos trabalhadores que não entenderam o dia fatídico só posso entender que merecem o resultado final, como.disse uma senadora do sul, se não fizeram greve é por que concordam com as reformas.

  3. A passividade histórica da

    A passividade histórica da maioria absoluta do povo brasileiro só vai terminar quando houver falta de comida nas panelas. Estamos chegando lá. O povo não tem liderança pra mostrar o caminho. A era PTista amansou os sindicatos.

  4. mas continuamos pautados pela midia de mercado

    A mídia deforma a opinião pública e instala nas mentes o discurso do mercado. Mesmo os que se informam por meios alternativos acabam por se pautarem pelo mesmo discurso, ainda que discordando das opções de política econômica, mas passando longe de contrapor o discurso.

    Os grandes momentos de reação popular precisaram de um catalizador. A luta das diretas foi possível porque os governos militares, continuados por civis pouco empenhados, fecharam questão contra o voto popular. O objetivo ficou muito visível e fácil de comparar com o que existia nos países mais avançados.

    O segredo é buscar o objetivo mais urgente. Ele está na informação. Já temos blogs e redes alternativas com engajamento responsável e compromisso democrático. Mas falta-nos repercussão.

    Da mesma forma que, no período ditatorial, foi fácil perceber que eramos diferentes do ideal por não podermos votar. Nossa grande chance está no discurso da polítcia econômica. Os porta vozes do mercado estão sozinhos no palco. Dizem que o governo popular tem que cair para aumentar a confiança do investidor. O governo cai e a desconfiança aumenta. Pedem corte de gasto para reduzir a inflação pela contração da demanda. O corte vem, a demanda cai, mas a oferta, dependente da confiança, cai mais ainda e está criado maior excesso de demanda (paradoxo de Ignacio Rangel). O deficit fiscal que deveria ser eliminado com o corte de gastos aumenta, já que a arrecadação cai mais que o gasto. A dívida que deveria estabilizar aumenta pelo deficit maior. O juro real, que deveria cair com a dívida estável, aumenta pois o risco do devedor não dá mostra de saúde.

    O governo petista multiplicou por -1 as medidas e obteve os resultado a favor do país. Até testes de hipoteses já temos feitos. Mas o que falta?

    Falta acusarmos os mercadistas de exigirem medidas que eles sabem que produzirão resultados ao revés do que preveem. O discurso do mercado tem eco na classe media que acha que o governo gasta mal o imposto que ela pensa ser a única contribuinte. O que querem é um governo sem recurso para lhes cobrar retorno dos priviléios que ostentam. Não querem estado mínimo. Querem pobreza máxima para a maioria, pois sabem que só se sentirão em boa situação se a maioria estiver muito pior. Querem que a maioria se venda barato para que suas rendas médias lhes dê sensação de vida de nababos.

    Precisamos criar um “não é bem isto” após cada discurso do mercado e explicar qual é a mentira, usando os exemplos que temos. Precisamos invadir o palco. Dizer que querem uma elite bem empregada tutelando um povo teleguiado e depauperado. Mostrar que isto não tem nada de evoluído, que não difere da Idade Media.

  5. Passividade? Ou alienação e despolitização?

    Acordei deprimida, pensando nas consequências desastrosas dessas “reformas” para o povo brasileiro. Meu marido, irritado, perguntou por que diabos os trabalhadores não estavam protestando nas ruas. Respondi: aposto que 90 por cento ou mais nem faz ideia do que está sendo votado, menos ainda das consequências. Ele duvidou. Propus: “Vamos fazer um teste. Pergunte para o porteiro do prédio e para a nossa empregada doméstica: você sabe que alterações nas leis trabalhistas passaram ontem no Congresso?” Ele fez isso. Resultado: NENHUM DOS DOIS FAZ A MÍNIMA IDEIA.
    Vocês aí, que deploram a “passividade” do povo brasileiro: façam o teste também. E postem, aqui, os resultados.
    Será esclarecedor.

    1. Da minha parte continuo

      Da minha parte continuo achando merecido, 

       

      também não é totalmente correto jogar nas costas dos trabalhadores mais humildes porque temos setores mais organizados, politizados e preparados para o debate e nem esses apareceram para reclamar, não à toa a dondoca das manhãs da globo está há quase um século com uma gincana frívola de comidinhas, logo ela, musa do cansei, do colar dos tomates, do luto sem vergonha após uma derrota eleitoral, se fazendo de morta…….. 

  6. falta o mais elementar, um

    falta o mais elementar, um partido que mobilize a sociedadesem esse partido, pode faltar comida, liberdade que o povo continua passivo como está..

     

  7. Vem aí o Apocalipse…

    Permissão de terceirização irrestrita, sucateamento do Estado (adeus concurso público, adeus empregos públicos pagando bons salários), reforma trabalhista, sucateamento dos bancos públicos, política neoliberal financista e “austeridade”,  tudo isso junto me leva a visualizar os seguintes horizontes:
    – precarização generalizada do trabalho, rápido e profundo achatamento da massa salarial;
    – degradação das cidades, favelização acelerada, explosão da violência urbana;
    – desvalorização de patrimônio imóvel das classes médias e altas por seu engolfamento pelas favelas e multidões de miseráveis dormindo pelas ruas;
    – colapso nos serviços públicos devido à queda na arrecadação tributária;
    – falência de pequenos e médios comerciantes por absoluta falta de consumidores para seus bens e serviços;
    – colapso da “indústria de turismo” afetada pelo temor da violência e inestética explosão de miseráveis nas ruas;
    – rápida e dramática proletarização da classe média. Quem antes se irritava com a ascensão dos pobres será punido com seu prórpio descenso à condição de pobre. Bem feito!

     

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