Os arquivos da ditadura retidos pelo governo

Do blog de José Cleves, no Portal LN

A guarda (ad eternum) dos segredos sobre a remessa de equipamentos bélicos para o Oriente Médio pelo regime militar brasileiro foi um coice histórico na imprensa nacional.

José Cleves

Muito boa a reportagem da Folha de S. Paulo sobre os arquivos da ditadura retidos pelo governo. Mandou bem o jornal ao tentar revelar os segredos dos milicos, parte deles ainda enterrado em cova rasa. Aliás, o acordo feito pelos militares com os civis para entregar o poder, em 1985, incluía exatamente a guarda, por um período não definido (ad eternum, imagino), dos arquivos da repressão com os carimbos ultra-secreto, secreto, sigilosos, reservado e confidencial. Documentos que tivessem um destes carimbos deveriam ser mantidos fora do alcance da imprensa para que o segredo do sistema não fosse revelado.

Não foi à toa que os milicos impuseram a eleição indireta do primeiro presidente civil. Eles queriam  ganhar tempo. Se a emenda das Diretas Já, de Dante de Oliveira, tivesse passado no Congresso, os generais de linha dura  não entregariam o poder sem disparo de armas. Tancredo Neves e Ulysses Guimarães sabiam disso, mas estavam convictos de que o processo de transição já havia sido acertado com a tropa do general Ernesto Gaisel, que governou o País (1974-1979) e iniciou o processo de abertura política.

O presidente João Baptista de Figueiredo (1980-1984), portanto, teria que entregar a faixa na marra, é o que pensavam. Eu não tinha certeza absoluta disso.

 Vivi intensamente esse período em Brasília, a partir de depoimentos segredados de homens que faziam parte da comunidade mantida pelo Serviço Nacional de Informação (SNI), então chefiado pelo general Otávio de Aguiar  Medeiros, que pretendia ser o candidato dos milicos na eleição indireta. Ou seja, o plano dos generais previa que as 5 divisas do Exército continuariam no poder por mais um mandato. O suficiente para destruírem todos os arquivos e redigirem uma nova Constituição ao modo deles (se é que haveria outra Constituição, talvez continuássemos com a mesma, modificada para pior).

A candidatura de Otávio de Medeiros somente não foi adiante por causa do assassinato do jornalista Alexandre Von Baumgarten, ocorrido em 1982. Baumgarten, a mulher e um barqueiro foram seqüestrados na Praça XV, no Rio de Janeiro, e executados em alto mar.  O crime envolvia o general Newton Cruz, do Comando Militar do Planalto e braço direito de Medeiros. Foi Cruz que expulsou Baumgarten da comunidade de informações do SNI, em janeiro de 1981, por suspeita de trapaça. Baumgarten adquiriu o título da antiga revista O Cruzeiro (1928-1975), anos após o seu fechamento, e passou a utilizar verbas do governo para divulgar o nome de Medeiros, com vistas à sucessão de Figueiredo, em eleição garantida pelas Forças Armadas como indiretas.

Os homens de Cruz, com a ajuda do dono de um jornal também a serviço dos milicos, fizeram campana na gráfica da revista e descobriram, através das bobinas consumidas, que o jornalista estava mentindo para o SNI sobre a tiragem do semanário e o expulsaram do sistema. Magoado, Baumgarten fez um dossiê que incluía a verdade sobre o atentado do Rio Centro e várias outras informações secretas, muitas delas não reveladas até hoje porque parte do dossiê desapareceu.

Urânio para o Oriente Médio

Um elemento de dentro do SNI informou-me, com extrema segurança, parte do dossiê não revelado de Baumgarten sobre a remessa de urânio para o Iraque, com a finalidade de reaquecer os reatores nucleares do presidente Saddam Hussein, que assumiu a presidência de seu país de 1979, com apoio dos Estados Unidos que, ironicamente, o arrancou do poder em 2003 (por causa do atentado às torres gêmeas em 11 de setembro de 2001). Condenado à morte pela justiça iraquiana, Saddam foi enforcado em 2006, pelas atrocidades praticadas pelo seu governo.

Aliás, boa parte dessas informações sobre a remessa de armas e material estratégico (urânio, principalmente) pelo regime militar brasileiro ao Oriente Médio nas décadas de 70 e início de 80, é revelada  no meu livro Distrito Zero (Maza Edições: 2000). Parte do material extraído do dossiê de Baumgarten e a outra metade fornecida pelo informante que tinha trânsito livre no Exército. Muitos desses segredos que obtive à boca-pequena continuam até hoje escondidos em alguma parte do governo, por conta dessa dificuldade anômala que o Brasil tem para abrir a caixa preta da repressão.

A verdade é que os organismos internacionais estavam, no final da década de 70 e início de 80, de olho nesse comércio de armas entre Brasil e alguns países do Oriente Médio. Primeiro, foi o contrato assinado em 1981 entre a empresa Engesa, de São José dos Campos-SP, e o governo iraquiano, para o fornecimento de veículos blindados às Forças Armadas daquele País. O contrato, no valor de US$ 250 milhões, previa o fornecimento de tanques Urutu, equipados com canhões 90mm, e do carro de transporte de tropas Jararaca, conforme revelou em 1982 a revista francesa Defense et Armement.

Segredos já passaram por cinco presidentes

Constava ainda, no dossiê de Baumgarten, a venda ilegal de urânio extraído do Brasil para reabastecer os reatores nucleares iraquianos. Diziam os documentos que em 1982 o serviço de inteligência francês descobriu que o Brasil  vinha exportando para a Líbia aviões de patrulha-marítima, várias baterias do sistema Astros-II e lançadores de foguetes de saturação, bombas antiaéreas  e configurações modernas de blindados Cascavel EE-9. O fornecimento de armas a Trípoli somente foi interrompido com a apreensão de aviões líbios em Pernambuco, não me lembro bem,  levando equipamentos bélicos para os sandinistas da Nicarágua.

Para reforçar a veracidade dessas informações sobre a remessa de equipamentos bélicos pelos militares brasileiros ao Oriente Médio, tive acesso a documentos nunca revelados antes dando conta de que parte do urânio enviado ao exterior era retirado de uma mina em Olhos D´Agua, na cidade de Nova Lima, na Grande Belo Horizonte (onde tenho hoje um jornal), e transportado para os Estados Unidos pelos empresários Wilson Gosling e Paulo Leite. Certa feita, um desses carregamentos foi apreendidos por ordem do então coronel Otávio de Medeiros, que comandava o 11º Regimento de infantaria da 4ª Divisão de Exército, em Belo Horizonte, e despejado no pátio “para verificação”. Como ninguém no quartel sabia distinguir o que continha aquele “monte de areia”, o material foi jogado fora e tudo ficou por isso mesmo.

A verdade  é que a imprensa levou um coice mortal dos milicos  (e dos governos civis que vieram depois) com relação aos documentos da ditadura. O segredo já passou por cinco presidentes (José Sarney, Collor de Melo,  Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso (dois mandatos) e Lula (dois mandatos). Espero que de Dilma Rousseff não passará, ainda que tardiamente, porque os crimes praticados pela repressão durante o regime militar já prescreveram, mas o povo tem o direito de saber toda a verdade sobre os guardados da ditadura.

A Comissão da Verdade pode muito bem requisitar dos órgãos governamentais o que sobrou no fundo da gaveta dos milicos, já que a maior parte (e a mais importante) desses escritos foi destruída ou extraviada e/ou levado para a casa de algum torturador obcecado pelo seu conteúdo mórbido.

Luis Nassif

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