Reeleição de FHC e impeachment de Dilma: dois golpes em paralelo, por Tiago de Castilho Soares

Reeleição de FHC e impeachment de Dilma: dois golpes em paralelo

Por Tiago de Castilho Soares

O último golpe parlamentar na história política brasileira ocorreu em 1997 com a aprovação da emenda constitucional que possibilitou a reeleição do presidente Fernando Henrique Cardoso. O presidente tucano foi eleito em 1994 para um mandato único de cinco anos. Assim que assumiu a presidência, iniciou intensa articulação para a reforma constitucional que viabilizaria sua própria reeleição! O Presidente da República, principal interessado na alteração constitucional, utilizou as ferramentas de governabilidade – liberação de verbas, aprovação de leis e oferecimento de cargos – para negociar com o legislativo a ampliação de seu próprio mandato.

Os golpes parlamentares, apoiados pela mídia tradicional, costumam usar expedientes institucionais, cobertos de formalidades, para abreviar o mandato de seus opositores ou ampliar o mandato de seus aliados. Se inevitável o respeito ao sufrágio, a questão é de como manipulá-lo. Quando, porém, as circunstâncias permitem evitá-lo, seja pelo desvirtuamento das regras ou pela modificação de dispositivos legais, esta será a solução adotada. Os golpes parlamentares nas democracias modernas são assim um golpe na legitimidade resgatada do sufrágio universal, objetivando a consecução dos interesses das elites.

A repercussão positiva do Plano Real, realçada pelo apoio midiático nas eleições de 1994, foi o capital político que haveria de justificar a necessidade de manutenção no poder do “salvador da pátria” Fernando Henrique Cardoso. Esse foi o roteiro preparado para lidar com a ameaça de eleição de Lula e com as dissidências do PSDB, que não permitiam a apresentação de um sucessor natural para o próximo pleito, Mario Covas ou José Serra.

A modificação das regras depois de iniciado o jogo exigiu a concentração de todas as forças do governo recém formado. Era necessário obter apoio e conter as pretensões eleitorais dos aliados naturais, PFL, PTB e PSDB, partidos que compuseram a coligação, e do PMDB e PPB, partidos fortes da casa. Assim, foram decisivos os acordos e transações realizados com Antônio Carlos Magalhães, PFL, e Paulo Maluf, PPB. A negociação com o PMDB, sem desdenhar de reconhecidos caciques, Orestes Quércia, Itamar Franco e José Sarney, travou-se preponderantemente com Michel Temer.

Antônio Carlos Magalhães contaria com o apoio de Fernando Henrique Cardoso para eleger-se presidente do Senado em 1997. A rejeição contundente de Maluf à tese de reeleição, logo quando aventada, rendeu bastante ao PPB. Para mudar de posição, Paulo Maluf contou com a neutralidade de FHC nas eleições em São Paulo: a municipal de 1996, quando Celso Pita concorria com José Serra, e a estadual de 1998, disputada entre Maluf e Mário Covas. ACM e Pita conquistaram as posições almejadas e Maluf não alcançou o governo do estado de SP, embora outdoors o mostrassem abraçado com o presidente tucano.

No golpe da reeleição de FHC, Michel Temer, que foi eleito líder do PMDB da Câmara em 1996, chegou representando o antipessedebismo de Quércia e transformou-se em fiel negociador de Fernando Henrique em troca da presidência da câmara em 1997. Soube dominar o baixo clero, característico da estrutura desagregada do PMDB, cumprindo a promessa de triplicar os gastos de gabinetes de deputados logo após assumir a presidência da casa.

O golpe da reeleição contaria com os possíveis candidatos da esfera estadual e municipal. Com o apoio de eminentes, como Mário Covas e Marcello Alencar nos estados ou Luiz Paulo Conde e Celso Pitta, recém eleitos nos municípios, fortalecido o continuísmo dos governadores e prefeitos representantes de poderes locais, a reeleição agregaria interesses do centro e da periferia. Deu-se porém tratamento diferenciado à reeleição presidencial quando o Congresso conseguiu dispensar o presidente tucano da desincompatibilização do cargo, exigência que continuava para os membros dos executivos estaduais e municipais.

Além das composições políticas estabelecidas no campo público, apesar de almejarem interesses particulares, surgiu logo em maio de 1997 a gravação de Ronivon Santiago (PFL-AC), que revelava a compra de votos para a reeleição pelo valor de duzentos mil reais, capitaneada pelo Ministro das Comunicações, principal articulador político do governo, Sérgio Motta.

As circunstâncias todas ilustram a elaboração de um golpe de estado, mesmo sem os característicos da surpresa e do elemento militar. Feriu-se a tradição presidencialista brasileira, que nunca havia admitido a reeleição; o direito fundamental dos cidadãos de ireelegibilidade dos chefes do executivo; os princípios máximos da impessoalidade e o não casuísmo das leis.

 Somente com apoio dos meios de comunicação pôde efetivar-se o golpe da reeleição. Era necessário que a imagem de FHC como o único candidato capaz de enfrentar os problemas nacionais se sobrepusesse ao princípio de que não se pode modificar a regra do jogo depois de já iniciado. A noção de que as regras somente poderiam valer para o pleito subsequente foi sobreposta pela imagem midiática do salvador da pátria.

O golpe do impeachment de 2016 também depende do apoio midiático, porém, ao contrário do golpe da reeleição que propalava virtudes, o impeachment de Dilma articula denúncias de vícios. Corrupção, crimes, organizações criminosas e incompetência administrativa constituem o núcleo da propaganda que pretende a retomada da direção do governo federal pelo PSDB, DEM (sucessor do PFL) e PMDB.
Obviamente que a expulsão do PT do governo por supostos vícios é golpe mais violento do que a manutenção do PSDB no poder por alegadas virtudes. Não pode porém ser essa a razão única do acirramento das posições sentido na esfera pública.

Pode-se afirmar que o amplo acesso da população às redes sociais abriu espaço público a concorrer com os meios tradicionais de comunicação. No golpe da reeleição, a imprensa escrita era o principal espaço de confronto de ideias e posições políticas. Ainda que muitas entidades da sociedade civil acusassem a reeleição de golpe, como fez a seccional paulista da OAB, foi a Folha de São Paulo com Élio Gaspari, Jânio de Freitas e Carlos Heitor Cony o principal veículo a denunciar o golpe de estado que se operava. Mesmo no campo parlamentar eram tímidas as denúncias de golpe, menos em respeito ao tradicional conselho de que alardear o golpismo faz recrudescer as forças golpistas, e mais para não quedarem os parlamentares isolados em denuncismo inócuo.

Assim, é expressivo que as vozes discordantes da reeleição no parlamento acusassem a reeleição de golpe fazendo referência aos artigos dos publicistas da Folha de São Paulo. O caso emblemático é a citação por José Genoíno e Ivan Valente do artigo de Élio Gaspari intitulado “A retórica da reeleição se tornou terrorista, imperial e golpista”, no dia da primeira votação da emenda da reeleição, em 27 de janeiro de 1997.

O grupo citado de jornalistas da Folha de São Paulo encampou as denúncias de golpe, que são expressas nos títulos dos artigos: “O golpe final” e “Os aproveitadores”, por Jânio de Freitas, respectivamente de 6 de julho de 1997 e 5 de setembro de 1997; “O golpe e o crime” e “O golpe obsceno”, de Carlos Heitor Cony em 12 de janeiro e 25 de fevereiro de 1997; o citado “A retórica da reeleição se tornou terrorista, imperial e golpista”, “Cinco vinhetas do balcão de FFHH”e “A maioridade de d. Pedro 2° saiu em 1840, de FFHH, em 1997”, por Élio Gaspari, em 26 e 29 de janeiro e 2 de fevereiro de 1997.

O poder judiciário no golpe da reeleição foi chamado para legitimar os fatos políticos. O julgamento pelo STF do Mandado de Segurança 22.864-4, que pretendia impedir a votação da Emenda no Senado sob o fundamento de estar comprovada a compra de votos de parlamentares para aprovação da reeleição, e a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.805-2, que pretendia dever haver desincompatibilização do Presidente da República, tal como ocorria em relação a prefeitos e governadores para a reeleição; ambas as ações, julgadas improcedentes, serviram apenas para convalidar o arranjo político estabelecido, postura, aliás, que não pode surpreender o sociólogo ou o historiador.

Esse agora é o mesmo papel cumprido pelo STF. Entretanto, a opinião pública, favorecida pelas redes sociais, evidencia já com bastante precisão a inconsistência de suas narrativas jurídicas; desconstrói as pretensões de ministros, como Luís Roberto Barroso, serem a expressão de um constitucionalismo democrático; e denuncia os interesses profundamente corporativos do judiciário com sua proposta, em um momento de fragilidade institucional, de aumento de salários.

Há tradição de golpismo na Nova República. Michel Temer – que foi um Cunha antes de ser o vice Temer: um líder pemedebista hábil em manobrar o baixo clero, inescrupuloso e ambicioso – revela-se hoje a ponte entre os dois golpes.

Tiago Castilho Soares é doutor em Sociologia Política

Redação

8 Comentários

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  1. Pequeno equívoco

    Creio que há um pequeno equívoco de informação no artigo. Quando Fernando Henrique foi eleito pela primeira vez, em 1994, o mandato presidencial já era de quatro anos, e não de cinco. O que também era um casuísmo, pois o encurtamento, à época sem reeleição, já ocorrera por conta da perspectiva de que Lula venceria aquela eleição presidencial direta, o que acabou não se confirmando porque FHC se valeu da popularidade do Plano Real.

  2. “De volta para o futuro”,
    “De volta para o futuro”, parte 171, a invenção do dr. Emmett Brown é roubada/patenteada pela CIA, que resolve fazer testes em países da América Latina no século XXI, cujo projeto mais ambicioso parodia o nome do filme e é convenientemente chamado de Ponte (pênsil) para o futuro,  tem como cenário o maior e mais influente país daquela região e um vilão que arrasta no sobrenome o verbo a ser usado a partir de então… A mocinha, uma jovem e fragilizada operária chamada Democracia, é transportada direto para 1964 – quando sua mãe e familiares  foram brutalmente assassinados –  mas, sabe como é, essa história de viagem no tempo ainda é experimental e na narrativa que mistura pastelão, terror, suspense, nonsense, violência, intriga política, drama e pouquíssima imaginação, o vilão e seus capangas terceirizam a maldade, abrem a caixa de Pandora e o tempo revive, para espanto dos físicos, simultaneamente, todos os anos de 1964 a 1998, quando o mentor do atual esquema de assalto à história, comprou e ocupou, pela última temporada, uma cadeira na liga da injustiça… Trailer desbotado e roteirização on demand diariamente nas bancas de jornais e telas de TV…  Uma co-produção Brazil-EUA, produtoras associadas Casa Branca & Casa Grande com suporte, óbvio, da Senzala, seu braço operacional, apoio técnico e de relações públicas da experiente fabricante de novelas Rede Globandida, patrocínio institucional STF e congressistas americanos…

  3. Eu acrescentaria na lista de

    Eu acrescentaria na lista de golpes recentes a nebulosa morte de Tancredo e a manipulada eleição de Collor.

    1. Eu acrescentaria na lista de…
      Boa tarde.

      E também o avião “sem dono”, do Edu Fields. O fato de [Sá] Fadinha da Floresta não ter ido naquele sinistrado voo acrescenta muito ao receituário golpista.

  4. Em ´97, Escrevi, No O Povo…
    Boa tarde.
    … Seção “Página dos Leitores”, que a Emenda da Reeleição era golpe, como assinala, com felicidade, o articulista; dizia, idem, que seria um tiro no pé dos partidos, pois os enfraqueceria irremediavelmente, enfatizando, por seu turno, o personalismo eleitoral, em detrimento, claro, das bandeiras partidárias autênticas.
    Mas minha tristeza maior foi ver os partidos de esquerda (?) serem eleitos e não soterrarem este cancro institucional. Não brigaram pela restauração da higidez do processo prevento da inditosa reeleição.

  5. Sobre pontes e buracos de vermes
    Versão revista e ampliada.
    Dedicada às recentes vítimas da Síndrome do Vômito Político (não confundir com a Síndrome do Vômito Cíclico).

    Sinopse de um longa-metragem.
    “De quatro para o futuro” (ou De costas para o presente, ainda De frente para o passado, pois é “tudo ao mesmo tempo agora”…), parte 171. A invenção (veículo para viagens no tempo) do dr. Emmett Brownie no final do século XX é patenteada pela CIAmerica e batizada de Emético* Whiten, numa sinistra homenagem, por analogia aos seus novos efeitos. A entidade secreta resolve fazer test-drives em países da América Latina no século XXI, tendo como principal cenário o maior e outrora mais influente país daquela região e como sócio-chofer-vilão, um coadjuvante trapaceiro, que arrasta no sobrenome o verbo a ser usado a partir de então, cujo projeto mais ambicioso, convenientemente chamado de “Ponte (pênsil) para o futuro”, que parodia o nome do filme original que serviu de inspiração**, é a construção, para posterior privatização, de “buracos de minhoca” ***(também conhecidos como “buracos de verme”), para viagens estratégicas no tempo-espaço. A mocinha da História, uma jovem e fragilizada operária chamada Democracia Brasileira da Silva, é transportada diretamente, por um desses buracos, para 1964 – quando sua avó materna, familiares e moradores do vilarejo País dos Sem Futuro, conhecido na vizinhança como Banana’s Republic, foram brutalmente assassinados (fontes oficiais da época alegaram “desaparecimentos voluntários em massa”…) Mas, sabe como é, essa estória de viagem no tempo ainda é experimental e na narrativa que mistura pastelão, terror, suspense, nonsense, violência, intriga política, super-heroínas e vilões canastrões, drama e pouquíssima imaginação, o subvilão e seus capangas terceirizam a maldade, abrem a caixa de Pandora e o Tempo revive, para espanto dos físicos, simultaneamente, em 2016 (ano do centenário da proposta de solução teórica dos referidos “buracos”…), todos os anos entre 1964 e 1998, quando o mentor do atual esquema de assalto à História, comprou e ocupou, pela última temporada, uma cadeira na liga da injustiça…

    Trailer desbotado e roteirização on demand diariamente nas bancas de jornais e telas de TV (com conversor digital de conteúdo à direita)…

    Uma co-produção Brazil-EUA, produtoras associadas Casa Branca & Casa Grande, com suporte de seu histórico braço operacional – parte da Senzala moderna, multirracial, teleguiada e “walking deaf”, apoio técnico e de relações públicas da experiente fabricante de enlatados dramatúrgicos, jornalísticos e golpes políticos transgênicos Globandida S/A (criadora do seriado “Armações Ilimitadas”®, seu melhor produto, sempre em cartaz), com patrocínio das empre$@$ tran$nacionai$ de consultoria:

    S.T.F!® (cuja sigla, homônima de um órgão do poder judiciário local, especula-se, pode significar Sonífera Terra do Fracasso, Somos Todos Fernandos, Sem Tempo para a Felicidade, Soberanias Traídas pela Fraude) e
    Con****-Gressmen (Cunhagressistas, em tradução livre para o idioma propinês) Of Unbelievable Parliaments® (COUP*****), com sede imperial nos USA (sim, há um duplo sentido na última frase!).

    Esta é uma man(obra) de ficção político-cientifica, uma farsa, plágio de realismo Fantástico. Qualquer semelhança com fatos, nomes, pessoas, teorias, situações, siglas, épocas, empresas, instituições e países, reais ou imaginários, é mera coincidência…

    “Tudo o que era sólido desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado, e as pessoas são finalmente forçadas a encarar friamente sua posição social e suas relações mútuas”. Manifesto Comunista, Karl Marx e Friedrich Engels, in https://www.marxists.org/portugues/bensaid/1998/mes/manifesto.htm#r1, em 19/05/2016.

    *Vomitório, do idioma português brasileiro.
    **Filme “De volta para o futuro”, roteiro de Robert Zemeckis e Bob Gale, 1985, EUA.
    *** “Os wormholes foram descobertos matematicamente como soluções das equações de campo, por Flamm, em 1916, poucos meses depois de estas terem sido formuladas por Einstein. Em 1935, Einstein e Rosen, numa tentativa de construir um modelo geométrico de uma partícula elementar, encontraram soluções que representavam o espaço físico por dois planos idênticos, sendo a partícula uma ponte de ligação entre os dois planos. Esta solução posteriormente ficou conhecida como a “Ponte de Einstein-Rosen”

    “Nomeadamente, a matéria que constitui o wormhole tem uma densidade de energia negativa, quando observada por um viajante que atravessa o wormhole a uma velocidade elevada. Diz-se, por vezes, que esta matéria é “exótica”, porque viola algumas condições de energia que são fundamentais para os teoremas clássicos sobre singularidades do espaço-tempo. Aparentemente, as leis da física clássica proíbem as densidades de energia negativas, mas a teoria quântica de campo prevê a sua existência, consequentemente violando algumas destas condições de energia. Este assunto continua a ser alvo de uma investigação muito intensa. Espera-se que uma eventual formulação de uma teoria gravitação quântica venha a resolver este problema.” (Túneis no Espaço-Tempo e Viagens Interestelares Hiper-rápidas.
    Autoria: Francisco Lobo
    NUCLIO – Núcleo Interactivo de Astronomia 2001-2009.
    See more at: http://www.portaldoastronomo.org/tema6.php#sthash.fovrgWZh.dpuf (visitas em 18/05/2016 e 19/05/2016)).
    ****Vigarista, do idioma inglês.
    *****Golpe, do idioma francês.

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