Os números do déficit habitacional

Da Carta Maior

Cidadania: tijolo, cimento e democracia

Saul Leblon

Cerca de 27 milhões de moradias terão que ser construídas no Brasil até 2023.

O déficit atual, sozinho, requer a produção de 7,5 milhões de habitações.

Quase 6% dos brasileiros, mais de 11,5 milhões de pessoas, vivem em favelas – 88% em regiões metropolitanas.

São Paulo, Rio e Belém, juntas, reúnem 44% dos favelados brasileiros.

São escalas que podem mudar o futuro urbano de uma nação.

Como já ocorreu no passado, pelo avesso.

Durante 23 anos, desde a extinção do BNH, em 1986, o Estado brasileiro ignorou o destino habitacioal de famílias com até três salários.

Essa renda é incompatível com o financiamento privado de um imóvel.

Para ser claro: 80% do déficit habitacional ficou fora da agenda econômica por duas décadas e três anos.

A omissão vai além.

O descompromisso coincidiu com o auge de uma diáspora rural de proporções bíblicas.

Com o golpe militar de 1964, a política de modernização conservadora do campo expulsou mais 30 milhões de moradores da área rural para as cidades.

Sem contrapartida públicas, esse deslocamento inédito no mundo ocidental em tão curto espaço de tempo semeou periferias conflagradas nas grandes metrópoles do país.

Não por acaso, os anos 80 marcaram a ascensão dos movimentos de luta por moradia em várias capitais, sobretudo do Sudeste.

Mobilizações de rua e projetos de auto-construção comunitária reagiriam à omissão clamorosa do Estado brasileiro.

Experiências avançadas de auto-gestão em projetos habitacionais estavam em ebulição nesse mesmo momento no Uruguai.

O conjunto influenciaria o surgimento de mutirões semelhantes em São Paulo, com desdobramentos políticos importantes.

A eleição da então petista Luiza Erundina, em 1989, que transformaria os mutirões em política pública, teve forte apoio dessa iniciativa popular nas periferias pobres de São Paulo.

Mais de 10.500 unidades habitacionais foram erguidas na cidade em regime de auto-gestão.

Em 2009, o governo Lula lançou o Minha Casa, Minha Vida.

Com dupla intenção.

Sanar uma omissão inaceitável do Estado; e contrastar o impacto da crise mundial, impulsionando uma atividade intensiva em mão de obra e servida por ampla cadeia industrial.

Em três anos, o programa contratou 1,96 milhão de unidades.

Não é pouco: o BNH, em 23 anos de existência, financiou 4 milhões de habitações.

No ano passado foram entregues 48% das unidades do Minha Casa; e a Presidenta Dilma lançou a segunda etapa do programa.

Agora mais focado.

São 2,4 milhões moradias a serem entregues até 2014 – 60% destinadas à população com renda mensal até três salários, que terá subsídio integral, com valores simbólicos na prestação.

A marcha dos números mostra que a fila andou no mercado habitacional.
O crédito imobiliário representava cerca de 2% do PIB ao final do governo FHC.

Hoje passa de 5%.

E ainda é irrisório: ele supera 70% do PIB em países ricos e é várias vezes maior que fatia brasileira mesmo em economias menores, caso do Chile, por exemplo (20% do PIB).

Ao ritmo de 35% ao ano, o financiamento aqui avança para se transformar na principal modalidade de financiamento do mercado.Maior que a do próprio crédito pessoal.

Com um detalhe estratégico: são os bancos estatais, sobretudo a Caixa Econômica Federal, mas também o Banco do Brasil, que lideram essa arrancada.

Os financiamentos da Caixa cresceram 34% em 2012. Somaram R$ 200 bi.

Os do BB atingiram R$ 11,3 bi. Salto de 75%.

A banca privada detém fatia modesta das operações. Que recuaram ainda mais no ano passado, num erro de cálculo clamoroso, ou no deliberado propósito de sonegar oxigênio ao governo que afrontou, e perdeu, no braço de ferro dos juros.

O fato é que os bancos estatais hoje são donos do mercado.

Portanto, há dinheiro; o setor público tem o controle da engrenagem; as prefeituras municipais formam a contraparte logística do sistema; e a política de investir pesado no déficit de moradia popular é uma decisão consagrada no governo.

O que falta?

Materializar a dimensão histórica e a contrapartida política desse avanço.

Uma casa não termina na fechadura da porta.

Um programa habitacional ambicioso como o atual tem fôlego para ser também um programa de reordenação da cidade, de regeneração do espaço público e redenção da cidadania.

Entregue exclusivamente às forças de mercado o déficit habitacional será sanado sem essa contraparte, criando alojamentos perifpericos, disssociados de cidadania.

Não se trata de negar o gigantesco passo em curso. Tampouco se pretende substituir escalas profissionais pelo voluntariado artesanal.

Os mutirões têm o seu espaço; sua relevância se reafirma em situações específicas.

A lacuna é de ordem mais geral.

A escolha é entre coletivizar o poder sobre uma cidade em mutação ou terceirizar a travessia à lógica imobiliária.

Não é preciso esperar que isso seja arguido e superado na esfera federal.

Gestões municipais progressistas, como a de São Paulo, dispõem de peso, poder de barganha e ferramentas institucionais para fazer a diferença e dar o exemplo de baixo para cima.

O Estatuto da Cidade e o Plano Diretor – ademais do caixa monopolizado dos bancos públicos – oferecem margem de manobra para ações inovadoras.

Sem prejuízo da eficiência – e até com ganho – as decisões sobre o que construir, a estética a se adotar, onde, como e com que ganhos para o conjunto da cidadania podem e devem ser democratizadas numa metrópole com a capital paulista.

O que impede a gestão Haddad, por exemplo, de organizar conferências populares de moradia e urbanização em cada bairro? E a partir de uma síntese municipal alimentar um banco de projetos e metas para negociar com investidores privados e bancos públicos?

Berço dos movimentos por moradia nos anos 80, o anseio de São Paulo por uma cidade solidária, seu rico patrimônio de experiências técnicas e comunitárias, não se perdeu.

Apenas foi menosprezado por prefeitos de fidelidades antagônicas e pelo niilismo de uma mídia que reduziu a metrópole a uma contabilidade de crimes e caos.

Poucas áreas, insista-se, reúnem massa crítica e legitimidade para imprimir um salto histórico na modulação do desenvolvimento brasileiro quanto o tripé da construção da moradia, da cidade e da cidadania.

Não se trata de substituir uma lacuna ostensiva do atual processo econômico por um fetiche: a ‘urbanização redentora’.

Trata-se, ao contrário, de afrontar um déficit político resgatando as dimensões daquilo que Henri Lefevbre denominou o ‘direito à cidade’.

Sua referência, com as devidas ressalvas, é a Comuna de Paris, de 1871.

Nela, Lefebvre enxerga o símbolo da reapropriação do espaço urbano, materializado na marcha festiva dos operários em direção à capital.

Alijados nas periferias, eles reconquistaram o centro físico, estético e político da cidade, despindo seu engessamento burguês para reinventarar a equação da cidadania popular: tijolo, cimento e democracia.

Luis Nassif

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