Depressão tem relação íntima com estresse

Por Ana Paula Morales

Depressão, uma dupla noite

Apesar de ainda haver quem a considere um problema menor, a doença é considerada um flagelo de nossa época, assim como em outras o foram a tuberculose ou a peste bubônica

Por Moysés Floriano Machado-Filho*
15/10/2010

Catulo, o poeta latino, descreve o estado em que, diante da visão de algo impressionantemente triste, alguém diz: “meus olhos toldaram-se de uma dupla noite”. O poeta viveu em Verona, Itália, entre os anos 87 e 57 a.C., presenciando os últimos anos do regime republicano de Roma, período de guerras civis e turbulência social. Naquela época, não seria possível falar em depressão tal como a caracterizamos atualmente. Todavia, a imagem com a qual o poeta descreve o estado em que nos encontramos quando estamos imersos em uma tristeza muito profunda dá uma primeira ideia do que seja a depressão.

No ano passado, ao receber um prêmio de melhor artista do ano, o ator Selton Mello declarou: “Gostaria de agradecer a todos os presentes, à indústria farmacológica, à psicanálise, ao Pramil e ao Rivotril, que fazem a gente ficar assim, bem”. A natureza do agradecimento de Selton ilustra o quanto o consumo de ansiolíticos, medicamentos capazes de reduzir a ansiedade e exercer um efeito calmante, se tornou comum. Em 2008, nas farmácias brasileiras, foram vendidas 14 milhões de caixas desse tipo de droga, que hoje é utilizada para quase tudo, de uma noite sem sono a um término de namoro. O mais estranho de tudo isso é que o Rivotril é um remédio vendido de forma controlada, pois causa dependência química. De acordo com matéria publicada em 2 de junho de 2009 no site do Conselho Regional de Farmácia do Estado de São Paulo (CRF-SP), o Rivotril é o medicamento tarja preta mais vendido no país.

Apesar de ainda haver quem a considere um problema menor, a depressão é considerada um flagelo de nossa época, assim como em outras o foram a tuberculose ou a peste bubônica. O psiquiatra e psicanalista Luis Hornstein, em seu livro As depressões, afetos e humores do viver, diz que o Global Burden Disease (projeto realizado pela Organização Mundial de Saúde – OMS) declara, nas tendências da saúde para 2020, a depressão em segundo lugar entre as causas de DALY (disability-adjusted life years ― anos de vida perdidos por morte prematura ou incapacidade), à frente dos acidentes de trânsito, doenças vasculares cerebrais, doença pulmonar obstrutiva crônica, infecções das vias respiratórias, tuberculose e HIV.

O ritmo veloz em que vivemos tem um papel decisivo no crescimento desse mal, revelando que a depressão tem íntima relação com o estresse. A psicanalista Maria Rita Khel, em entrevista à Revista do Brasil, por ocasião da elaboração de seu livro O tempo e o cão, a atualidade das depressões, lançado no ano passado, explica que suas leituras a levaram a pensar a articulação que o filósofo Walter Benjamin faz entre a perda da experiência e a velocidade da vida moderna. A psicanalista localiza nessa articulação o fenômeno da depressão atual. Desde a Idade Média até o início da modernidade, havia um tipo de sentimento próximo disso, mas que era designado de melancolia. A depressão contemporânea refere-se a uma perda relacionada ao tempo da experiência, da reflexão — todo o tempo da chamada vida subjetiva que está sendo destruído pelo tempo do capitalismo e sua pressão pelo consumo. Segundo a psicanalista, este é o primeiro fator da depressão: a desvalorização do tempo como tempo de vida. Ela lembra, ainda, as palavras do professor e crítico literário Antônio Cândido, para quem “o capitalismo se considera o senhor do tempo. Essa ideia do ‘tempo é dinheiro’ é uma brutalidade. O tempo é o tecido de nossa vida”. Quando negociamos a matéria-prima de nossa vida, ela se desvaloriza. E se a vida se desvaloriza, para quê viver?

No romance As relações perigosas, emblema do Iluminismo, o escritor Choderlos de Laclos faz uma advertência já na abertura, dizendo ao leitor o quão insólito é vermos alguém morrer de tristeza naquela época, principalmente sendo jovem e bonita, como a bela Tourvel, uma das personagens centrais do livro ― que, no filme Ligações perigosas, de Stephen Frears, foi interpretada por Michele Pfeiffer. Diferentemente do destino fatal da personagem no filme, a depressão não mata de uma forma direta na vida real. Não se encontra em nenhum atestado de óbito a depressão como causa mortis. Entretanto, a depressão é um importante fator de comorbidade do mundo ocidental: isso quer dizer que ela não se encontra isolada, recebendo nova coloração pela presença de outros distúrbios em casos fatais.

De acordo com Hornstein, “se no luto o mundo se torna pobre e vazio, nas depressões (em todos os seus tipos e estados), pobre e vazio ficou o ego”. As pessoas deprimidas perdem a energia e o interesse, e daí decorre a dificuldade de concentração, diminuição ou perda de apetite e pensamentos de morte ou suicídio. Hornstein acrescenta que “o humor deprimido e a perda de interesse ou satisfação são os sintomas-chave das depressões. Nelas manifesta-se uma perda de energia que piora o rendimento escolar e profissional e diminui a motivação para realizar projetos. A inibição é seu transtorno fundamental”. Outros comprometimentos também são observáveis, como transtornos de sono, apetite e atividade sexual, que afetam o desempenho do indivíduo nos círculos familiar, social e profissional. Apesar disso, a depressão não deve ser confundida com esses estados de ânimo, que envolvem tristeza ou abatimento, nem com fracassos ou lutos mal elaborados a que todos estamos sujeitos.

Os imperativos da alegria e do gozo inadiáveis

A tônica dominante na sociedade atual pode ser compreendida como o imperativo da festa e do alto-astral, uma vez que estamos sob os ditames da moral da alegria e do gozo sem adiamentos. Mas isso nem sempre foi assim. Até a metade do século XX, a moral da primeira fase do capitalismo era a do adiamento da satisfação, da sobriedade e até mesmo do sacrifício. No entanto, a velocidade do dia a dia imprimiu um novo significado em nossas vidas.

Os imperativos da alegria e do gozo inadiáveis têm um alto custo para o sujeito. Quando surge a dor e a perda, que são processos vitais para o ser humano, muitos aconselham a tomar algum remédio contra a depressão. Em outras palavras, além da falta de vontade de viver, da sensação de que nada vale a pena e de todo o sofrimento que um depressivo experimenta, acrescenta-se agora um sentimento de culpa de se estar deprimido. Eis por que, cada vez mais, torna-se uma questão de ordem não se apresentar deprimido. A solução imediata é fornecida pelo antidepressivo, mas o remédio sozinho não cura nos casos mais graves. A medicação prescrita por um médico psiquiatra auxilia a pessoa a ter ânimo e fazer algumas atividades, e isso deveria incluir a busca por um tratamento terapêutico. O antidepressivo sozinho, sem o acompanhamento de uma terapia, produz um alívio imediato, depois uma indiferença e, finalmente, um vazio. Eis a tradução do custo adicional da solução rápida: a produção de um sujeito esvaziado. Então, se temos, de um lado, a depressão como um sentimento de empobrecimento da vida subjetiva, de outro lado, não se deve adotar como saída radical o esvaziamento das emoções e pensamentos, pois isso também tornará a vida insuportável.

 A terapia psicanalítica

Segundo Maria Rita Khel, a medicação não pode dispensar o trabalho de terapia, que possibilita ao indivíduo a oportunidade de elaboração do que lhe está acontecendo. Trata-se, portanto, de trilhar o caminho oposto ao  empobrecimento da vida psíquica, para que se descubra até mesmo o valor de sua própria tristeza. Os fármacos devem vir como auxílio e não como muletas definitivas. Eles permitem que o sujeito se torne mais ativo, recupere o sono, o apetite e a disposição para trabalhar e estudar, mas jamais deveriam transformá-lo em um autômato, esvaziando-o.

Contudo, é preciso estar disposto ao risco de sentir alguma tristeza, que exige um tempo psíquico diferente. Não nos livramos de toda a nossa tristeza de uma maneira rápida e simples; ela requer outro tipo de atenção e de cuidados. Nesse sentido, em termos de saúde pública, a depressão precisa ser encarada não como epidemia, mas como um sintoma social de nossa época, conforme observa a psicanalista. Quando se encara a depressão como epidemia, é preciso fazer campanha de divulgação da doença, mas isso, no caso de doenças mentais, é perigoso.

Aqui, poder-se-ia falar do custo de um tratamento psicanalítico e do tempo que isso demanda em comparação com a rapidez da “solução” farmacológica. Mas, nesse caso, pode-se trazer como contraponto a reportagem “Uma indústria do bem-estar”, sobre os vinte anos do Prozac, publicada no jornal Valor Econômico em 7 de dezembro de 2007, que mostra o crescimento da venda de antidepressivos  no período, no Brasil, a uma taxa de 22% ao ano, movimentando U$ 320 milhões de dólares. Segundo Maria Rita Khel, a principal estratégia de marketing dos laboratórios está na divulgação da doença, que no caso dos distúrbios mentais, faz-nos identificar com elas. A estratégia de divulgação está correta e deve mesmo ser feita para os casos de moléstias como a aids  e o câncer de mama, contudo, não podemos tomá-la como paradigma para o caso específico das doenças mentais.

Dessa forma, a ideologia do mercado procura levar-nos a não tentar curar nossas dores pela reflexão, não dar o tempo que tanto nossos pequenos como nossos grandes lutos diários precisam, mas tomar um remédio e seguir adiante. Afinal, o mundo do trabalho é cada vez mais competitivo e acelerado, e quanto mais rápido o indivíduo estiver produzindo,  melhor. Não obstante, isso não diz respeito apenas ao trabalho, mas também aos imperativos do consumo. Estes últimos bloqueiam as pessoas na hora de lançar mão do tempo que precisam para se refazer das perdas, da dor e das crises que não podem ser curadas do dia para a noite.

O psiquiatra e psicanalista Plinio Montagna, presidente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, em entrevista ao site do CRF-SP, confirma que a indústria investiu bilhões de dólares na publicidade de laboratórios farmacêuticos, e, por isso, hoje não existe mais o receio de se tomar uma medicação para distúrbios psiquiátricos. Ao contrário, existe até mesmo certa glamorização da medicação, segundo ele. Para o psiquiatra Edson Capone de Moraes Junior, da Universidade Estadual Paulista (UNESP), o modelo médico existente, que separa corpo e mente, contribui para o aumento nas prescrições do Rivotril. “Ao invés de atuar no problema, trata-se a consequência”, diz. Na psiquiatria, o limite que separa a ansiedade natural daquela que deve ser tratada é muito delicado, e, caso não seja avaliado com cuidado, o paciente corre o risco de eliminar emoções importantes para o desenvolvimento da mente. “Certo grau de ansiedade é necessário e inerente à condição humana”, afirma Moraes Junior.

Montagna completa que a ansiedade funciona como propulsora da ação e do pensamento. “É uma espécie de combustível para o funcionamento do ego. Podemos compará-la com a tensão das cordas de um violão. Se estão muito frouxas, não sai música. Se muito estiradas, podem até romper-se e também não haverá música. Num grau de tensão ótimo, aí sim podemos extrair música”, explica. Nesse sentido, é possível perceber as relações da ansiedade natural com a dinâmica da mente humana e as emoções, que estão diretamente relacionadas à criatividade. Eis por que é preciso muita cautela na hora de decidir viver sem nenhuma ansiedade: ninguém gostaria de viver sem criatividade, ela é essencial para o ser humano, e, sem ela, o risco de depressão só aumenta.

*Moysés Floriano Machado-Filho é doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP) e faz parte do CEP – Centro de Estudos Psicanalíticos – http://www.centropsicanalise.com.br

Luis Nassif

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