Estado policialesco e autoritarismo não podem ser reprisados, por Lavenère, Batochio e Britto

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
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Fotos: Marcello Lavenère, Roberto Batochio e Cezar Britto – Reprodução de montagem do Portal Vermelho
 
Jornal GGN – Ex-presidentes do Conselho Federal da OAB, Marcello Lavenère, Roberto Batochio e Cezar Britto criticaram o decreto do presidente Michel Temer de intervenção federal na Segurança Pública do Rio de Janeiro. “Tragédias: alertas, para não repetir” foi o título dado pelos advogados para indicar retrocesso na política do país, em artigo publicado na coluna Opinião do Congresso em Foco.
 
Recuperando uma série de medidas do atual mandatário Michel Temer, também alvo de polêmicas, os ex-presidentes da OAB listam, em tom de ironia, que “não se está a afirmar, ao menos por agora, que o Decreto nº 9.288/18 tem como finalidade reviver os tempos sombrios, que é necessário sempre nominarmos de ditadura civil/militar e foram sepultados pela Constituição Federal de 1988. Tampouco que foram repristinadas as ‘forças ocultas’ apontadas como motivadoras da obscura renúncia do presidente Jânio Quadros”. 
 
“Sequer se está a enunciar qualquer juízo de valor sobre a existência de similitude entre a ruptura constitucional de 1964 e a de 2016, bem assim que o Ato Institucional nº 1/64, ao suspender, parcialmente, a vigência da Constituição de 1946, serviu de inspiração à Ementa Constitucional 95/96 quando “congelou” por vinte anos, a vigência dos artigos 101, 102, 103, 104, 105, 106, 107, 108 e 109 da Constituição de 1988 Também não se está a assoalhar que o irreverente protesto da escola de samba carioca Paraíso do Tuiuti decretou a vindita presidencial, da mesma forma que o histórico discurso do deputado federal Márcio Moreira Alves desencadeara a superveniência do nefasto Ato Institucional nº 5/68”, seguem.
 
Para se chegar à conclusão: “Cabe-nos apenas, também e por ora, externar algumas preocupações sobre os acontecimentos que soam como já antes vividos pela cidadania brasileira e que, por isso mesmo, não merecem e não podem ser reprisados”. 
 
Leia o artigo completo:
 

Tragédias: alertas, para não repetir

No Congresso em Foco

Por Marcello Lavenère, Roberto Batochio e Cezar Britto *

Em debates filosóficos costuma-se afirmar, recorrentemente, que a história é cíclica, fazendo com que os acontecimentos se repitam ao longo da evolução de qualquer  sociedade humana, ainda que modulados em versões e personagens distintos. O filósofo alemão Friedrich Hegel, que tinha perfeita compreensão desta rotina fixada pelo tempo, limita-a ao firmar que “um acontecimento histórico acontece, não uma, mas duas vezes”. O também alemão Karl Marx, ao escrever sobre “O 18 Brumário de Luis Bonaparte”, redefine o conceito de seu compatriota, agora para afirmar que as repetições ocorrem “uma vez como tragédia e outra como farsa”.

Esta introdução tem como escopo uma proposta de reflexão sobre o Decreto nº 9.288, de 16 de fevereiro de 2018, que, determinando a “intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro até 31 de dezembro de 2018” (art. 1º, caput), reintroduz no cenário político brasileiro a figura do Governador-Interventor (art. 2º) e, em consequência, priva o governador eleito das competências e atribuições institucionais contempladas no art. 145 da Constituição do Estado do Rio de Janeiro no que se refere às ações de segurança pública (art. 3º). Com a mesma caneta intervencionista, reinsere a gestão militar em atividade que é de natureza civil por excelência (art. 2º, parágrafo único) e, como no Estado Novo e na ditadura civil-militar, subordina a política estadual ao querer absoluto do poder presidencial (art. 3º, § 1º).

Não se está a afirmar, ao menos por agora, que o Decreto nº 9.288/18 tem como finalidade reviver os tempos sombrios, que é necessário sempre nominarmos de ditadura civil/militar e foram sepultados pela Constituição Federal de 1988; tampouco que foram repristinadas as “forças ocultas” apontadas como motivadoras da obscura renúncia do presidente Jânio Quadros. Sequer se está a enunciar qualquer juízo de valor sobre a existência de similitude entre a ruptura constitucional de 1964 e a de 2016, bem assim que o Ato Institucional nº 1/64, ao suspender, parcialmente, a vigência da Constituição de 1946, serviu de inspiração à Ementa Constitucional 95/96 quando “congelou” por vinte anos, a vigência dos artigos 101, 102, 103, 104, 105, 106, 107, 108 e 109 da Constituição de 1988. Também não se está a assoalhar que o irreverente protesto da escola de samba carioca Paraíso do Tuiuti decretou a vindita presidencial, da mesma forma que o histórico discurso do deputado federal Márcio Moreira Alves desencadeara a superveniência do nefasto Ato Institucional nº 5/68.

Cabe-nos apenas, também e por ora, externar algumas preocupações sobre os acontecimentos que soam como já antes vividos pela cidadania brasileira e que, por isso mesmo, não merecem e não podem ser reprisados. A primeira questão decorre da manifesta inconstitucionalidade do malfadado decreto intervencionista, a saber: a) ausência de fundamentação quanto às reais motivações da precipitada intervenção (art. 93, inciso X); b) ausência de esclarecimento sobre a alteração do status da atuação do aparato militar em ações conjuntas nos moldes até então praticados, também utilizada em razão do “grave comprometimento da ordem pública” (art. 34, II); c) impossibilidade de transformar a intervenção federal em intervenção militar na gestão pública (art. 142); d) usurpação da competência executiva estadual e irregular suspensão da atividade legislativa do Estado do Rio de Janeiro (art. 144, CF, art. 145, CERJ); e) ausência de especificidade e das condições necessárias à execução da intervenção militar (art. 36, § 1º); f) ausência de prévia consulta ao Conselho da República e ao Conselho da Defesa Nacional (art. 90, inciso I e o art. 91, § 1º).

O segundo questionamento decorre da própria natureza da proposta de combate à violência pelo uso da força em indisfarçado “Estado de Guerra”, experiência reconhecidamente fracassada em todos os países que a adotaram. Não se pode esquecer, ainda, que tratar a cidadania brasileira como inimiga externa não encontra amparo nos valores republicanos adotados pela Constituição de 1988. Ainda mais quando o governo central, antes mesmo de iniciar a sua gestão militar, anuncia que pretende quebrar princípios e garantias fundamentais, a exemplo de retirar do Poder Judiciário, como estabelecido expressamente em todos os atos institucionais, a apreciação individual e prévia dos mandados judiciais constritivos.  E não se pode esquecer, também, a recente declaração do interventor militar quando alude à possibilidade de prática de atos que futuramente justificariam a criação de uma nova Comissão da Verdade.

As instituições militares pertencem ao país e não a um grupo político. Desde a redemocratização, têm sido exemplares no cumprimento de seus deveres, alheias aos embates e ao varejo do jogo político-partidário. Daí a improcedência de transformá-las, em seu conjunto, em instrumento de um jogo eleitoral sem regras definidas e com resultados imprevisíveis para a preservação do próprio Estado Democrático de Direito. Neste momento em que o Estado policialesco ganha força, criminalizando a política e o direito de defesa, necessário se faz o alerta para os riscos decorrentes de um decreto presidencial que flerta com o autoritarismo.

O Brasil precisa livrar-se do hábito de varrer para debaixo do tapete da História as suas abjeções. Precisa entender que um povo que não conhece o seu passado está condenado a repeti-lo. É o que ensinou a Alemanha no episódio conhecido como Historikerstreit, ao rejeitar a proposta de silêncio defendida por Ernst Nolte, Hillgruber e Sturmer, fazendo vencedora a tese de Habermas que defendia o confronto aberto com o passado. Não se sabe, em conclusão, se os acontecimentos autoritários que macularam a História do Brasil se repetirão como tragédia ou farsa, mas não podemos jamais olvidar o alerta proferido pelo irlandês Edmund Burke, que se faz oportuno e pertinente: “Um povo que não conhece a sua história está condenado a repeti-la.”

* Ex-presidentes do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.

 

Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

7 Comentários

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  1. Até os honoráveis da OAB
     

    reconhecem que os principais motivos que levaram o mandatário danação a intervir no Rio de Janeiro foram dois:

    1- Medo da reação do povo da favela numa eventual descida para o asfalto.

    2-Raiva de se ver ridicularizado num desfile carnavalesco.

    O terceiro motivo, não declinado, pode ter sido o pedido da vênus platinada,( de quem ele  depende para fazê-lo simpático e palatável ao povo), para que ele desse um jeito de proteger a nata da “vieira souto” e os demais das zelites, da barbárie dos miseráveis sem salários, sem teto, sem emprego e favelados cariocas.

    Quanto às preocupações dos honoráveis sobre as consequências da intervenção, essas, apenas de estilo, não os atingirá qualquer que seja o resultado ou extensão da medida.

    Em tradução livre:

    Eles estão por cima da carne-seca.

     

  2. Estado….

    OAB? Que OAB? Quando a OAB será Democrática? Quando sua estrutura de poder e controle será eleita de forma direta? Ditadura das Federações. As estruturas ditatoriais que chegaram junto com o golpe do Getulismo, enterrando por décadas, qualquer resquício de democracia. E vigentes até hoje. Cabresto mancomunado e abençoado por STF, de forma unãniime. “Toda unanimidade é burra”. No STF, burra e reveladora. OAB de Fleury, que comandou a invasão da Chacina do Carandiru? OAB de Temer? OAB que não se pronunciou, quando o MP / RS livrou de responsabilidade, todos Agentes Públicos, na chacina crematória da Boate Kiss em Santa Maria?  Constituição Cidadã? Só mesmo com as bençãos de farsante OAB. O Brasil é muito simples. 

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