Constituição é contra impeachment de Dilma por fato do mandato anterior

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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do Consultor Jurídico

Constituição é contra impeachment de Dilma por fato do mandato anterior

Por Lenio Luiz Streck

Folha de S.Paulo publicou no último sábado (22/8) um debate entre dois importantes juristas, um defendendo a tese de que atos praticados no primeiro mandato de Dilma Rousseff podem gerar impeachment e o outro dizendo que não.  Trata-se de interessante debate. Mas o que mais interessa é até onde podemos chegar com a interpretação. Onde está escrito x pode-se ler y? Será que interpretar a lei é como escolher uma das margens do rio e lá acampar? Trata-se de uma questão ideológica? Ou meramente subjetiva? Ou existe algo mais no meio do caminho até chegarmos ao final da trilha hermenêutica?

Claro que não pode ser assim. Sendo prosaico: hermenêutica vem de Hermes, que era um semideus. Na mitologia, não havia controle sobre o que Hermes dizia acerca do que os deuses diziam. Por isso ficou tão poderoso. Na verdade, Hermes já nasceu passando a perna em seu irmão. Depois enganou Zeus. Porém, na modernidade, a hermenêutica do século XVII já veio com outro viés. A modernidade começava a mostrar a que veio. Schleiermacher foi o primeiro, tempos depois, a se preocupar com os mal entendidos dos textos. Assim avançamos. Hoje parece não haver dúvida de que há limites interpretativos. Ou seja, a interpretação não é nem uma revelação de essência e nem um livre atribuir de sentidos.

Por isso, quando o texto não diz o que queremos, não podemos lhe dar o sentido que queremos. Ao contrário: se queremos dizer algo sobre um texto, diz Gadamer, deixemos, primeiro, que ele nos diga alguma coisa.

Este o caso em debate. Diz o articulista defensor da possibilidade deimpeachment por atos do primeiro mandato que a lei de 1950 nada fala disso. Claro. E nem poderia. Não havia reeleição. Mas o fato de a lei silenciar não dá o direito ao intérprete de ali colocar algo nem pensado ou imaginado. E mesmo que falasse, teríamos que resolver isso à luz de uma interpretação conforme a Constituição de 1988 e não aquela de 1946. A interpretação tem de ser histórica e não historicista.

O que é um mandato? A Constituição dá várias pistas. Por atos de seu mandato, o mandatário presidencial não pode ser responsabilizado enquanto este – o mandato – persistir (artigo 86,parágrafo 4º). Ao que li na Constituição, o mandato será de quatro anos. Se ele pode ser renovado, continua sendo de… Quatro anos. Não é de oito anos. Consequentemente, de onde se pode tirar que os atos do primeiro mandato transcendem e alcançam o segundo?

As regras de interpretação – sobre as quais não existe uma taxonomia – apontam para algumas questões básicas: quando se trata de Direito Penal, não pode haver analogia in malam partem. E quando está em jogo a coisa mais sagrada da democracia – que é a vontade do povo — também não se podem fazer pan-hermeneutismos, a partir de analogias e/ou interpretações extensivas. Parece-me que qualquer interpretação sempre deverá ser indubio pro populo. In dubio pro vontade popular. Foi o povo que conferiu um novo mandato. Um mandato termina. Outro começa. Há posse. Não há um dia de vacância. Autoridades presentes. O mandatário eleito promete cumprir a Constituição. Fosse uma mera continuidade, porque fazer toda a churumela cerimonial, com gastos desnecessários? Parece-me elementar: uma coisa é o primeiro mandato; outra é o segundo. A Constituição não pode ser lida contra ela mesma. Se a opção foi pelo Presidencialismo – gostemos ou não – essa opção acarreta compromissos e sérios ônus políticos. Não dá para pensar em tirar o mandatário porque “está indo mal”.

A preservação da vontade popular – para o bem e para o mal — é a pedra de toque que deve servir para dar sentido a eventuais vaguezas ou ambiguidades decorrentes de “gaps de sentido”, como, por exemplo, a discussão acerca da palavra “mandato” ou “estar no exercício” ou, ainda “se o segundo mandato é ou não uma continuidade do primeiro”. Como ficaria, por exemplo, se houvesse um direito de reeleição sem limite de número de mandatos? No quarto mandato poderia haver impeachment de problemas ocorridos no primeiro? E a vontade da malta nesse período todo de nada vale? O skeptrom da interpretação está no artigo da CF que diz “todo poder emana do povo”. Por isso, temos de ir ao máximo para respeitar essa manifestação. Nem que isso seja contra o próprio povo, que, por vezes, vota mal. E terá de aprender a votar melhor. Assim de faz a democracia e não com recurso aos tribunais.

Penso que, quando se discute a possibilidade de impeachment da figura de um(a) Presidente de um país com mais de 200 milhões de pessoas, não se pode nem pensar em lançar mão de conceitos de Direito Administrativo como “continuidade administrativa” ou conceitos dicionarizados acerca dos sentidos das palavras. Deveria ser o contrário, como tenho repetido: devemos partir da Constituição, e não do direito que está abaixo desta. Por isso que o locus de sentido está no Estado Democrático, cujo cerne é a vontade do povo nas urnas. Claro que o respeito a alguns limites semânticos também são importantes, com o  sentido da palavra “mandato”. O artigo 77 da CF não distingue se o mandato é novo ou decorrente de reeleição. O artigo 78 não distingue “posse nova” de “posse decorrente de reeleição”. E o artigo 82 fala apenas que o mandato será de 4 anos. Simples assim. O sentido das palavras sempre ajuda, pois não?

Em resumo: façamos uma interpretação conforme a Constituição e não a interpretação da Constituição conforme lei ordinária.

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

8 Comentários

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  1. O Julgamento do Impedimento é político e não judicial

     

    “Convém anotar que o julgamento do Senado Federal é de natureza política. É juízo de conveniência e oportunidade. Não nos parece que, tipificada a hipótese de responsabilização, o Senado haja de, necessariamente, impor penas. Pode ocorrer que o Senado considere mais conveniente a manutenção do presidente no seu cargo. Para evitar, por exemplo, a deflagração de um conflito civil; para impedir agitação interna.” – Michel Temmer – Elementos de Direito Constitucional. – Ed Malheiros.

    1. Então o presidencialismo virou parlamentarismo?

      Ora, meu caro, o julgamento político de um “impeachment” só pode ADVIR de uma motivação que não é política: infração à lei, à Constituição, senão vira bagunça. Aí um presidente eleito vira primeiro-ministro…

      Ou o sr. está querendo acreditar que no nosso sistema presidencialista, de equilíbrio de poderes, um deles pode retirar o outro sem nenhuma razão legal, mas puramente política, tipo “não está gostando”?

      Aí a opinião do “eminente jurista” não vale nada, pois estará falando de Política e não de Direito.

      Cada uma…

      1. Sem saber quem é Pontara e Juiz Político, ilações são difíceis

         

        Juiz Politico (segunda-feira, 24/08/2015 às 17:27),

        Não sei quem é você e também não sei quem é o Pontara que enviou segunda-feira, 24/08/2015 às 15:16, um comentário para o qual você comentou. Sem conhecer vocês, não há como saber exatamente o que vocês quiseram dizer. Interessei-me em comentar aqui pelo fato de que você ganhou cinco estrelas por seu comentário e Pontara ganhou duas estrelas mais um tiquinho da terceira.

        Talvez as notas que vocês ganharam estejam corretam, mas pode ser que o Pontara também mereceria as cinco estrelas. O título que ele deu ao comentário dele está correto e eu o reproduzo a seguir:

        “O Julgamento do Impedimento é político e não judicial”

        E o comentário dele que é a transcrição de frase do livro do professor Michel Temer, que é o nosso Vice-presidente, como bom Constitucionalista, também está correta. E a frase do insigne constitucionalista diz também o que o Pontara colocou como título do comentário dele (Na verdade comentário do Michel Temer, ou mais precisamente Michel Miguel Elias Temer Lulia), como se pode ver de um trecho reproduzido a seguir da frase do livro “Elementos de Direito Constitucional” que o Pontara transcreveu:

        “o julgamento do Senado Federal é de natureza política”

        E o que você diz também tem amparo na frase de Michel Temer que Pontara usou como comentário dele. Disse você:

        “Ora, meu caro, o julgamento político de um “impeachment” só pode ADVIR de uma motivação que não é política: infração à lei, à Constituição”.

        E o Michel Temer disse algo semelhante no seguinte trecho da frase dele:

        “Não nos parece que, tipificada a hipótese de responsabilização, o Senado haja de, necessariamente, impor penas”.

        Aliás, a semelhança seria ainda maior se alterasse a ordem da frase que ficaria assim:

        “Não nos parece que o Senado haja de, necessariamente, impor penas, tipificada a hipótese de responsabilização”.

        E a semelhança se completa quando se sabe que “tipificada a hipótese de responsabilização” é o jargão jurídico para o que você chamou de “infração à lei, à Constituição”.

        De todo modo, eu tenho uma forte tendência a concordar que o comentário do Pontara ficou a merecer as estrelas que ele ganhou e a resposta que você deu a ele. De certo modo, Pontara deixou transparecer que ele não sabe o que o Michel Temer disse.

        Clever Mendes de Oliveira

        BH, 26/08/2015

  2. Grande Professor Lenio

    Era o meu candidato à vaga hoje ocupada pelo Fachin. 

    Acompanho-o no programa da TV Justiça, Direito & Literatura. São magnÍficas aulas.

    1. Lenio Luiz Streck é muito para o STF

       

      LACosta (segunda-feira, 24/08/2015 às 16:36),

      Estou há muito tempo afastado do Direito para que a minha opinião tenha algum valor, mas há mais tempo eu já me manifestei contra a escolha de Lenio Luiz Streck para o STF. Avalio que ele tem mais espaço como jurista e doutrinador fora do STF. É mais como um elogio que eu digo que Lenio Luiz Streck é muito grande para o STF.

      De certo modo, os ministros do STF são pequenos perto dos grandes juristas que o país produz com abundância. A diferença é que a voz majoritária deles faz lei e o jurista ou doutrinador não tem esse poder nem diante de um juiz estadual em um lugar a esmo qualquer do país.

      É bem verdade que com o poder modulador que foi conferido posteriormente às decisões do STF, um juiz do STF pode manifestar mais livremente e de modo mais doutrinário e depois modular a sentença de forma a reduzir as consequências muito delas danosas que a interpretação mais elaborada e avançada que ele tinha poderia causar.

      Clever Mendes de Oliveira

      BH, 26/08/2015

  3. Todo o poder emana do povo…
    Isto é, da maioria, pois nunca conseguiremos a unânimidade. Assim sendo, só fatos ocorridos após a eleição devem ser julgados.

  4. Pois, no sentido do texto,

    Pois, no sentido do texto, imaginemos Lula reeleito em 2018. Poderia ser ele impedido em função de ato de anterior mandato? Simplesmente não. E simples assim, como bem dito pelo autor. O resto é politicagem fingindo de juridicidade…

  5. Essa analises estão cada vez

    Essa analises estão cada vez mais enfadonhas. Ninguém chama as coisas pelo nome. Ficam querendo falar bonito. Tapetão é tapetão, ora, ora. Pretexto é pretexto. Achaque é achaque. Golpista é golpiosta. Qualquer criança de seis anos entende isso.

    Mas ficam falando em “articulação política”, “projeto de país”…

    … Ai, ai…

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