Como o Chile minimiza as violações sistemáticas

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
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Falta de investigação. Burocracias. Falta de estrutura. Como os números da repressão dos protestos no país não acabam representando a realidade da violência e das vítimas

Foto: Patricia Faermann

De Santiago, Chile

Jornal GGN – As cifras oficiais informam 1.778 pessoas feridas pelas forças de segurança do Chile, sendo 519 por balas de borracha e 338 por armas de fogo, 177 pessoas que tiveram suas visões afetadas parcial ou totalmente – grande parte por consequência de gás lacrimogêneo, mais de 5.000 presos, 19 denúncias de violência sexual e 168 de torturas. Um total de mais de 2.300 denúncias de violações pelo aparato policial. De acordo com o próprio Ministério do Interior, são 23 mortos, número não atualizado desde 30 de outubro.

Os dados duros são um balanço distante da violência sistemática nas últimas três semanas no país que, se por um lado o gabinete de Sebastián Piñera nega a responsabilidade nos casos e o organismo responsável pela fiscalização, o Instituto Nacional de Direitos Humanos, também enfatiza publicamente o teor democrático da atuação do governo, a cada dia aumentam sem uma precisão ou fiabilidade certeira.

O Instituto Nacional de Direitos Humanos é um órgão independente, mas sua responsabilidade é de assessoria ao governo federal. Uma entrevista polêmica concedida na manhã do último domingo pelo diretor Sergio Micco a um canal de televisão chileno alarmou sobre a efetividade dos trabalhos da organização: “Se me pregunta a mim, como diretor do Instituto, eu te diria que não se está violando sistematicamente direitos humanos, e que quem afirme o contrário tem que provar”, disse.

“A violação sistemática aos direitos humanos supõe uma concertação entre distintas instituições, aonde se criam leis ou se fazem políticas públicas que diretamente, intencionalmente, tem o objetivo de violar os direitos humanos”, afirmou Micco, minimizando o então recente Estado de Exceção decretado pelo presidente da República para concentrar forças armadas contra manifestantes pelo país.

Ainda durante o programa matinal de televisão, o diretor da organização que é a responsável por fiscalizar tais atos cometidos por agentes do Estado, incluindo polícia civil, militar e forças especiais, durante os protestos, fez menção a medidas do presidente Sebastián Piñera para sustentar a legitimidade da atuação frente à maior crise política e social do país nos últimos 30 anos:

“Nós não somos do governo ou da oposição, mas temos um presidente da República que votou pelo Não [plebiscito que definiu a saída do ditador Augusto Pinochet em 1988]. Em segundo lugar, é um presidente da República que assim como decretou o Estado de Emergência, o retirou, o toque de queda se acabou, o Exército do Chile está fora das ruas, [Piñera] fez uma mudança ministerial para o diálogo, as agrupações sociais estão se organizando, então há mais do que antecedentes para dizer que o governo quer um diálogo.”

Atropelando o principal papel do INDH e já em crítica direta à manutenção dos protestos nas ruas do país, completou: “Estes debates sobre se continua ou não [a atuação policial], se são violações aos direitos humanos e se são sistemáticas, isso discutamos em seu momento, mas hoje é paz e estado de direito, é diálogo, é reparar nossas cidades, é avançar na agenda social e discutir por um método participativo se é preciso uma nova Constituição”.

As declarações de Micco no último domingo provocaram forte reação de movimentos sociais e populares, agremiações e redes sociais durante esta semana. Da mesma forma como a população manteve os protestos nas ruas, reivindicando uma nova Constituição, com o fim da atual, criada durante a ditadura e que permitiu diversos mecanismos de privatização e capitalização de serviços básicos – saúde, aposentadoria, educação e recursos naturais, como a água –, o descontentamento piora com as suspeitas de que os números estão sendo minimizados.

Manifestações em Santiago, 7 de novembro – Foto: Patricia Faermann/GGN

Além da posição declarada do presidente do INDH, o GGN buscou quais órgãos seriam os responsáveis por investigar os casos de violações a direitos humanos nos recentes protestos no Chile. Uma fonte do setor de Direitos Humanos da Polícia de Investigações do Chile, a PDI, que preferiu não se identificar, nos explicou como funciona o enredado protocolo que é seguido no país para que casos como os 1.778 feridos, 5.000 presos e 168 reclamações de tortura pudessem ser investigados.

Questionamos que tipos de agressões ou violações policiais cometidas durante as manifestações podem receber uma investigação. “Todas deveriam”, respondeu o funcionário da PDI. Ao repassar a ele os números divulgados no dia anterior pelo Instituto Nacional de Direitos Humanos sobre feridos, o policial riu e informou que menos da metade destes casos haviam chegado na unidade da PDI.

Ao perguntar os motivos, o funcionário que pediu a discrição e anonimato falou sobre a pequena estrutura que contam. “São 72 policiais da PDI responsáveis por todas as investigações de violações a direitos humanos”, contou, indicando ao GGN ser insuficiente para a atual contingência do país.

Além disso, o protocolo que deve ser adotado por eles envolve burocracias e dificulta que as vítimas de violações consigam ter respostas ou acompanhamento de seus processos. Isso porque, segundo explicou ao GGN, a unidade de investigação deve ser antes convocada pelo Ministério Público ou pelo Instituto Nacional de Direitos Humanos para atuar.

Quando uma denúncia de violência ou violações pelos policiais é recebida pelo INDH, o funcionário que registra os atos preenche um relatório, que necessita de uma especificação no documento se for o caso de solicitar a atuação da PDI, detalhando que “há fatos na reclamação que se exigem a investigação”. Caso o observador de direitos humanos não escreva este pedido explícito, a acusação nunca chegará nas mãos da polícia de investigações.

Em outro caminho, a solicitação também parte do Ministério Público, em situações nas quais as próprias vítimas decidem levar o abuso ou violação a juízo. Neste cenário, a PDI é intimada a investigar pelo Ministério Público para produzir o relatório que servirá ao processo judicial.

A sede da PDI especializada em Direitos Humanos está localizada no bairro Providência, na região metropolitana de Santiago. O funcionário explicou que as vítimas também podem se dirigir ao local. O pequeno e discreto edifício azul está próximo de um dos principais pontos de concentração dos manifestantes na capital, a Plaza Itália. Entretanto, os portões grandes e fechados não são convidativos para que uma vítima de violência policial que esteja próxima se sinta convidada a acudir.

Reprodução Google

A título de exemplo, para ingressar no local com o objetivo de falar com algum representante, a reportagem precisou tocar a campainha, esperar que os grandes portões de ferro fossem abertos e conversar com um atendente para que pudéssemos entrar. Do lado de fora, a impressão é que não havia ninguém no local trabalhando.

Além disso, de acordo com a fonte que se manteve em sigilo, a visita presencial mesmo em flagrante situação de violência não garante que o caso seja levado adiante. Isso porque os delegados chegam a fazer a diligência, mas logo em seguida devem remeter as informações coletadas ao Ministério Público, que decide se dará sequência ou não aquela investigação, devolvendo o caso à mesma PDI.

Quando são hospitalizados, os diretores dos centros de saúde devem informar os casos ao Ministério Público, o que tampouco ocorre em 100% das situações. Logo nas primeiras manifestações do Estado de Exceção, a presidente do Colégio de Médicos do Chile, Izkia Siches Pasten, informou ao GGN que não havia um levantamento ou controle regulado por parte do governo sobre os feridos dos protestos e admitiu que “nos primeiros dias, tivemos um cerco informativo”. “Vivemos problemas para poder quantificar e suspeitamos de que se estava minimizando a quantidade de feridos.” [leia aqui].

O IDNH, por exemplo, envia observadores diretamente a algumas clínicas para fazer esse levantamento de dados. Entre os casos que foram tornados públicos, durante duas visitas a hospitais em Santiago e mais duas em outras regiões do país, o representante do Instituto foi impedido de entrar no estabelecimento.

Também a polícia civil, chamada de “Carabineros”, tem um setor especializado em direitos humanos. De acordo com Micco, o Corpo Policial deve realizar investigações internas sobre as denúncias realizadas, a fim de responsabilizar os agentes que cometeram tais atos. Contudo, segundo a fonte da PDI, o gabinete de direitos humanos de Carabineros não investiga violações a vítimas, e sim aos próprios policiais. Eles divulgam as estimativas, segundo seus próprios métodos de levantamento, sobre os policiais feridos e repassam ao INDH.

Na entrevista dada ao programa de televisão, os apresentadores perguntaram ao diretor do INDH qual é a competência do governo de Sebastián Piñera sobre a violência do aparato estatal. “O governo pode pedir à polícia a instalar investigações sumárias e isso o corpo policial já está fazendo e, por outra parte, fazer chamados a que se respeitem os protocolos”, restringiu-se Sergio Micco a responder.

Nos protestos, além da Assembleia Constituinte decidida pelo povo, a sociedade pede a responsabilização de Sebastián Piñera pelos mais de 20 mortos durante os protestos. Nesta semana, o 7° Tribunal de Garantia de Santiago chegou a aceitar uma denúncia apresentada por 16 advogados contra o presidente do Chile por responsabilidade nos crimes contra a lesa humanidade, incluindo homicídios, torturas e abusos sexuais, desde o dia 19 de outubro, durante o Estado de Exceção. O processo ainda precisa ser julgado na Corte.

Desde o início e entre todas as instituições responsáveis por investigar os abusos cometidos pelas forças do Estado, o que se verifica é uma política burocrática que impede, tanto na estrutura, quanto no caminho exigido, que as violações sejam apuradas, no contexto de um governo que nega as violações e a responsabilidade.

Aliada à uma falta de informação sobre a quem denunciar e a desconfiança de que o processo siga, uma parcela significativa dos feridos tampouco registra suas denúncias. Na última ponta, além da falta de acompanhamento e respostas às vítimas e seus familiares, os números oficiais que chegam à população, nas televisões de suas casas, deixam de ser confiáveis.

“Hoje apresentamos mais reclamações criminais por torturas em 14 dias que em todo o ano passado. Há casos graves e numerosíssimos de violações aos direitos humanos. Mas quem toma as decisões são os Tribunais de Justiça, nosso dever é apresentar as reclamações”, afirmou, naquela entrevista, o diretor do Instituto Nacional de Direitos Humanos.

 

Sociedade se organiza: Mapa da Violência

É para fazer frente a este cenário de vazio e desconfiança nas autoridades do país que a sociedade civil vem criando mecanismos de mobilização e organização autônomas. A exemplo do que vem ocorrendo com os chamados “cabildos”, as Assembleias populares para decisão comunitária sobre o futuro do país [leia mais aqui], páginas e plataformas foram abertas pela própria população com o objetivo de armazenar as denúncias de violações, incluindo vídeos e fotografias que diariamente vão registrando os casos de abusos do aparato estatal.

Uma dessas iniciativas foi criada em parceria com o GGN. É o Mapa da Violência de Estado no Chile, um dossiê geográfico interativo, com o registro dos relatos de violência por parte da polícia chilena, militares e forças de segurança especial desde o início do Estado de Emergência, iniciado no dia 19 de outubro, com os protestos atuais que seguem. A produção da Agência QuatroV também é uma parceria com o Museu da Memória e da Verdade do Chile, a Associação pela Memória e Direitos Humanos Colonia Dignidad, os veículos OperaMundi, TVT, Outras Palavras e El Desconcierto.

Mapa Interativo: http://bit.ly/MapaViolenciaEstadoChile2019
Histórias: http://bit.ly/HistoriasMapaViolenciaChile2019
Denuncie: http://bit.ly/InformeSuCaso
O mapa estará em constante renovação. Para receber as atualizações: https://t.me/MapaViolenciaEstadoChile2019

 


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Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

1 Comentário

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  1. O que chamaram romanticamente de era da pós-verdade é de fato era da falsidade. A mentira foi observada, testada e colocada como uma das ferramentas principais na atualidade para criar o medo, terror e o cultivo do ódio. Ditaduras se sustentam por intermédio dela, afinal a ocultação da verdade é um subproduto e das principais armas para introduzir-se o medo numa comunidade. A publicidade e o cinema já sabem há tempos, que sob ansiedade, nos tornamos mais vorazes = melhores consumidores e assim, porque é lucrativo ter programas e notícias que causem ansiedade nos telejornais e nos programas policiais? Aliás, comunidade, comunicação vem de (comum + unificação) unificar através do que é comum, sólido e verdadeiro e o oposto da mentira, já que esta é provocadora da divisão. Não é sem motivo que historicamente o DIabo (e todas as suas inúmeras metáforas) DIvide através das estratégias de falsear a verdade, usar de promessas sedutoras. Muitos se encantam com as falsas promessas da internet e as novas ferramentas da “comunicação” e não se lembram de que a semente de uma árvore define seus frutos. A internet e seu entorno foi criada como mecanismos e instrumentos para e da guerra, espionagem, extermínio do outro. Estas coisas surgiram no período de maior polarização, divisão e falência de propostas e intenções reais de um mundo melhor, ou seja, quando a humanidade está mais “covarde” e assim, sensível às estratégias do medo e do terror e quando tais tecnologias chegam mais próximo dela, através do aparelho que está à mão de cada um (e já são mais de 5 bilhões no planeta) próximo do seu ouvido, dos olhos, da mente e do coração. Já são tantas mentiras soltas, propagandas enganosas, prosperidades impossíveis que as pessoas ficam sem saber em realidade onde e com quem está a verdade, a mentira e isto é o principal causador da confusão e inquietação mental e onde nasce tanto adoecimento cerebral, psíquico e físico hoje em dia. É péssimo para o futuro, mas os gananciosos nunca lucraram tanto com a desgraça, a mentira, o terror e as inquietações, travestidos por entretenimento. Pobre dos mais jovens, assistindo ao vivo e à sua mão, para onde o mundo caminha e tende. Há como não deprimir-se? Há, pois temos experiência de não ter tido isto tão volumosamente no passado recente. É culpa da internet? Não, são ferramentas. Com um martelo, se constrói o abrigo para uma família montar seu lar ou se pode quebrar os ossos do inimigo. É possível viver sem inimigos? Sim, não há como ser amigo de todos, mas podemos reaprender a ver como na infância, onde não há a mentalidade do inimigo. Com a razão mais desenvolvida, é a inocência, com cautela. O incauto (lembre-se das metáforas dos diabos) é o que cai por ambição, vaidade e egoísmo nos golpes, afinal o golpeado pelos 171 (ou diabos) não enxergam a malícia e a falsa promessa. O inocente pode saber reconhecer o mal, mas acautela-se por não se aliar a ele. O inocente é quem pode ser o pacificador, pois não julga o outro em si, já que entende que a natureza do outro não é má, está fraca e cega. Separa o feitor do seu feito (o joio do trigo), pois só assim se pode ter compaixão ou misericórdia. Não há outro meio e a hipocrisia é falsa. Quem é oposto, não necessariamente é inimigo, a não ser que eu veja assim e ai é problema de quem vê. Quem usa de mentiras e falsidades age muito mal contra si, pois a ciência já comprovou que o cérebro demanda de muito mais energia e fluxo sanguíneo para se arquitetar uma mentira, pois para a mentira “for adiante” este precisa se esforçar para bloquear e esconder a verdade. O uso massivo deste recurso vai “queimando” os neurotransmissores no cérebro. Já se descobriu que Parkinson e Alzheimer, dois dos males cada vez mais comuns, são resultados químicos desta “queimação de neurotransmissores”, pois um deixa de passar proteína para o outro e vão morrendo e assim a doença vai degenerando mais e mais, ao sistema neural. Em níveis menores os neuros (que são do sistema nervoso) vão trazendo adoecimentos modernos que a ciência já não consegue mais curar. Reforçando que eles têm de comum serem adoecimentos do sistema neural (NERVOSO), são então o pai e mãe da: depressão, ansiedade, ódios, síndrome de pânico, avcs, aneurismas e que tais. Afinal, subprodutos da humanidade adoecida, quando a mentira reina, ilude e traz sofrimento.

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