Angústia do precariado e ideologia da vergonha, por Paulo Fernandes Silveira

Nos últimos tempos, a gestão do sofrimento psíquico tem encontrado eco e representatividade no debate público sobre o futebol.

(Maycon e Luxemburgo na coletiva de imprensa em 29/08/2023)

Angústia do precariado e ideologia da vergonha

por Paulo Fernandes Silveira

Num livro que se tornou uma referência nos estudos sobre a agressiva e perversa lógica capitalista da exploração da força de trabalho, Christophe Dejours (1992) investiga a ideologia da vergonha. 

Há um conjunto de sofrimentos comumente enfrentados pelo subproletariado (DEJOURS, 1992) e pelo precariado (BRAGA, 2014). Além das enfermidades atreladas às condições de vida, como as doenças infecciosas e a tuberculose, na população mais pobre existe uma grande incidência de sequelas originadas de acidentes e de doenças que não receberam um tratamento médico adequado (DEJOURS, 1992).  

Para esses grupos sociais, qualquer situação que afaste a pessoa do trabalho é considerada um motivo de vergonha, “a própria gravidez aparece como uma vergonha” (DEJOURS, 1992, p. 32). É nesse contexto que se desenvolve a ideologia da vergonha. Não se trata de uma angústia frente à doença, à saúde ou à morte, mas à possibilidade de impedimento do trabalho.

A ideologia da vergonha é uma ideologia defensiva, na medida “em que consiste em manter à distância o risco de afastamento do corpo ao trabalho e, consequentemente, à miséria, à subalimentação e à morte” (DEJOURS, 1992, p. 34).

A naturalização da ideologia da vergonha nos meios populares torna comum algumas práticas, como não falar ou mesmo esconder da família, amigos e vizinhos qualquer sintoma de doença. Em muitos casos, a pessoa é responsabilizada por ficar doente e precisar interromper as atividades profissionais: “Quando um cara está doente, acusam esse cara de passividade” (DEJOURS, 1992, p. 29).

As mulheres que vivem nas comunidades periféricas, mesmo as que se dedicam a cuidar de inúmeros filhos, procuram esconder cada nova experiência de gravidez, como se fosse tão vergonhoso quanto contrair uma doença: “Quando se fica sabendo que uma mulher espera um filho, diz-se em cochicho: ‘Ela só sabe fazer isso, dar a luz e fazer filhos’” (DEJOURS, 1992, p. 32).

A ideologia da vergonha parece ser motivada por um instinto de sobrevivência. O alcoolismo pode ser considerado como um fracasso dessa ideologia: “é uma saída individual e gravemente condenada pelo grupo social” (DEJOURS, 1992, p. 34).

Analisando os dados coletados em pesquisas empíricas, Dejours argumenta que a ideologia da vergonha e outros mecanismos de defesa são utilizados em empresas e escritórios para aumentar a produtividade. Trata-se da exploração do sofrimento mental. Numa pesquisa recente sobre o tema (SAFATLE; SILVA JÚNIOR; DUNKER, 2021), as autoras e autores cunharam a expressão: gestão do sofrimento psíquico.

A pesquisa de Dejours, realizada nos anos 80, analisa o trabalho das telefonistas. As empresas dessa área possuem um sistema de avaliação das funcionárias. Uma vez que não é permitido responder agressivamente aos assinantes desagradáveis ou desligar qualquer chamada: “a única solução autorizada é reduzir o tempo da comunicação e empurrar o interlocutor para desligar mais depressa” (DEJOURS, 1992, p. 103).

A produtividade das telefonistas, relacionada ao tempo gasto em cada chamada, vincula-se ao controle das suas ansiedades. Estratégias semelhantes são empregadas, atualmente, em outras empresas:

“Comparemos esse quadro com a situação neoliberal expressa pelas narrativas de gestão dos anos 2010-2020. Dar mais serviço do que alguém pode realizar, atribuir mais controles e responsabilidades do que alguém é capaz de cumprir no horário regular de trabalho, criar metas inexequíveis para ‘puxar ao máximo’ os esforços do trabalhador, criar políticas de competição entre departamentos e sistemas predatórios de bônus são exemplos de como o aumento de sofrimento, segundo a racionalidade da gestão e principalmente da microgestão, extrai valor de condições precárias de trabalho, o que acaba reunindo o mundo corporativo com aqueles que já têm uma relação precarizada com o labor, seja por contratos intermitentes (zero hora), seja por terceirização ou exclusão de benefícios protetivos” (DUNKER; PAULON; SANCHES; SANTOS; ALVES LIMA; BAZZO, 2021, p. 240).

Nos últimos tempos, a gestão do sofrimento psíquico tem encontrado eco e representatividade no debate público sobre o futebol. Uma das expressões utilizadas para tratar do rendimento de jogadoras e de jogadores refere-se a quanto se entrega ou deixa de entregar em cada jogo. Essa mesma expressão já começa a ser utilizada no mundo corporativo.

Ainda que muitos jogadores tenham origens bastante humildes, suas condições de vida e seus salários não são compatíveis com as do subproletariado ou do precariado. Por outro lado, no Brasil, o interesse pelo futebol alcança trabalhadoras e trabalhadores de todas as classes sociais. Ao término das partidas, jogadores e técnicos costumam justificar para um conjunto de jornalistas o desempenho dos seus clubes.  Recentemente, numa coletiva de imprensa, após o jogo em que o Corinthians conseguiu classificar-se para a semifinal da Copa Sul-Americana, o jornalista Rodrigo Vessoni perguntou ao técnico Vanderlei Luxemburgo: “O seu sentimento é mais de alívio pela classificação ou um tanto quanto, por ser um treinador de futebol e ver seu time tomar mais de trinta chutes no gol, é um sentimento um pouco de vergonha?”. (https://www.youtube.com/watch?v=pwLVBsYk8LE).

Apesar dos ótimos salários que possam receber, como qualquer trabalhador, jogadores ou técnicos não devem ter vergonha por não alcançar as metas pretendidas pelas empresas que os contrataram!

Referências:

BRAGA, Ruy. 2014. Precariado e sindicalismo no Brasil contemporâneo: Um olhar a partir da indústria do call center. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 103, p. 25-52. Disponível em: https://journals.openedition.org/rccs/5532

DEJOURS, Christophe. 1992. A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. São Paulo: Editora Cortez.

DUNKER, Christian; PAULON, Clarice; SANCHES, Daniele; SANTOS, Hugo; ALVES LIMA, Rafael; BAZZO, Renata. 2021. Para uma arqueologia da psicologia neoliberal brasileira. In: SAFATLE, Vladimir; SILVA JÚNIOR, Nelson; DUNKER, Christian (orgs.). Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. Belo Horizonte: Autêntica, p. 215-254.

Paulo Fernandes Silveira (FE-USP e IEA-USP)

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