A perturbadora confusão entre o real e o simbólico, por Maria Betânia Silva

A sistematização trazida por Montesquieu sobre as funções de poder do Estado influenciou profundamente o desenho de Estados democráticos.

do Coletivo Transforma MP

A perturbadora confusão entre o real e o simbólico: os percalços de uma monarquia a partir de uma visão republicana.[1]

por Maria Betânia Silva

O Espírito das Leis (1748) é a mais importante obra de Montesquieu e foi resultado de vinte anos de estudos e pesquisas empreendidas pelo autor, envolvendo, inclusive, viagens por mais de dois anos pela Europa com visitas à Viena, Veneza, Milão, Florença, Roma, Nápoles, Munique e Londres. A tese defendida nessa obra é a de que as indispensáveis funções de poder do Estado: executiva, legislativa e judiciária não podem estar concentradas nem baseadas na vontade de uma só pessoa, mas distribuídas entres órgãos distintos a fim de obstar a instauração de um governo despótico. Essa ideia ficou impropriamente conhecida como Teoria da Separação de Poderes, embora esse termo nunca tenha aparecido nos escritos de Montesquieu. Sua doutrina se volta, em essência, à ênfase na moderação como qualidade do exercício de um poder soberano, evitando que o medo como princípio do poder despótico passe a reger a sociedade e se estabeleça como uma ameaça à estabilidade e paz social.

Assim, naturalmente, entende-se que cabe ao Poder Executivo executar as leis, ao Legislativo fazê-las e ao Judiciário resolver os conflitos, aplicando-as. No dizer de  Montesquieu, o Judiciário “…est la bouche qui prononce les paroles de la loi”[2]  (a boca que pronuncia as palavras da lei – numa tradução literal). Nesse diapasão, ele propugnou uma relação harmônica e independente entre essas três funções, sem, no entanto, ocultar o seu encantamento com o Parlamento, nos moldes em que pôde conhecer essa instituição na Inglaterra daquela época, e compreender o modo de ser do seu povo. Eis o que explica o título da obra o “Espírito das Leis”. Com muita precisão, no capítulo I do livro, Montesquieu define lei como “as relações necessárias que derivam da natureza das coisas”.

A leitura dessa obra deve se dar de forma lenta e porque é difícil em virtude da quantidade de informações e da profunda reflexão trazida pelo autor. À medida que leitura avança, fica claro para o leitor que Montesquieu foca sua análise sobre o poder em três formas de governo: monarquia, república e despotismo, rejeitando vigorosamente esta última. Sem enveredar por uma valoração das duas primeiras formas de governo: monarquia e república, que pudesse levá-lo a acolher uma e/ou repudiar a outra, tal como hoje sucede tanto na teoria política quanto na práxis de governo, na perspectiva de Montesquieu essas formas de governo são tão diferentes quanto positivas.

A questão fulcral é a moderação como qualidade do poder. O percurso teórico feito pelo autor para apontar a positividade da monarquia e da república e afirmar a nocividade do governo despótico, cobre uma análise de variados fatores, os quais, se articulam, se enroscam e modelam o comportamento de uma determinada sociedade. Ele tece considerações e reflexões que vão desde o clima aos costumes das sociedades, passando pela religião, além de evocar a História dos Romanos; registrar a maneira de pensar de Aristóteles e fazer referência ao Império Chinês e ao luxo na China, só para citar alguns elementos dos quais ele se apropriou para traçar um horizonte de sentidos sobre a forma de exercício do poder político e disso extrair sua teoria.

Esse longo percurso é de uma tessitura extremamente complexa quando relaciona todos os fatores  examinados e aparentemente díspares, desprezíveis até, num olhar aligeirado, para tratar de política. Mas foi essa abordagem um tanto enciclopédica quanto original que levou Montesquieu a conceber  a máxima segundo a qual “il faut que le pouvoir arrête le pouvoir” [3] (é preciso que o poder pare o poder) e o fez inaugurar, digamos assim, a noção de liberdade política. Essa noção parece hoje óbvia, mas não era na época de Montesquieu. Liberdade política não engendra uma liberdade absoluta no sentido de se fazer tudo o que se quer. Ao contrário, a liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis permitem.

Na contemporaneidade, a sistematização trazida por Montesquieu sobre as funções de poder do Estado influenciou profundamente o desenho de Estados democráticos. E não só isso. Tornou-se útil e indispensável, de tal sorte que não é possível ter um Estado democrático sem considerar o legado teórico deixado por esse autor. Mesmo que existam variações quanto à forma de funcionamento e relação entre as funções de poder do Estado, essas variações se exprimem na Constituição de cada país, afinal ela é a Lei Maior e nessa perspectiva também “é a relação necessária que deriva da natureza das coisas” de cada lugar, sob a forma escrita ou não (o caso da Inglaterra). Mas tudo flui e tudo muda e mudar pode ser um passo para conquistar o melhor possível e, somente, quando é assim vale a pena.

Nos EUA, por exemplo, onde a Constituição sempre foi escrita e tem um viés principiológico representada por um texto bem sintético cujo sentido emerge de situações práticas compartilhadas, as leis inferiores, teoricamente, produto soberano da função legislativa deixam de ser absolutas, para toda e qualquer situação, quando em desacordo com Constituição, que é a Lei Maior. Na prática, os EUA criaram uma Corte Constitucional cuja principal tarefa consiste em resolver eventuais conflitos entre a lei e a Constituição em situações concretas que foram decididas por juízes de instâncias inferiores. Isso possibilitou que uma determinada lei deixe de ter validade para uma situação específica, por decisão da Corte Constitucional. Inserida na estrutura do Judiciário estadunidense, para alguns teóricos, esse mecanismo de invalidação da lei para um caso específico, chamado de controle de constitucionalidade de leis exercido pela Corte Constitucional significou uma  alteração tão substancial da teoria de Montesquieu que parece negar a supremacia legislativa, conferindo Poder supremo ao Judiciário.

Porém, esse arranjo institucional firmado nos EUA, na verdade,  ao tempo em que promoveu uma reatualização da ideia de que as três funções de poder do Estado não gozam de independência absoluta demonstrou que elas mantêm uma relação de interdependência, do ponto de vista prático, e isso é uma característica da complexidade do desenho democrático de Estado na contemporaneidade, fazendo com que o poder político seja regido por uma lógica do que ficou conhecido como sistema de freios e contrapesos.

Pode-se, sim, afirmar que a criação de uma Corte Constitucional, como guardiã da Constituição do país, quando inserida na estrutura do Judiciário, coloca a mais alta instância desse Poder no mesmo patamar do Legislativo, sem confundi-lo com a boca do legislador. Embora essa Corte não atue como se fosse o próprio legislador, pelo menos, no contexto estadunidense, em outros contextos a Corte Constitucional pode ser mais incisiva na sua atuação para fazer valer a Constituição quando as demais funções de poder do Estado: executivo e legislativo, por exemplo, dela se afastam absurdamente ou  são instrumentalizadas, por um aventureiro, que queira corromper a democracia. Nessa hipótese, novamente, não há como negar que a decisão da Corte Constitucional se consigna como lei: “uma relação necessária que deriva da natureza das coisas”.

Uma particularidade relativa ao contexto estadunidense é que a Constituição do país é um repertório de princípios, sem detalhamentos, isso faz com que a Suprema Corte imponha um sentido ao texto constitucional, repita-se, a partir de situações concretas e longe de qualquer abstração. Em outros contextos, especialmente nos países cuja Constituição escrita é classificada como analítica, como é o caso do Brasil, com variados e distintos mecanismos para efetuar um controle de constitucionalidade e provocar a atuação do STF como Corte Constitucional, isso pode não somente conferir um sentido aos princípios constitucionais  da CF/88 como gerar interpretações heterodoxas de dispositivos muito detalhados, o que traz implicações na relação entre Executivo e Legislativo e, estranhamente, no interior do próprio Judiciário.

Diante desse panorama, a única certeza para a conquista e preservação da democracia como regime que impede o despotismo é que o direito de voto e o respeito à Constituição são os fatores da legitimidade das três funções de poder de Estado e estão intrinsecamente relacionados. Cada país, logicamente, tem uma estrutura institucional própria decorrente do seu processo histórico-cultural, mas a democracia persiste como um horizonte para conquista da estabilidade sócio-política,  sendo tão difícil quanto desejável…como tantas outras coisas da vida!

Tudo isso se dá porque a Constituição é uma ideia atrelada aos anseios da população de construir uma sociedade justa e de respeito às diferenças entre os seus membros, um equação equilibrada entre liberdade e igualdade; uma ideia que tomou corpo no século XVIII, inspirada no ideal liberal das revoluções burguesas e não foi devidamente concretizada.  Por isso mesmo, a rigor, não exclui a perspectiva não burguesa, de se  entender que os direitos podem ser  ampliados, sendo uma conquista coletiva dos extratos da população em situação de vulnerabilidade. Por isso também é tão importante que a população de um país atente para a relevância da Constituição e se engaje com seriedade nos processos históricos que objetivam a elaboração de um texto constitucional ou de revisão da Constituição que exprima “a relação necessária derivada da natureza das coisas”, em determinado momento do país, para evitar um poder despótico. Outrossim, deve- se exigir o respeito à Constituição, devidamente modelada, em alguma medida, pela participação expressiva  de representantes do povo na sua diversidade  por contemplar o interesse das numerosas parcelas desse mesmo povo, quando ela for sistematicamente descumprida pelos governantes que estimulam e ampliam conflitos. Nesse caso, a Corte Constitucional pode e deve ser acionada para conferir sentido ao texto com o propósito de trazer alguma estabilidade social.

Assim, ao serem demandadas para o cumprimento do seu papel de guardiã da Constituição, as Cortes Constitucionais podem ficar expostas à toxicidade que eventualmente deteriora o ambiente político. Num contexto de crise política, portanto, elas podem acabar cumprindo um papel simbólico para conferir uma aparente estabilidade democrática. Mas  ainda sim a Corte Condtitucional tem valia e é uma aposta que o simbólico se torne uma realidade às melhor do que a própria realidade, por mais estranho que pareça.

Caso curioso sobre a relevância de uma Corte Constitucional sucedeu no Reino Unido, em 2019 quando a Suprema Corte Britânica (SCB) atuou assumindo ares de Corte Constitucional ao decidir sobre o processo relativo à suspensão das atividades parlamentares no Reino Unido. Antes de tudo, é bom atentar para o fato de que a criação da SCB é algo absolutamente recente e completamente novo na História do país. O desenho institucional do Reino Unido que, diga-se de passagem, foi inspirador para Montesquieu na elaboração da obra ‘O Espírito das Leis’, sempre diferiu do desenho institucional dos demais países da Europa continental. O Parlamento junto à monarquia inglesa sempre foi tomado como o mais importante elemento de constituição do país. Em outros termos: uma instituição que expressa a Constituição do Reino Unido, no sentido aristotélico. Ou seja, constituição como modo de ser de um povo.

A SBC foi criada como uma instituição estranha à estrutura do Parlamento nesse país e isso produziu uma aproximação com o modelo adotado nos EUA que, paradoxalmente, apesar de ser o mais expressivo herdeiro da tradição jurídica anglo-saxã exerceu grande influência no mundo ocidental, inclusive, nos países do “civil law”, justamente em virtude do seu modelo de Corte Constitucional e da adoção de uma constituição escrita.

Os esforços para criação da SCB começaram em 2003; em 2005 ela foi formalmente criada, mas somente instalada em 2009. O processo foi lento e talvez tenha sido assim porque a SCB foi criada em substituição ao chamado Comitê de Apelação dos Lordes que existia há séculos no país e que funcionava como um apêndice da Câmara dos Lordes para fins de julgamento em primeira instância em relação aos pares e em última instância para outros casos civis e criminais. Portanto, o que se tinha no Reino Unido era uma Corte de Julgadores dentro do próprio Parlamento. Dentre as razões históricas que explicam esse modelo tão singular talvez a mais relevante resida no fato de que o Reino Unido nunca teve e não tem uma constituição escrita e, também porque ao Parlamento, desde tempos imemoriais, se conferiu poder soberano, não havendo nenhuma outra instituição com atribuições para invalidar as leis por ele elaboradas senão ele próprio. E ainda não há! Em relatório sobre o ato de criação da SBC publicado em seu próprio site[4] está dito que o objetivo de criá-la foi tornar clara a separação de poderes entre Executivo, Legislativo e Judiciário. Sua composição primeira, contudo, se deu com a investidura dos juízes que compunham o Comitê de Apelação dos Lordes, num total de doze, indicados pelo primeiro-ministro e nomeados, nessa época, pela Rainha Elizabeth. Além de conferir maior transparência no exercício das funções legislativa e judiciária, a Suprema Corte zela pela compatibilidade entre a legislação do Reino Unido e as leis da União Europeia, mais especificamente, a Convenção dos Direitos Humanos. Nesse sentido, então, é a mais alta instância do Sistema Legal Britânico fora do Parlamento. Nos moldes atuais ela é algo já muito instigante sob vários pontos de vista e suscita um sem-número de reflexões sobre os efeitos políticos que pode engendrar. A esse respeito o professor James Grant, do King’s College London, em matéria publicada na BBC Brasil[5] afirmou que não se tratou de uma mudança significativa, apenas simbólica porquanto o apontado problema de separação entre as funções legislativa, executiva e judiciária era apenas aparente.

A primeira e mais relevante atuação da Suprema Corte até agora e que enseja uma interessante investigação para bem avaliar os efeitos de sua criação entre as funções de poder de Estado no contexto do Reino Unido, se deu no caso envolvendo a suspensão das atividades do Parlamento (a prorogation, em Inglês), em 2019, a qual tinha uma relação direta com os efeitos do Brexit

Em seu site[6], a SCB publicou o inteiro teor da decisão proferida, além de uma síntese que aqui se toma de empréstimo para expor brevemente e com fidelidade o transcurso do processo.

A SCB apreciou dois recursos: um, contra a decisão da Alta Corte da Inglaterra e País de Gales; outro contra a Câmara da Corte Escocesa. Este último feito por um grupo de 75 parlamentares da Escócia que se mostravam preocupados que a suspensão do Parlamento no prazo assinalado pelo Primeiro-Ministro, na época Boris Johnson (do dia 12 de setembro ao dia 15 de outubro de 2019) evitasse os necessários debates acerca da saída do Reino Unido da União Europeia no dia 31 de outubro. E, tão logo foi anunciado no âmbito do Parlamento a suspensão de suas atividades, Mrs. Miller começou um procedimento que desafiava a legalidade dessa decisão. Mrs. Miller havia acionado a Alta Corte da Inglaterra e País de Gales que decidiu, no dia 11 de setembro, não ser a questão passível de judicialização. Nesse mesmo dia, a Câmara da Corte Escocesa disse o contrário, argumentando que a prorogation não se compatibilizava com os parâmetros de honestidade por significar um obstáculo para a realização de debates críticos e profundos de governabilidade e que qualquer prorogation subsequente a isso era contrária à lei e assim vazia e sem efeito. Logo após o julgamento de sua ação, Mrs. Miller recorreu contra decisão proferida pela Alta Corte da Inglaterra e o Advogado Geral recorreu da decisão da Câmara da Corte Escocesa, sendo ambos ouvidos na Suprema Corte Britânica em sua composição plena, 11 juízes, tendo em vista a importância do caso.

Antes de apontar os principais argumentos trazidos nesse julgado, abre-se um parêntesis aqui para esclarecer quem é a Senhora Miller. Trata-se de uma empresária e ativista, de ascendência indiana, nascida na Guiana, antiga Guiana Inglesa e que, em 2016, iniciou um processo judicial contra o governo britânico que pretendia à época implementar o Brexit sem ouvir o Parlamento. Cabe assinalar que a senhora Miller obteve êxito nesse processo quando a Suprema Corte decidiu que o governo não poderia ativar o prazo previsto no art.50 do Tratado de Lisboa que prevê a possibilidade de saída de estado-membro da União Europeia, sem ouvir o Parlamento. Em virtude disso, ela foi alçada, através da imprensa, à categoria de “a mais influente pessoa negra” do Reino Unido e, paralelamente, tornou-se alvo de ameaças de toda sorte: de estupro a homicídio, precisando por algum tempo andar sob escolta.

Eis, a seguir, os principais argumentos lançados pela Suprema Corte Britânica e que se firmam, desde já, como um marco jurídico-político no cenário institucional do Reino.

Segundo a síntese da decisão a Corte: 1) quis saber se a legalidade do conselho dado pelo Primeiro- Ministro à Rainha sobre a suspensão das atividades do Parlamento era passível de judicialização. Nesse aspecto, sublinhou que há séculos ela, a Rainha, efetua exame de legalidade dos atos do governo, considerando, em linhas gerais, que não se nega a existência de poder do governo mas se entende que ele deva ser exercido dentro dos limites da lei; 2) apontou os limites do poder, estabelecendo para tanto um elo entre dois princípios fundamentais: a- o da soberania do Parlamento, cabendo-lhe fazer as leis às quais todos têm que obedecer e acrescendo o argumento  de que isso seria solapado se o Executivo pudesse evitar o Parlamento de exercer seu próprio poder e b- o da Responsabilidade Parlamentar, valendo-se das palavras de alguns membros da Câmara Alta do Parlamento, os Lords, para dizer que “a conduta do governo pelo PM e seu gabinete coletivamente responsável perante o Parlamento está ligado ao coração da democracia de Westminster”.

A Corte observou que a decisão de suspender as atividades parlamentares ou o conselho dado à Rainha para tanto seria contrária à lei se a suspensão tivesse por efeito frustrar ou evitar, sem um motivo justificável, a competência parlamentar para exercer suas funções constitucionais como a legislativa e, ainda, a função supervisora do executivo. A isso acresceu: se a prorogation não teve o efeito de frustrar, sem justificativa razoável, a atuação do Parlamento, a questão está encerrada. Se ela teve esse efeito, ela não foi normal, apontando que esse recesso prolongado provocaria a paralisação de atividades parlamentares junto às casas legislativas; ademais, essa medida foi tomada em uma excepcional circunstância: a da fundamental mudança da Constituição do Reino Unido em 31 de Outubro. Considerou ainda a Suprema Corte que nenhuma evidência, à parte um ofício de um alto funcionário ao Primeiro Ministro, havia que justificasse o recesso prolongado.

Por fim, enfrentou o argumento do Advogado Geral que recorreu contra a decisão da Câmara da Corte Escocesa dizendo que ela não poderia considerar nulo o recesso prolongado porque se tratava de um procedimento próprio ao Parlamento (como uma questão interna corporis) amparada no Bill of Rights de 1688. Para a Suprema Corte, porém, esta não foi uma decisão do Parlamento, mas da Câmara dos Lordes que levou um “prato feito” para a outra Câmara. Foi imposta. Por unanimidade, então, decidiu que esse recesso prolongado foi contrário à lei e não deveria ter qualquer efeito.

Como se vê, a decisão da SBC mostra equilíbrio e respeito ao Parlamento porque ele é a própria Constituição do país. Apesar disso, se bem analisadas as circunstâncias e o resultado da votação popular que redundou na aceitação do Brexit e que por quase três anos gerou debates intensos no seio do Parlamento, em virtude de uma polarização política no país, essa decisão suscita reflexões muito interessantes e instigantes no domínio da Ciência Política, dentre elas, o de que ela talvez tenha representado uma proteção ao regime monárquico que é parte também da Constituição do país, afinal, o Primeiro-Ministro Boris Johnson cujo nome fora ratificado pela Rainha foi poupado de críticas. O fio condutor da Corte foi o procedimento, sem pessoalizar.

Isso, em alguma medida, soa como um paradoxo sobre o papel que a monarquia britânica desempenha atualmente para a democracia no país. Até que ponto essa instituição milenar  de rostos tão conhecidos pelo carisma ou pela falta dele efetivamente contribui para reforçar o ideal democrático?

Sempre se afirmou que Rainha Elisabeth II cujo reinado durou mais 60 anos e que foi, somente agora sucedida, após sua morte no ano passado, pelo seu filho Charles III, recentemente, coroado Rei em cerimônia pomposa, tinha um poder simbólico em oposição ao poder político voltado à administração do país. Essa ideia de poder simbólico  induz os desavisados a pensar que ele não incide sobre a realidade, condicionando- a.  Esquece-se que  – por mais discreta que fosse a Rainha e por mais arredio que se mostre o Rei Charles III na cena política do país – a monarquia conta com o apoio de uma classe social (também política): os conservadores (descendentes e simpatizantes da aristocracia inglesa) dentre eles, muitos detentores de títulos de nobreza, os quais são exibidos com muito orgulho … e isso é bem real … como se fosse outra gente diferente das gentes…

O Reino Unido foi império por muito tempo e a lógica imperialista que o ergueu a essa condição nunca desapareceu. A Rainha nunca moveu uma palha para que desaparecesse, nem caberia a ela fazê-lo embora fosse desejável que o fizesse. E é provável que o Rei também não mova nenhuma para mudar a lógica que vem do passado. É uma questão de tradição. Ele nunca saiu da classe social na qual nasceu e sequer deve passar pela cabeça dele deixar de cumprir as obrigações reais (monárquicas) que lhe foram atribuídas em virtude da linha sucessória que o fez assumir o trono.  Tudo que lhe cabe fazer e é, no mínimo o que ele deseja,  é conservar o poder da família real com o apoio da classe social e política que vive no seu entorno.

O povo britânico, por seu turno, numa expressiva parcela, se conforma e sempre se conformou à condição de súdito, porque isso lhe dá o pertencimento à nação. Britânicos e cisnes que desfilam nos parques do Reino Unido  são, cada um com sua particularidade, “acessórios” que aderem à terra, propriedade da família real cujo poder se exerce através do monarca.

A foto do Rei em dia de celebração está em toda parte como sempre esteve o da sua mãe, a Rainha Elizabeth, que manteve o poder simbólico pelo carisma já que ela era alguém que sorria, aparentava serenidade e nunca dizia nada desagradável. A vida era bela para ela e cheia de deveres: eventos e festividades, entremeados por atos de caridade, para dar leveza ao coração; nas ruas do país as bandeirolas estão sempre lá para lembrar o sentido da pátria: a reverência ao seu monarca; também nas ruas estão os ratos assim como os mendigos e o povo sacrificado no transporte público voltando do trabalho exaustivo no cumprimento de obrigações que renda eficiência… “como se fossem máquinas”. Por ocasião do coroamento de Charles III, nas capas dos jornais a imagem dele cuidadosamente focada circulou o mundo através do sinal da única emissora autorizada a transmiti-la: a BBC. Ele tentava exibir no passo cadenciado e cansado de nunca ter feito tanto em um único dia, a “humildade”, mesmo quando desfilou em carruagem de ouro. Ainda se esforçou para imprimir simpatia quando acenou do balcão do palácio ao lado da família, para o povo que delirava e cultuava  não exatamente a pessoa dele, mas o que ele representa porque ele se confunde com a estabilidade necessária que todos desejam, temendo os sinais de declínio do Reino e também do poder econômico que esse reino sempre exibiu perante o mundo.

Vale, por fim, lembrar o que escreveu George Orwell em um opúsculo chamado England Your England que é quase um estudo antropológico do país.

Grosso modo, ele descreve comportamentos, hábitos e valores que orientam o funcionamento da sociedade, de um modo geral, e das instituições.

Num determinado trecho (pp.14-15) se refere aos juízes e, com um talento literário que carrega o gosto da verdade, depois de descrever as vestimentas que eles portam e que inclui aquela peruca esquisita,  tradicional, “fashion de séculos atrás”, afirma que os juízes são “um das figuras simbólicas da Inglaterra”. Conclui a ideia que tem sobre os magistrados ingleses da seguinte maneira:

“(…) Ele é o símbolo da estranha mistura de realidade e ilusão, democracia e privilégio, truque (como algo falso) e decência, a sutil rede de compromissos, pela qual a nação se mantém na sua familiar modelagem” (tradução livre).

Essa, é sem dúvida uma excelente reflexão para ser objeto de um olhar atento do povo, seja ele inglês ou não. É uma advertência para compreender o espírito das leis, as quais  como “relações necessárias que derivam da natureza das coisas” não se confundem com as leis em sua concretude.

Afinal, monarca, Chefe do Executivo, membro do Judiciário, do Ministério Público ou do Parlamento é coisa muito séria, muito importante.  É pressuposto para tanto ser dotado do poder que impacta na vida das pessoas em qualquer país nos seus mínimos e máximos detalhes. É incorporar à própria vida a nobre missão de resolver conflitos e, não estimulá-los, agindo de forma discreta, sem exibicionismos, com prudência e equilíbrio. É manter- se fora dos palcos e dos holofotes para não se confundir com personagens amados ou detestados da cena pública do país, instrumentalizando as leis e os tribunais como cenário de sua performance.  Enfim, “não é coisa pra inglês ver”, para usar aqui um ditado que no Brasil diz tanto…sobre quase tudo. É ter uma visão republicana sobre o poder, o que, aliás,  é o espírito da lei que assombra as monarquias.


[1] Este texto retoma parcialmente trabalho apresentado por mim no II Congresso Global de Direitos Humanos: a defesa da Democracia e do Estado Constitucional, ocorrido em janeiro de 2020, na Cidade de Lamego, Portugal.

[2] L’Esprit des Lois, Introduction. p.28. Editions Gallimard. Folio Essais, Vol. I e II. Toda citação da obra de Montesquieu neste texto tem por referência essa edição Gallimard de 1995.  Livre XI, Chapitre VI, p.337.

[3] Op. Cit. Livre XI, Chapitre IV p.326

[4] Supremecourt.uk/docs./ar_2009_10.pdf visitado em 27.09.2019

[5] BBC.com/portuguese/brasil-47623603 – visita em 07.10.2019

[6] Supremecourt.uk/docs./ar_2009_10.pdf visitado em 27.09.2019

  Maria Betânia Silva – Procuradora de Justiça aposentada e membra do Coletivo Transforma MP

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