Como chegamos até aqui?, por Rodrigo Medeiros

Políticas de austeridade não são neutras e elas afetam de maneiras diferenciadas as sociedades.

Como chegamos até aqui?

por Rodrigo Medeiros

São muitas as teses que buscam explicar como chegamos até o presente momento histórico. Das crises de representação política nas democracias liberais após a implosão da União soviética, no final de 1991, às emergências de extremistas de direita no século XXI, muitos textos já foram escritos e publicados no mundo. Destaco, nesse sentido, uma palestra da professora Clara Mattei, da New School for Social Research, de Nova York.

A palestra “Como os economistas inventaram a austeridade e pavimentaram o caminho para o fascismo”, disponível no canal New Economic Thinking, do Youtube, desde 12 de outubro, merece a nossa atenção. Políticas de austeridade não são neutras e elas afetam de maneiras diferenciadas as sociedades. As políticas sociais são afetadas negativamente, gerando impactos adversos na coesão social e o acúmulo de ressentimentos.

De acordo com Mattei, é preciso compreender a profunda lógica das políticas de austeridade. Em síntese, o objetivo dessas políticas é preservar o sistema econômico, ou seja, preservar as relações de classe no capitalismo. A professora cita o fim da Grande Guerra, em 1918, como um marco dessas políticas. Outros autores, como Edward Carr e Mark Blyth, por exemplo, citaram a tentativa de reestabelecer a Belle Époque como uma das grandes ilusões daquele pós-guerra. A manutenção de desigualdades sociais extremas integra esse quadro.

Segundo Mattei, desde então, governos de diferentes países têm enfrentado as crises financeiras com políticas econômicas de austeridade. Cortes de remuneração do trabalho, a busca pelo equilíbrio fiscal em contextos recessivos e cortes nos auxílios públicos têm sido utilizados como solução, mesmo com efeitos devastadores sobre o bem-estar social e econômico.

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Afinal, qual foi o resultado prático das políticas de “austeridade fiscal expansionista” que imperaram após a crise financeira global de 2008? A emergência política da extrema direita na Europa e nas Américas? A “fada da confiança” não veio premiar políticas “responsáveis”. No Brasil, por sua vez, não é preciso muito esforço para compreender o que de fato ocorreu após o avanço do reformismo regressivo desde 2016.

Uma matéria publicada no jornal O Globo, no dia 21 de outubro de 2022, assinada por Letícia Lopes, trouxe informações bem preocupantes sobre a situação econômica das famílias brasileiras. Em síntese, “quase 40% dos brasileiros adultos, o que representa 64,25 milhões de pessoas, estavam negativados em setembro”.

As informações são de um levantamento realizado pela Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL) e pelo Serviço de Proteção ao Crédito (SPC) e representam o maior patamar já registrado na pesquisa, realizada há oito anos. A dívida média é de R$ 3.688,96, com atraso de três meses a um ano. Segundo a matéria, “as instituições financeiras registraram crescimento de dívidas em aberto de 37,94% na comparação com setembro do ano passado”.

De acordo com a matéria, “apesar da recuperação dos níveis de ocupação, a informalidade alta e os salários mais baixos não dão sinais de que a situação se resolva tão cedo, o que reflete no rendimento das famílias”. Nesse sentido, causou preocupação a liberação do empréstimo consignado aos beneficiários do Auxílio Brasil em período eleitoral.

Conforme apontou a matéria, “entre os mais vulneráveis, como os que recebem o Auxílio Brasil, o endividamento pode causar consequências ainda mais graves, principalmente após a liberação do empréstimo consignado”. Já se sabia que haveria demanda por crédito consignado, afirmou Paola Carvalho, diretora de Relações Institucionais da Rede Brasileira de Renda Básica (RBRB), escutada pela matéria.

Conforme declarou a diretora, o “governo sabia da alta demanda que teria do consignado, e deixou para as vésperas das eleições a contratação porque dá uma falsa sensação de alívio para as famílias”. O Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União (TCU) pediu que a Caixa Econômica suspenda a concessão desse crédito. Em uma semana de operação, a Caixa liberou R$ 1,8 bilhão em empréstimos consignados para 700 mil pessoas que recebem o Auxílio Brasil ou o Benefício de Prestação Continuada (BPC). Essas pessoas estão contraindo uma dívida para a subsistência, para sobreviver, não para empreender.

Medidas governamentais e reformas institucionais regressivas impactaram nas perspectivas da população. A ocupação laboral tem aumentado principalmente em posições que requerem menor escolaridade e que pagam menores salários, o que revela um mercado de trabalho empobrecido, de alta informalidade, precário, e com poucas perspectivas de ascensão para os trabalhadores. Não superamos o subdesenvolvimento crônico em quarenta anos desde a redemocratização e os riscos de colapso de um ambiente democrático são claros em um país extremamente desigual como o Brasil.

Destaco, para finalizar, um livro interessante que li recentemente. Trata-se do livro “Crises da democracia”, do cientista político Adam Przeworski, editado pela Zahar, em 2020. Para o professor da Universidade de Nova York, “as instituições democráticas não podem oferecer as salvaguardas necessárias para impedir que sejam subvertidas por governantes devidamente eleitos”. Ele ressaltou que a desconsolidação democrática não precisa envolver violações constitucionais quando governos reacionários são populares. No Brasil, a degradação institucional é bem representada pelo “orçamento secreto” e os seus escândalos de corrupção que começam a ser revelados.

No prefácio à edição brasileira, Przeworski afirmou que “a rejeição de Aécio Neves aos resultados da eleição de 2014 constituiu uma grande violação das normas democráticas”. O professor acrescentou que “o impeachment da presidente Dilma Rousseff em agosto de 2016 foi uma demonstração de que os políticos colocam seus pequenos interesses acima da integridade das instituições”. Concluindo, o cientista político ponderou que “a remoção, juridicamente arquitetada, de Lula como candidato na eleição de 2018 impediu vasto segmento do povo brasileiro de exercer seus direitos democráticos”.  

Rodrigo Medeiros é professor do Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes)

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  1. Em certa medida a austeridade fiscal causa o engessamento do Estado em relação a exercer suas funções tutelares do que está firmado dentro da fundação constitucional. O Estado/Sociedade como pacto social impõe e estabelece direitos e obrigações aos signatários aderentes desse pacto, justamente procurando equilibrar as forças profundamente desiguais entre as partes da sociedade. Como não existe neutralidade nessa relação das partes, mas uma disputa, o Estado tem a função de tutor desse contrato, o garantidor do formulado. A chamada ordem constitucional na sociedade civilizada, em teoria, foi feita para mediar os conflitos sobre os vários temas presentes no relacionamento de todas as partes envolvidas. A disputa por força foi trocada pela construção de um bem comum, a auto preservação como povo. O Estado tem tanto o mais forte quanto o mais fraco e a função de manter uma certa paz social dando condições de desenvolvimento a todos. A inviabilização das funções do Estado por meio da imposição de uma austeridade que retira a capacidade em cumprir o papel de oferecer as devidas garantias para a manutenção da paz social, que possa levar ao desenvolvimento da sociedade brasileira põe em risco o futuro do País. Isso somado à perda de credibilidade das instituições que deveriam cumprir esse papel traz preocupações sobre o que se espera do Brasil. O que realmente pensa o País. Ser ou não ser civilizado. Eis a questão. Discutir do ponto de vista empresarial um Estado mínimo está muito distante de não representar nada sério no mundo civilizado.

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