O Brasil em Tempos de Paz Punitiva, por Mauricio Metri

Nesse quadro de crise, não deixa de ser surpreendente que a principal fonte de violência que atinge a sociedade brasileira, depois de 2016, é o próprio governo federal, algo agravado com a ascensão em 2019 do governo do senhor Bolsonaro.

O Brasil em Tempos de Paz Punitiva[1]

por Mauricio Metri[2]

Há alguns anos generaliza-se o estado de perplexidade da sociedade brasileira, não somente por conta da prolongada crise por que passa o Brasil, mas sobretudo por causa da forma como ela se manifesta e se desenrola. É como se os eventos se multiplicassem e se atropelassem, e as pessoas seguissem resistindo à naturalização do absurdo e do grotesco ao custo de um estado permanente de indignação e revolta.

Deixando de lado as parvoíces, se a princípio a crise deu seus primeiros sinais com manifestações “espontâneas” em 2013, ela logo se instaurou na sociedade com o acirramento das disputas eleitorais de natureza político-partidárias em 2014. Tomou forma de uma severa recessão econômica em 2015-16, seguida de uma estagnação que ainda hoje perdura. Avançou também como uma crise institucional relativa aos princípios e garantias fundamentais do Estado Democrático de Direto consagrado na Constituição de 1988, sobretudo com o golpe de 2016 e com a prisão do ex-presidente Lula em 2018. Mas hoje a sensação é a de que vivemos sob uma crise ainda mais grave, de caráter civilizatório, relacionada aos ataques à razão e aos avanços da concepção de pós-verdade, do obscurantismo, do fundamentalismo e da intolerância.

Violências sobre a sociedade brasileira

Nesse quadro de crise, não deixa de ser surpreendente que a principal fonte de violência que atinge a sociedade brasileira, depois de 2016, é o próprio governo federal, algo agravado com a ascensão em 2019 do governo do senhor Bolsonaro. De maneira sintética e sem pretensões exaustivas, apenas para facilitar o raciocínio, podemos dividir as formas de violência do governo sobre a sociedade em três tipos.

Um primeiro é o de natureza econômico-social ligado: às política de ajuste e de flexibilização da legislação trabalhista; às propostas de desmonte da seguridade social e de ataque às políticas sociais em geral; e à redução efetiva dos gastos em educação e saúde pública, cuja lógica aponta para a mercantilização dos serviços públicos. Embora ainda não tenham sido implementadas em sua totalidade, os efeitos dessas violências já se fazem presentes em todo Brasil, com o crescimento acentuado do desemprego, das desigualdades, da pobreza e da fome.

Essa configuração torna-se ainda mais nociva quando associada à proposta de segurança pública do atual governo, que busca o armamento da população civil e a flexibilização da liberdade de atirar. Não é difícil perceber quais serão os resultados da combinação de uma política econômica recessiva num quadro de estagnação prolongada e exclusão crescente, de um lado, com uma lógica de segurança pelas próprias mãos, de outro. Está-se promovendo, por iniciativa do próprio estado, na forma de políticas públicas, um contexto social que aponta, no limite, para um conflito generalizado, sob o risco de estilhaçamento da sociedade, em termos de sua população e seu território, como ocorre em tempos de guerra civil.

Um segundo tipo de violência são os ataques aos instrumentos de exercício da soberania do estado brasileiro e de promoção do desenvolvimento econômico. Desde 2016, patrocina-se o desmonte da Petrobrás, das cadeias produtivas ligadas à indústria de óleo e gás e à indústria naval; aliena-se a política de exploração de petróleo, de controle sobre produção, destino e preço; desmontam-se as empresas de engenharia nacional, responsáveis pelos mais amplos projetos de infra-estrutura do país; entregam-se empresas de setores estratégicos, de alta tecnologia, como a Embraer; há o esvaziamento e desmonte dos bancos públicos (Banco do Brasil, Caixa Econômica e BNDES), necessários ao financiamento do desenvolvimento econômico; promovem a asfixia das instituições federais de ensino e de fomento à pesquisa científica no país, as universidade públicas, a Capes e o CNPq; e há interferência nas atividades de instituições importante para o planejamento, como, por exemplo, o IBGE. Como resultado, o estado tornar-se-á incapaz de realizar políticas públicas em sentido amplo. Uma violência cujos efeitos se prolongarão por gerações.

Por fim, um terceiro tipo de violência incide mais diretamente sobre algumas das bases que estruturam a própria ideia de soberania. Podemos citar a negociação para entrega da base de Alcantara aos EUA, assumindo o risco de se permitir à maior potência do sistema instalar uma base militar dentro do território brasileiro; a proposta atual de uma política de exploração da Amazônia em parceria com os EUA; e a entrega das reservas de petróleo ainda não exploradas do pré-sal às empresas estrangeiras, sobretudo às estadunidenses. Insere-se também nesse quadro a recente ameaça do governo de asfixia e desmonte das forças armadas por meio de corte de gastos.[3]

Destruição como princípio de orientação estratégica

Nesse contexto, depreende-se que a violência estatal é generalizada, não refletindo exatamente um projeto específico dentro de um contexto de disputas entre diferentes forças no interior da sociedade. Por isso, o sentimento de perplexidade cresce. O projeto caracteriza-se pela destruição. Não se diz exatamente o que se pretende colocar no lugar do que se destrói.

O que explica, então, essa violência generalizada? Quando a destruição de instrumentos de soberania de um estado e o ataque à sua população, ao seu território e à sua estrutura produtiva se tornam objetivos de políticas púbicas? Em última instância, faz sentido a percepção de uma ideologia da destruição como princípio de orientação da ação estratégica de uma autoridade central?

Do ponto de vista histórico, isso é muito característico dos processos de paz. Mais especificamente, dos processos de paz punitiva, quando ao término de um conflito as partes vencedoras arbitram as condições de vida do derrotado, impondo perdas territoriais, fragmentação da população, desarmamento, desestruturação econômica, dívidas de reparação, reordenamento político-jurídico-social e, no limite, saques, pilhagens, etc. Isso porque toda Paz é uma violência, um arbítrio, que reflete os interesses da parte vitoriosa contra a derrotada, num contexto de enorme assimetria de forças. Na história das guerras, a paz é uma violência do vencedor sobre o derrotado.

Nada muito diferente da filosofia humanitista do filósofo Quincas Borbas, personagem Machadiano, segundo a qual, quando dois disputam recursos escassos, “A paz, nesse caso, é a destruição; a guerra é a conservação. Uma das tribos extermina a outra e recolhe os despojos. (…) Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas.”[4]

Casos históricos

Existiram alguns poucos casos de tratados de paz que se orientaram pela não punição, como em 1454, com o fim da Guerra de Trinta Anos Italiana e a assinatura da Paz de Lodi, preservando o Ducado de Milão; em 1815, com o fim das Guerras Napoleônica e a assinatura do Tratado de Viena, preservando a França; e, a mais conhecida, com o fim da 2º Guerra Mundial em 1945 e o início da Guerra Fria em 1947, a decisão de reconstruir a Alemanha e o Japão.

Em geral, em todos os demais casos, a paz foi o instrumento de violência do vencedor. Por exemplo, na Primeira Guerra do Ópio (1840-42), com a derrota chinesa para as forças britânicas, ficou definido, pelo Tratado de Nanquim de 1842, que: i) a Ilha de Hong-Kong passava a ser domínio inglês; ii) haveria a abertura de cinco portos; iii) o fim do monopólio da associação de mercadores chineses; e iv) a imposição de uma série de indenizações. A Segunda Guerra do Ópio seguiu a mesma dinâmica, com um novo tratado desigual, o de Tianjin (1858), ratificado na Convenção de Pequim em 1860, onde ficou definido, dentre outras coisas: i) a abertura de onze novos portos; ii) a concessão de extraterritorialidade aos estrangeiros europeus; e iii) a livre circulação de comerciantes no território chinês. Sobre o famoso Saque ao Palácio de Verão em 1860, Vitor Hugo, em carta ao capitão Butler, eternizou o sentido de uma paz punitiva. “Um dia, dois bandidos [Inglaterra e França] entraram no Palácio de Verão. Um saqueou, o outro incendiou. A vitória pode ser uma ladra, ao que parece. Uma devastação em grande estilo do Palácio de Verão, dividindo-se os benefícios e as responsabilidades entre os dois vencedores. (…) Grande feito, grande fortuna. (…) Nós, europeus, somos os civilizados e, para nós, os chineses são os bárbaros. Eis o que a civilização fez à barbárie.”[5]

Na Primeira Guerra Mundial, a Alemanha foi derrotada e os termos da paz foram definidos no famoso Tratado Versalhes de 1919. Em sua segunda parte, redesenharam as fronteiras da Alemanha e, na terceira, determinaram as reparações territoriais como parte das compensações pelos prejuízos causados. Em outra parte do tratado, obrigaram a Alemanha a renunciar a todas suas colônias e territórios fora da Europa. Forçaram-na também a desmobilizar e reduzir expressivamente suas forças armadas. No famoso artigo 231, conhecido como a cláusula de culpa, a Alemanha precisou assumir a responsabilidade pelo conflito e, com base nela, impuseram pesadas dívidas de reparação de guerra em benefício dos vitoriosos, mantendo-a em situação econômica bastante vulnerável por muito anos. A violência da paz punitiva de Versalhes foi analisada de modo magnífico por John Maynard Keynes no livro As Consequências Econômicas da Paz. Em suas palavras, “As preocupações da Conferência, boas e más, se relacionavam com fronteiras e nacionalidades, (…) com o futuro enfraquecimento de um inimigo forte, com a vingança e a transferência pelos vitoriosos de um carga financeira insurportável para ombros dos vencidos.”[6]

Talvez o caso mais interessante para reflexão seja o fim da Guerra Fria e o desmonte da URSS em 1991. Como escrevemos em outra oportunidade,[7] não houve conflito direto, não houve nenhuma negociação sobre a nova ordem mundial, muito menos tratado de paz ou concertação internacional. O que ocorreu na prática foi uma disposição do vitorioso em punir o vencido. Segundo Putin, em entrevista a Oliver Stone,[8] com o desmembramento da antiga União Soviética, a Rússia perdeu 23,8% do território, 48,5% da população e 44,6% de sua capacidade militar. De acordo com Mazat,[9] o desmonte da economia russa ocorreu com base num programa de Terapia de Choque. O programa impunha uma política de liberalização dos preços, a abertura da economia russa, uma política econômica recessiva de forte controle de gasto e a privatização das empresas estatais. Ocasionou ao longo dos anos noventa uma violenta crise econômica e social: o PIB real caiu mais de 51% entre 1990-1998; o investimento, 81% entre 1991-1998; a produção agrícola, 45% entre 1992-1998; o salário real, 58% entre 1990-1999; e o número de pobres aumentou de 2% para 39% entre 1988-1995. Ademais, guerras separatistas, algumas fomentadas por potências estrangeiras, eclodiram em várias regiões do país.

Portanto, não é difícil perceber que a lógica dos processos de paz reflete uma violência orientada pelos interesses estratégicos dos vencedores, sobretudo os geopolíticos e geoeconômicos.

De volta ao Brasil

Podemos, então, revisitar a conjuntura nacional a partir de perguntas que reorientam o nosso olhar. Em primeiro lugar, teríamos vivido, sem ter muita consciência, tempos de guerra entre 2008-16? Uma guerra não convencional, híbrida, de 4º geração? Se sim, quais teriam sido as suas razões?

Uma boa pista para reflexão são os antagonismos com a maior potência do sistema internacional, criados ao longo dos governos Lula e Dilma. Nesse sentido, conforme discutido em outra oportunidade,[10] as iniciativas relacionadas ao Plano Nacional de Defesa (PND), à Estratégia Nacional de Defesa (END) e à UNASUL criaram um antagonismo com a geoestratégica estadunidenense para o hemisfério ocidental. “A PND e END alteraram estruturalmente a ênfase da agenda de segurança nacional. Em detrimento das ameaças internas como pautado pelos EUA desde a 2º Guerra Mundial, priorizaram-se as ameaças externas e a busca por autonomia e controle de recursos naturais estratégicos (pré-sal e Amazônia). Implementaram-se políticas para (…) a cooperação com os países da região, seja a integração econômica regional (reformulação do Mercosul), seja uma agenda de segurança regional (criação da Unasul).” (op. cit.)

A este teria se somado um segundo antagonismo, relacionado ao petróleo. “A partir da confirmação, em 2007, de expressivas reservas de petróleo de considerável qualidade na região do pré-sal brasileiro, o governo Lula aprovou, em 2010, uma nova regulamentação das atividades nessa nova fronteira, colocando a Petrobrás ao centro do seu processo de exploração.” (op. cit.) Para agravar o quadro, o início da exploração do pré-sal em 2013, com o leilão do campo de libra, deu-se em parceria com empresas chinesas em detrimento das estadunidenses.

Por fim, pode-se falar de um terceiro antagonismo no campo financeiro internacional. “A criação do Arranjo Contingente de Reservas (“FMI dos BRICS”) e do Novo Banco de Desenvolvimento (“Banco Mundial dos BRICS”) permitirá aos países com dificuldades em seus Balanço de Pagamentos o endividamento em moeda estrangeira fora da alçada de influência e do controle das instituições consagradas nos Acordos de 1944 [FMI e Banco Mundial].” (op. cit.). Com efeito, essas instituições perderão sua capacidade de enquadramento, por conta do fim do monopólio dos empréstimos de estabilização.

Assim, existindo razões para um conflito, faz sentido pensar que estivemos em guerra entre 2008-2016, que fomos derrotados em 2016 e que, desde então, estamos sob o arbítrio da maior potência do sistema? Vivemos hoje no Brasil uma paz punitiva? Se faz sentido a ideia de que vivemos de fato uma paz arbitrada a partir de Washington, como poderiam se recolocar os atores que antes se reconheciam em conflito dentro do país? Há espaço para o entendimento de um problema comum? Ou parte da própria estratégia arbitrada pelo vencedor é a de estimular cisões internas e comprometer a capacidade de a sociedade brasileira compreender as raízes da crise e os principais promotores e interessados na violência generalizada que incide sobre ela?

[1]    Artigo baseado em palestra proferida pelo autor no Clube de Engenharia do Rio de Janeiro sobre “Política Externa e Soberania”, no dia 16 de março de 2019. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=9o077uLXc7c >

[2]    Professor do Instituto de Relações Internacionais e Defesa (IRID) da UFRJ e do Programa de Pós-graduação em Economia Política Internacional (PEPI-IE) da UFRJ.

[3]    Para maiores detalhes, ver por exemplo: https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,governo-corta-44-de-verbas-das-forcas-armadas,70002819772

[4]    ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Quincas Borba. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. p. 648-649.

[5]             Disponível em: https://diplo.org.br/2004-10,a1000

[6]             Keynes, J. M. (1919) As Consequências Econômicas da Paz. Clássicos IPRI. Editora UnB. São Paulo, 2002. (p. 37).

[7]             Metri, M. A Paz nos Tempos de Guerra. Le Monde Diplomatique Brasil, versão online, 23 de agosto de 2018. Disponível em: < https://diplomatique.org.br/a-paz-nos-tempos-de-guerra/ >

[8]             Stone, O. As entrevistas de Putin. Rio de Janeiro: Best Seller, 2017.

[9]             Mazat, Numa. A Rússia dos anos 90: crônica de um desastre anunciado. Disponível em: https://criticaeconomica.wordpress.com/2008/02/26/a-russia-dos-anos-90-cronica-de-um-desastre-anunciado/

[10]           Metri, M. Sob a Névoa da Conjuntura. Portal GGN, 22 de março de 2016. Disponível em: https://jornalggn.com.br/analise/sob-a-nevoa-da-conjuntura-por-mauricio-metri/

Redação

3 Comentários

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  1. O Brasil acabou !!!

    Fomos derrotados pq temo um povo Lixo, que vai parar na lta do lixo da história mundial !!! Um território habitado pro gente sem caráter !!!

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