Carta aberta aos ministros Dino, Zanin, Barroso, Haddad

Para que eu deixe de ser um número, e seja considerada uma pessoa, eis aqui o que me tornou um caso típico da ação da Revisão da Vida Toda.

Alfredo Maffei

CARTA ABERTA AOS MINISTROS DINO, ZANIN, BARROSO, HADDAD

Para que eu deixe de ser um número, e seja considerada minimamente uma pessoa, eis aqui o que me tornou um caso típico da ação da Revisão da Vida Toda.

Ou seja, uma trabalhadora que iniciou a vida ganhando bem, perdeu poder aquisitivo ao longo da vida por uma série de intercorrências e foi lesada pelo INSS ao se aposentar, integrando o contingente de 300 mil trabalhadores (do universo de 36 milhões de trabalhadores aposentados do país) com direito à justiça. 

  • Formada na USP, com pós-graduação incompleta na Unicamp. Comecei a trabalhar cedo. Salário alto em institutos de pesquisa e em agências de publicidade antes de 1994 e contribuições pelo teto ao INSS.
  • Separada desde o início dos anos 80, sustentava a minha casa e quase integralmente a da minha mãe, mas consegui fazer uma poupança durante a década de 80 porque queria fazer uma mudança de rumo na carreira.
  • Quando chegou a hora, início de 1990, pedi demissão. Um mês depois, o governo Collor passou a mão na poupança [estou com processo desde 1995 para receber $28 mil – valor atualizado -, do expurgo inflacionário da poupança/plano Collor e até hoje não consegui].
  • Fiquei sem emprego e só com o valor de poupança que o governo deixou. Abri imediatamente uma microempresa para trabalhar e a mantive por 22 anos, com todos os tributos perfeitamente pagos e todas as declarações ao IR. Ainda guardo toda a documentação da empresa, que fechei em 2012.
  • Durante esse tempo, as necessidades da minha mãe e de manutenção do meu filho aumentaram e passei a contribuir ao INSS pelo mínimo, com alguns momentos de folga, em que contribuía com um pouco mais. 
  • Com 38 anos, numa reunião com um cliente, de repente meu ouvido direito deu um estouro e tive ‘perda súbita de audição’; meus ganhos diminuíram pela metade pois já não conseguia realizar a etapa do trabalho que exigia boa audição, ficando restrita à de análise das pesquisas, o que restringiu clientes.
  • Aos 39, mãe solo, perdi minha filhinha bebê; ela nasceu com problemas de saúde, faleceu 15 dias depois, uma tristeza insuperável. Aos 42, tive meu filho também como mãe solo e o criei sem ajuda de pensão do pai; meu filho mora comigo, foi Menor Aprendiz aos 17 anos, trabalhando de dia e estudando à noite e teve outros empregos depois disso, quando dividíamos meio-a-meio todas as contas da casa, mas no momento está dependente em boa parte de mim: a empresa em que trabalhava fechou as portas na pandemia e desde então abriu MEI e só conseguiu um bico home office, com valor irrisório, que serve essencialmente para seus gastos pessoais e o pagamento da nossa internet.
  • Por época do nascimento do meu filho, minha mãe havia desenvolvido uma doença progressiva e fatal; cuidei dela o melhor que pude durante 9 anos, tive que vender meu carro, fui ficando mais pobre, também devido à queda dos trabalhos da minha área profissional na ‘crise do subprime’ de 2007/2008.
  • Minha mãe faleceu em 2009. Lutou 10 anos pela correção da sua aposentadoria de professora, até que desistiu e eu garanti que não a deixaria desamparada. 20 anos após iniciar a luta pela justiça à aposentadoria, o holerite dela chegou com a aposentadoria triplicada, passando de $600 para $1800, com uma mensagem que ela não teria direito aos atrasados. Isso foi dois dias antes dela falecer no hospital, com 80 anos. Guardei esse holerite, como um símbolo da (in)justiça brasileira. A aposentadoria triplicada foi estornada ao Estado.
  • Em 2016 me aposentei por idade, 60 anos, quando descobri perplexa que todas as minhas contribuições pelo teto antes de 1994 haviam entrado nos cofres do INSS, mas foram desconsideradas no cálculo da aposentadoria. Me aposentei com pouco acima do salário-mínimo.
  • Estou com 68, ainda trabalho, trabalho há 53 anos. Faço freela, mas pela minha idade e natural perda de contatos no mercado, o trabalho rareia cada vez mais. Quando fico sem trabalho, passamos dificuldades.
  • Não temos carro, TV, micro-ondas, ventilador, nada que gaste mais luz além de geladeira, máquina de lavar, chuveiro – este, já cheguei a desligar em meses quentes para economizar na conta de luz. Não temos seguro-saúde, usamos SUS; não contratamos faxineira, fazemos todo o serviço de casa e de cozinha. 
  • Nos momentos difíceis de insegurança alimentar, recebi ajuda de um amigo, de amigas e de uma prima e, por cinco vezes, tive que pedir cesta básica na igreja (fui doadora de cesta básica quando jovem e tinha boa vida financeira).
  • Na ação da Revisão da Vida Toda, além da aposentadoria mensal revisada, eu teria direito a $230 mil de atrasados dos últimos 5 anos, dos quais 30% ficariam para o escritório de advocacia, mas eu imaginava que esses atrasados sofreriam limitações no STF ou nem seriam dados, como ocorreu no caso da minha mãe.
  • Após a vitória da Revisão da Vida Toda no STF, Zanin e Dino, indicados por Lula e recém ingressos no STF, que não haviam participado dos julgamentos anteriores, derrubaram indiretamente o mérito da Revisão através de uma outra ação (ADIs), invalidando os votos favoráveis aos aposentados dos ministros que substituíram, Lewandowski e Rosa Weber. Se isso prevalecer, não terei a revisão mensal, e perderei a tutela.
  • Quando o juiz me concedeu tutela no início de 2023 e passei a receber a aposentadoria revisada, acreditei que era um direito adquirido após as duas vitórias da Revisão da Vida Toda no STF em dez/2022.
  • Não sabia do risco de perder a tutela e, muito menos, que se perdesse, de ter que devolver o valor ao INSS, virando devedora da autarquia que me lesou.
  • A devolução da tutela inviabilizará a sobrevivência da minha família. Será impossível alimentação de duas pessoas, luz, gás, remédio…, com $527 que sobrarão após o INSS retirar compulsoriamente 30% da minha aposentadoria e eu pagar o condomínio.
  • Vi na internet que no caso da Desaposentação, não houve exigência de devolução de tutela. Não há como devolver mais de $30mil ao INSS (até o momento) voltando a receber praticamente salário-mínimo. A menos que o INSS me devolva esse valor do que me deve, aí a situação se resolve. 
  • Quero crer que o governo Lula e o ministro Haddad não farão essa maldade de exigir devolução de tutela a aposentados pobres, caso a Revisão seja derrubada definitivamente, inclusive para os que estão com a ação.
  • Ajudei, como milhares de militantes, o PT se desenvolver, Lula chegar à presidência, sair da injusta prisão, voltar à presidência. Em 1989, Lula x Collor, dei meu trabalho de pesquisadora de graça para o PT, junto com outras profissionais. Eu estava lá, no Diretório Central, apresentando os resultados para o Lula, respondendo suas perguntas, junto com as colegas. Quando o PT surgiu, foi uma esperança de defesa do direito dos trabalhadores.
  • Se o STF, no dia 03/04/2024, quando está pautado o último julgamento da Revisão da Vida Toda, não reconhecer o direito dos aposentados que estão com a ação e foram vitoriosos no próprio STF, terei sido lesada pelo INSS, lesada pelo STF após entrada do Zanin e do Dino, lesada pelo Haddad e seu desejo de passar para a história como o ministro que equilibrou as contas públicas, mesmo que às custas de uma manobra processual – denunciada pelos sites jurídicos, advogados, entidades previdenciárias, OAB… – com o intuito de não pagar os aposentados e, para isso, conseguindo imprimir no STF do Barroso o ‘consequencialismo’ que tem dado vitórias judiciais à Fazenda, como se orgulhou Haddad na entrevista à CNN Brasil há poucos dias, citando explicitamente o caso da Revisão da Vida Toda.
  • É fácil fazer economia sobre aposentados sem poder de pressão, vistos pela sociedade como descartáveis, não como trabalhadores com direitos, embora o fato de terem se aposentado atesta que foram por décadas trabalhadores contribuintes para o sistema solidário da previdência. Espero que nossas contribuições antes de 1994, das quais o INSS se apoderou, tenham ido para a aposentadoria de pessoas, e não sumido em outros usos que não previdenciários. 
  • Como afirmou o jornalista Luís Nassif com relação ao que está acontecendo com a Revisão da Vida Toda: “Tem sido assim indefinidamente, uma luta tenaz das corporações do Estado para se apossar de fatias cada vez maiores do orçamento. E um cuidado de mãe mineira com o orçamento público quando se trata de garantir qualquer direito dos anônimos”.
  • O ministro Barroso, com um sorriso, informou no julgamento das ADIs, que tinha uma boa notícia para nós, a de que estamos vivendo mais, e a má notícia que com isso estorvamos o equilíbrio atuarial da previdência. Preferia que ele tivesse dito diretamente que precisamos morrer logo. Disse, também, que “os aposentados não podem ganhar sempre”, embora tenhamos ganhado duas vezes no plenário que ele preside, e para derrubar a nossa vitória, ele tenha tido que recorrer a uma manobra. Não vomitei, mas não conseguia dormir: essa cena ficava vindo à minha cabeça como o mais acabado exemplo de uma sociedade de castas, em que a superior se sente à vontade para debochar, mesmo tendo seu conforto material e privilégios de funcionário público do topo bancados por aqueles de quem debocha. Advogado que estava presente à sessão relatou que quando Barroso proferiu o resultado, o ministro Alexandre de Moraes, que logo no início questionou a manobra e é defensor do direito dos aposentados, já havia se retirado da sala. Barroso disse também que o STF sempre pode corrigir um “erro”, para indignação do Alexandre de Moraes, que respondeu que a maioria dos ministros não errou quando declarou o direito à Revisão da Vida Toda.

Não fui eu que paguei para dar entrada na ação, eu não tinha dinheiro para isso, foram um amigo e uma amiga, pois achavam que minha vida estava difícil e a ação tinha tudo para dar certo porque vários aposentados já haviam ganhado a Revisão em juízos de 1ª instância. Sou grata a eles. Ninguém imaginaria que a ação poderia virar um pesadelo.

Assinado: RGD (em sigla, para não virar alvo da maldade das redes, além da maldade que estamos sofrendo do sistema injusto).

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: www.catarse.me/jornalggn

Redação

2 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador