Cidadão percebeu que não se compra cidadania no feirão da Caixa, diz Rolnik

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Sugestão de Almeida

do Brasil de Fato

“Antes tínhamos os sem-casa, agora estamos criando os ‘sem-cidade’”

Reprodução

Urbanista Raquel Rolnik fala sobre a crise das cidades no Brasil e como a ideia de estruturá-la a partir do transporte público pode ser algo revolucionário

Bruno Pavan,

De São Paulo (SP)

 A urbanista e professora Raquel Rolnik, da Universidade de São Paulo (USP), é inquieta por natureza. Desde o seu modo agitado de responder as perguntas dessa entrevista até a sua inquietação com os problemas das cidades modernas, zona de conforto não é algo com que ela trabalhe.

 Apesar dos avanços da entrada de milhares de pessoas no mercado consumidor, Raquel reforça a tese de que “da porta pra fora, nada mudou”. Ela também critica a gestão do Ministério das Cidades. “Num momento em que era absolutamente necessário fazer uma revolução nas cidades […], estamos colocando no comando da política urbana no Brasil quem historicamente se beneficiou dela como ela sempre foi.”

 Ela também considera que as prefeituras devem comprar a briga da crise da água no estado de São Paulo. “Isso não pode ser uma decisão da empresa que vende a água, isso é uma decisão política, e como decisão política ela deve ser tomada pelos cidadãos liderados pela prefeitura”, criticou.

Brasil de Fato – De 2013 pra cá, o debate em torno da importância das cidades vem sendo pautado pelos sem-teto, pelo Passe Livre e mais recentemente em torno da questão da água. Por que as cidades apareceram com tanta ênfase no debate político?

 Raquel Rolnik –  Junho de 2013, na verdade, representou uma espécie de encontro nas ruas de uma série de organizações e mobilizações que já havia acontecendo desde o começo do milênio. Em 2013, elas têm diretamente a ver com o fato de que uma política geral macroeconômica que foi conduzida pelo governo Lula foi uma política de inclusão via consumo no mercado. Isso foi importantíssimo no sentido que jamais havia sido feito antes. As cidades sempre foram pensadas para privilegiar a mobilidade de poucos. Transporte coletivo era coisa de pobre, era uma política de quinta e que servia somente como extração de renda para os concessionários. Interessava como negócio, nunca como serviço. Na hora em que é ampliado o acesso ao mercado, os automóveis e motocicletas começaram a disputar o mesmo espaço que os 30% de quem tinha carro no início dos anos 2000. Como o alto número de carros congestionou tudo, se criou a crise da mobilidade que expôs o modelo segregado e excludente de cidade. Diante disso, a tarifa e o transporte são a ponta do iceberg, que coloca nu um modelo de cidade que bloqueia o acesso à cidade. Tem muito  a ver a explosão de 2013 com essa emergência da pauta urbana. As pessoas falavam: da casa pra dentro eu comprei TV, posso viajar, eu tenho computador, eu como muito melhor do que comia, mas da casa pra fora, ou seja, do nível do público, da dimensão pública da vida ficou tudo uma porcaria, não mudou nada! Percebeu que não se compra cidadania no feirão da Caixa ou numa concessionária de carro. O que se demanda é uma transformação na dimensão pública, e a cidade é uma expressão mais clara e evidente disso. Temos que entender isso como um ciclo político porque movimentos de moradias já existiam, o que acontece agora é uma espécie de nova geração de movimentos de moradias que têm menos compromissos políticos com a institucionalidade existente e mais capacidade de mobilização.

 Sobre essa questão das cidades serem excludentes, algumas políticas estão sendo adotadas, como a implantação do plano diretor em São Paulo. Qual a importância dele, onde você acha que ele vai evoluir e onde não vai?

O Plano Diretor não é varinha de condão. Temos um modelo predominante de planejamento de gestão da cidade histórico, guiado pelo lucro imobiliário, extração de renda, isso é um modelo hegemônico, as transformações têm que ser muito mais radicais, e não é no campo de um documento que isso acontece. O que o plano fez foi traçar limites, dentro desta ordem dominante, que se bem apropriados pelos protagonistas destas lutas podem possibilitar avanços. Um exemplo é a histórias das Zonas Especiais Intersocial (ZEIS), é muito interessante a trajetória deste instrumento. Quando eu me formei em urbanismo nos anos de 1970, se pegava os mapas das cidades e não apareciam as favelas e periferias, era como elas não existissem. O primeiro movimento a fazer com que eles existissem foi o movimento para demarcar as favelas e alojamentos irregulares, como Zonas Especiais Intersocial, permitindo que eles fossem regularizados, depois este evoluiu um pouco no entendimento que da mesma maneira que o zoneamento reservava a terras para o uso comercial, residencial ou industrial, ele deveria reservar terras para a habitação popular. Então foram criadas as ZEIS de áreas vazias e subutilizadas. E isso tem avançado, em São Paulo tem sido um instrumento importante, não é algo que revoluciona já a cidade, mas é um avanço na luta pela moradia, um instrumento político fundiário. Esse plano também deu uma guinada porque a cidade está dando uma guinada cultural também na direção da valorização do transporte público como elemento estruturador da cidade e não as vias por automóvel. Agora o plano em si mesmo não produz nada, existe uma luta permanente pra que essas coisas sejam implementadas.

 Uma das coisas que estão na pauta é cobrar mais IPTU de prédios que não cumprem a função social, qual o avanço que isso traz?

Isso é uma coisa que já está definida desde a Constituição de 1988 e que até hoje não se implementa nas cidades. O IPTU nasceu diante da demanda que estava presente na emenda popular sobre a reforma urbana para combater a especulação imobiliária e sair em defesa da função social da cidade e da propriedade. O IPTU progressivo é uma instrumentalização dessa política no sentido de que a propriedade que não tivesse cumprindo a função social que o Plano Diretor lhe atribui estará sujeita a sanções e uma delas é que se ela não for ocupada vai ter que pagar um IPTU cada vez mais alto. Depois de mais de 20 anos, parece que vão realmente colocar essa cobrança em prática. Já tem uma lei aprovada no Estatuto da Cidade em 2001, no Plano Diretor de 2002 e uma regulamentação municipal. Não tem mais justificativa para não aplicá-lo.

 Iniciativas como a faixa exclusiva de ônibus e as ciclofaixas que estão sendo implantadas em São Paulo mudam a relação das pessoas com a cidade?

 Completamente. A prioridade para o transporte coletivo é uma revolução urbanística. A cidade passa a ser muito mais suporte pra vida coletiva do que pro usufruto individual. Esse processo é lento, porque temos uma cidade pensada para o contrário disso, mas ele pode significar uma mudança muito importante.

 Em um artigo recente você diz que as prefeituras também deveriam agir na questão da água no estado. Quais as posições que elas poderiam tomar quanto a isso?

 A água se transformou em uma mercadoria que é vendida e comprada. Como toda a mercadoria ela tem como base o lucro da empresa e não o bem estar e a qualidade de vida das pessoas. O que nós estamos vivendo agora já é a escassez e nesse momento a pergunta que não quer calar é: quem vai ter acesso à água e quem não? Isso não pode ser uma decisão da empresa que vende a água, isso é uma decisão política, e como decisão política ela deve ser tomada pelos cidadãos liderados pela prefeitura. A capital e os municípios da região metropolitana vão ter que assumir uma posição em relação a isso e definir quais são as prioridades: quem define o bairro que vai ter água e o bairro que não vai ter? Quem define se os hospitais e as escolas vão ter água ou não? A discussão está posta agora e diante dela não se deve travestir essa discussão numa questão técnica que a Sabesp resolve. Evidentemente as prefeituras têm um receio de puxar pra elas o problema, mas o posicionamento é no sentido de que elas devem exigir do governo do estado e da Sabesp uma posição muito mais transparente essas decisões de quem vai ter água e quem não vai, porque no fundo se trata disso. De fato o racionamento já está acontecendo, por mais que o governador diga que não, a decisão foi tomada. Agora, quem resolveu isso? Quem discutiu isso? Quem achou que isso é o melhor? Não tem nenhuma transparência é uma coisa oculta e não pode ser tratada dessa maneira.

 No âmbito do governo federal, o ex-prefeito Gilberto Kassab foi escolhido para ser o ministro das Cidades, que gerencia programas com grandes verbas. Que sinal o governo passa com essa escolha?

 Não vejo nenhuma diferença em colocar o Kassab ou deixar o ministério sob o comando do PP. Abandonou-se o Ministério das Cidades e a pauta da reforma urbana entrou para dentro da bacia da governabilidade. Foi uma posição política tomada na eleição do Lula e nós estamos vendo as consequências que é o desastre da política habitacional e urbana no Brasil. Num momento que era absolutamente necessário fazer uma revolução nas cidades e uma mudança muito radical na política urbana, e que eu acredito que existiria apoio muito grande da população para essas mudanças, estamos colocando no comando da política urbana no Brasil quem historicamente se beneficiou dela como ela sempre foi. Só tem duas coisas só que interessam nas cidades: a terra como ativo financeiro e os ativos eleitorais. Infelizmente, nós estamos nessa sinuca de bico desde 2006, e a política urbana foi uma das sacrificadas.

 Alguns analistas, como por exemplo o Marcio Pochmann, acusa o Minha Casa Minha Vida de deixar o cidadão longe dos serviços básicos das cidades como praças e postos de saúde. Você concorda com essas críticas? Como você vê o programa?

 Ele teve o mérito de disponibilizar um grande subsídio do poder público na habitação, coisa que não havia sido feito nunca, de ter o Estado garantindo o acesso à habitação e isso foi muito importante. Entretanto, ele tem dois problemas fundamentais: o primeiro é que ele não é um programa habitacional, é uma política de casa própria individual e ela não atende a totalidade das demandas muito variadas que existem hoje no Brasil. Ele tem um modelo insustentável que atinge as famílias mais pobres que não têm a menor condição de pagar o condomínio. Outro problema é exatamente esse: como as casas são produzidas pelo mercado é ele quem define qual vai ser a localização dos empreendimentos e ela é sempre a pior possível, onde não tem cidade. Então a gente tinha os sem-casa e agora nós estamos criando os “sem-cidade”. Nós já vimos esse filme porque essa política já foi aplicada no Chile, no México e na África do Sul e as consequências foram desastrosas

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

4 Comentários

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  1. Pois é.

    Eu me pergunto até onde o bendito ministério pode agir.

    Cidade de MG vai erguer estátua do Sagrado Coração 2 m menor que Cristo

    39

    Carlos Eduardo Cherem
    Do UOL, em Belo Horizonte

    01/02/201506h004669 Ouvir texto  0:00 Imprimir Comunicar erro

    Divulgação

    Projeto da estátua Sagrado Coração de Jesus em Itanhomi, de Evandro di Caetano, com 28 metros de altura

    Projeto da estátua Sagrado Coração de Jesus em Itanhomi, de Evandro di Caetano, com 28 metros de altura

    O município mineiro de Itanhomi (309 km de Belo Horizonte) aprovou essa semana o projeto para a construção de uma estátua do Sagrado Coração de Jesus no morro do Cruzeiro, área mais alta da cidade, a um custo estimado de R$ 200 mil.

    No interior de Minas Gerais, Itanhomi tem 12 mil habitantes. A estátua projetada para o morro do Cruzeiro tem somente dois metros a menos do que a do Cristo Redentor, no Rio de Janeiro.

    O monumento projetado pelo artista plástico Evandro di Caetano terá 28 metros de altura e outros três metros de pedestal. A estátua do Cristo Redentor tem uma altura de 30 metros, mais oito metros do pedestal.

    O Sagrado Coração de Jesus de Itanhomi terá também uma escada interna de 72 degraus (o equivalente a seis andares), que dará acesso ao mirante para cerca de dez pessoas no peitoril da estátua, no coração de Jesus, que será pintado de vermelho. O manto é branco.

    Ao contrário do Cristo fluminense, o Sagrado Coração mineiro será colorido e pintado com tinta epóxi, mais resistente à deterioração. A estátua será montada numa estrutura de ferro. Os braços são de concreto armado. Ela será oca, moldada à mão em argamassa, e terá um peso estimado de 30 toneladas.

    Segundo Caetano, que além do projeto será responsável pela execução da obra, a construção do Sagrado Coração deverá demandar seis meses de trabalho da equipe de 20 pessoas envolvidas com o projeto.

    Dinheiro para obra que precisa de dinheiro

    “Estamos terminando nas próximas semanas o restaurante, a lanchonete, o estacionamento e os banheiros no alto do morro do Cruzeiro. A rua que dá acesso ao local está muito boa, toda pavimentada. Definimos o projeto da estátua e vamos terminar a obra esse ano”, diz o consultor jurídico da Prefeitura de Itanhomi Leonardo da Gama Lima.

    “A prefeitura não vai tirar nada do orçamento. Não dá. Vamos entrar somente com a mão-de-obra”, diz Lima. Segundo ele, o projeto foi aprovado pela Câmara de Vereadores há mais de dez anos e, embora constasse dos orçamentos das sucessivas administrações do município no período, nunca pode ser executado.

    “É difícil, a prefeitura tem seus gastos prioritários. Mas esse ano vamos conseguir o dinheiro necessário com os seis deputados (três estaduais e três federais) votados na cidade, que podem fazer emendas parlamentares”, diz o consultor da prefeitura do município do leste mineiro.

    “Vamos procurar algumas empresas também. O que está definido é que não vai haver campanhas para arrecadar dinheiro com a população. Isso não.”

    Com uma economia baseada na pecuária leiteira, e cerca de 30% da população de 12 mil habitantes morando na zona rural, o orçamento da Prefeitura de Itanhomi para 2015 é de R$ 32 milhões. O advogado explica que o Sagrado Coração de Jesus vai estar em frente à catedral da cidade, que tem o mesmo nome. 

    “O cruzeiro antigo, de madeira, instalado no alto do morro, está completando 60 anos este ano. É uma questão de honra a cidade inaugurar o Sagrado Coração de Jesus, o padroeiro da cidade, também este ano. Vamos conseguir, sim. Se Deus quiser.”

     

     

     

     

  2. Não se compra cidadania no

    Não se compra cidadania no Feirão da Caixa, por certo, mas é muito melhor ter déficit de cidadania sob um teto do que ao relento, não acha, ‘fia’ !?!?

     

    “O BRASIL PARA TODOS não passa na REDE GLOBO DE SONEGAÇÂO & GOLPES – O que passa na REDE GLOBO DE SONEGAÇÃO & GOLPES é um braZil-Zil-Zil para TOLOS”

  3. Quando leio uma entrevista

    Quando leio uma entrevista como esta, de alguém capacitado discorrendo com lucidez e clareza ímpar sobre problemas cruciais que afligem a população – moradia , água, mobilidade – e, além disso, confrontando os interesses e as decisões políticas que impactam diretamente na solução ( ou o agravamento) destes problemas, fica evidente para mim que o que falta ao governante bem intencionado é coragem.

    o que acontece com um time de futebol que parte para o jogo amedrontado com o oponente, na retranca, se encolhendo a medida que o adversário vai se sentindo mais a vontade em seus ataques?

    Por vezes, ousar é tido como um luxo de aventureiros irresponsáveis, desses que não se importam com as consequências dos seus atos, mas tem vezes que ousar é uma questão de sobrevivência … por que tem que ser aceito o jogo nos moldesimpostos  pelo adversário?

    Dilma não será forte sozinha, muito menos cercada de ministros que, em tese, serviriam para emprestar a tal da governabilidade. Essa forma de política já se esgotou, é hora de uma virada no jogo.

    Dilma será forte se agregar a força dispersa nos movimentos sociais, organizados ou não. Quem ela quer beneficiar com seu programa de governo precisa saber disso, precisa apoiá-la. A direita conta com a vantagem de já ser organizada, precisa disso para se impor sobre uma maioria desinformada.  Organizar e unir as forças de esquerda, bem como ganhar o apoio da população em meio a um terremoto na economia é um desafio e tanto que terá que ser encarado. O PT está pagando o preço de ter se tornado um partido Frankstain, a fatura da realpolitik bate a porta, cada vez mais cara…

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