Filhos de preso morto no massacre do Carandiru processam o Estado

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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Jornal GGN – Dois filhos de um preso que foi assassinado no massacre do Carandiru processam o Estado de São Paulo, que se recusa a aceitar o pedido de indenização. Quando o detento morreu, Fernanda, sua filha, tinha 9 anos. Em São Paulo, as autoridades entenderam que prescreveu o prazo para obter indenização junto ao Estado – culpado, na ação, por violação aos direitos humanos – porque os dois filhos já teriam atingido a maioridade. Além disso, o processo não está atrelado à condenação dos oficiais envolvidos no massacre. O caso será levado, agora, aos tribunais em Brasília.

Por Sergio Rodas

TJ-SP nega indenização a filhos de morto no massacre do Carandiru

No Conjur

Na manhã de 2 de outubro de 1992, uma sexta-feira, Fernanda Vicentina da Silva, com 9 anos, foi encontrar seu pai, Antônio Quirino da Silva, que estava preso, em São Paulo. Enquanto aguardava na fila do antigo presídio Carandiru, com sua tia, a menina percebeu uma grande movimentação de policiais, seja a pé, seja montados em cavalos, seja a bordo de helicópteros. Em seguida, elas foram informadas que as visitas do dia estavam canceladas, e voltaram para casa. No dia seguinte, soube pela televisão que seu pai havia morrido no episódio que ficou conhecido como o massacre do Carandiru. O que começou com uma briga entre dois presos evoluiu para uma rebelião e terminou com 111 presos mortos pela Polícia Militar.

Vinte e quatro anos após a tragédia, Fernanda e o irmão dela, Fernando Vicentino da Silva, lutam na Justiça para que o estado de São Paulo os indenize pelos atos ilícitos de seus agentes. Pela decisão da primeira instância, receberiam, cada um, R$ 20 mil. Contudo, a 11ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça considerou nesta terça-feira (30/8) que houve prescrição do direito dos órfãos de buscar reparação estatal, uma vez que a reparação civil é independente da condenação penal, e anulou a decisão. A saga agora deverá continuar em Brasília.

O advogado Carlos Alexandre Klomfahs, sócio do KL Advocacia e Consultoria Jurídica Tributária, soube da situação de Fernanda e Fernando por um cliente, e assumiu a defesa deles. O trabalho foi árduo: no massacre, a PM queimou os documentos dos presos e os arquivos do Carandiru. Dessa forma, o defensor não conseguiu a certidão de óbito de Silva. Pior: ele não descobriu sequer o crime que motivou sua prisão, apenas que esta era cautelar.

Quando elaborava a defesa, no entanto, o advogado teve acesso aos laudos periciais dos assassinados pela polícia. Assim, descobriu que Antônio Quirino da Silva foi morto aos 29 anos, com cinco tiros: um na cabeça e quatro no tórax. Essas localizações reforçam a hipótese de execução, segundo análise do Instituto de Criminalística.

Com essa informação, Klomfahs alegou na petição inicial que o estado de São Paulo cometeu ato ilícito por omissão (ao permitir a superpopulação do presídio) e comissão (ao exagerar no uso da força para conter a rebelião). Ele pediu 150 salários mínimos de indenização para cada um dos filhos – o equivalente a R$ 108,6 mil.

Poder do Estado
O governo paulista não reconheceu as falhas apontadas pelo advogado. Em contestação, a procuradora do estado Mirna Cianci afirmou que não ocorreu dano moral no caso, pois os filhos não tinham “laços familiares” com Silva. Mirna também declarou que ele “não era exemplo de pai”, uma vez que havia sido preso. Além disso, a procuradora disse que a rebelião começou por uma rixa entre os presos, e não por omissão do Estado ao permitir a superlotação do estabelecimento.

E como o pedido da ação foi baseado neste argumento, destacou, o prazo prescricional se esgotou em 2011, cinco anos após Fernando chegar à maioridade. Isso porque a ação não foi proposta com base na condenação criminal dos policiais, o que a torna independente dos processos criminais.

Inicialmente, o juiz suspendeu o processo até o fim das ações penais. Contudo, o TJ-SP considerou a questão urgente, e ordenou que o caso prosseguisse. A 13ª Vara de Fazenda Pública então afastou a alegação de prescrição e condenou o estado de São Paulo a pagar R$ 20 mil a cada um dos órfãos.

Nenhuma das partes ficou satisfeita com a sentença, entretanto. Em sua apelação, a PGE-SP voltou a bater na tecla da prescrição. Segundo Mirna Cianci, a autorização para o processo cível continuar, emitida pelo TJ-SP, demonstra a autonomia dele em relação ao caso penal. Ademais, a procuradora criticou o valor das indenizações, indicando que, em caso semelhante, a quantia arbitrada foi de oito trinta avos.

Klomfahs, por sua vez, contra-atacou com trechos de um livro da própria Mirna, intitulado O valor da reparação moral. Nesta obra, ela afirma que a dor moral por uma morte não é atenuada pelo tempo. E a procuradora expressa a opinião de que um valor razoável para esse tipo de indenização é de 100 salários-mínimos. Assim, o advogado afirmou que a represente do estado “contradiz suas próprias obras jurídicas e por isso não deve ser levada tão a sério do ponto de vista subjetivo e jurídico”.

O defensor de Fernando e Fernanda também ponderou que R$ 20 mil é um valor irrisório para o estado de São Paulo, e que não servirá para o ente rever seus atos. Ainda, Klomfahs disse que essa quantia está abaixo da média, uma vez que o Superior Tribunal de Justiça entende como justo o montante de R$ 200 mil pela morte de um pai de família. E mais: diversas leis estabelecem valores superiores ao concedido aos órfãos, como a Lei Estadual paulista 14.984/2013, que fixa indenização de R$ 200 mil para familiares de militares mortos em serviço, e a que determinou reparação de R$ 900 mil aos parentes do militante comunista Carlos Lamarca, assassinado pela ditadura militar.

Chance desperdiçada
Ao analisar o caso, o relator, desembargador Aroldo Viotti, deu razão à PGE-SP. Em sua interpretação, essa ação cível não dependia da sentença penal, pois o caso não discute reparação ex delicto, e sim omissão do estado na preservação do preso. Com isso, ele votou pela prescrição, e foi seguido pelos seus colegas.    

No tribunal, carregando seus filhos Sara, de sete meses, no colo, e Lucas, de quatro anos, pelo braço, Fernanda lamentou a decisão. O dinheiro, embora abaixo das expectativas, é a sua esperança de comprar um barraco. Atualmente, ela paga R$ 400 por mês por um pequeno quarto no bairro de Piraporinha, em Diadema (SP).

Segundo ela, o ambiente abafado do local — também compartilhado pelo companheiro dela, Jefferson dos Santos — agrava a bronquite das crianças. Depois de ter um AVC, Fernanda não trabalha mais como catadora de materiais recicláveis. Como Santos também não possui emprego fixo, eles dependem de doações dos vizinhos.

Embora descontentes com o acórdão do TJ-SP, eles acreditam em uma reversão pelo STJ  ou, em último caso, pelo Supremo Tribunal Federal. Carlos Alexandre Klomfahs insistiu que não houve prescrição do direito. O advogado ainda espera posicionamento da Organização dos Estados Americanos, que foi contatada por ter repudiado o massacre do Carandiru em 2010, e do papa Francisco, procurado pelo apoio que a Arquidiocese de São Paulo está dando ao caso. Ele torce para que as posições dessas instituições pressionem os ministros a reverter uma decisão que, a seu ver, reflete a “luta de classes” existente na sociedade brasileira.

Clique aqui e aqui para ler os documentos do processo.

Processo 1039765-11.2014.8.26.0053

http://s.conjur.com.br/dl/carandiru-parte.pdf

http://s.conjur.com.br/dl/inicialapelacao-contrarazao-apelante.pdf

http://www.conjur.com.br/2016-ago-31/tj-nega-indenizacao-filhos-morto-massacre-carandiru

 

Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

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